"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/06/2015

Sobre a oposição à execução com fundamento em contracrédito sobre o exequente



O art. 729.º, al. h), CPC -- que constitui uma das novidades do nCPC -- permite que, numa execução baseada numa sentença, o executado deduza oposição à execução com fundamento num contracrédito sobre o exequente. Na doutrina portuguesa, tem vindo a generalizar-se o entendimento segundo o qual esta oposição à execução só é admissível se o contracrédito for posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância (ou, conforme também já se tem entendido, à contestação da acção declarativa) (cf. Ramos de Faria/A. L. Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil II (2014), 249; Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 6.ª ed. (2014), 203; Delgado de Carvalho, Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa (2014), 56; Costa Ribeiro/S. Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada (2015), 251). Pese embora o seu eventual sentido maioritário, este entendimento não deve ser seguido.

A primeira observação que importa fazer é a de que a referida orientação desconsidera a circunstância de que, segundo o regime instituído no nCPC, a compensação passou a ser alegada sempre por via de reconvenção (cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC). A importância desta circunstância reside em que, ao contrário do que acontece para as defesas por impugnação e por excepção -- sujeitas, como se sabe, ao princípio da concentração da defesa na contestação (cf. art. 573.º, n.º 1, CPC) --, não há, em geral, nenhum ónus de reconvir e não há certamente um ónus de reconvir para obter a compensação judicial. O que vale para os meios de defesa do réu não pode valer para algo que a lei não integra nesses meios.

Isto significa que o réu que não alegou um contracrédito para obter a extinção por compensação do crédito do autor não só não perde este seu contracrédito, como não está impedido de o invocar e exigir numa posterior acção. A exclusão da reconvenção de qualquer preclusão constitui, aliás, um bom argumento (de ordem prática, quanto mais não seja) para se defender que a compensação deve ser invocada por via de reconvenção, e não por via de excepção. Se se compreende que, por exemplo, a não invocação da invalidade do contrato alegado pelo autor ou a não alegação de um direito de retenção da coisa que é reivindicada pelo demandante devam estar submetidas a uma regra de preclusão e que esses factos não possam ser invocados em nenhuma outra acção posterior pela parte demandada, o mesmo não se pode dizer quanto à não alegação de um contracrédito, dado que este é autónomo do crédito do autor que foi apreciado e reconhecido na acção. Enquanto a validade do contrato exclui necessariamente a sua invalidade e o dever de restituição da coisa é necessariamente incompatível com um direito de retenção, o reconhecimento do direito do autor não é incompatível com um posterior reconhecimento de um contracrédito do demandado. Estes dois créditos não se excluem, antes se extinguem reciprocamente -- o que, como é claro, é bem distinto.

Por esta razão, há que concluir que, sendo actualmente a compensação feita valer por via de reconvenção, não se verifica nenhuma preclusão decorrente da não invocação do contracrédito numa anterior acção declarativa. Contra esta afirmação poderia dizer-se o seguinte: é verdade que, em regra, não há nenhuma preclusão da invocação do contracrédito, mas, nomeadamente, pelo paralelismo com a preclusão estabelecida no art. 729.º. al. g), CPC, o contracrédito que podia ter sido invocado na anterior acção declarativa não pode ser alegado no processo executivo em que se executa a decisão proferida naquela acção. O argumento seria, pois, o seguinte: em regra, não se verifica a preclusão da invocação do contracrédito, pelo que este pode ser alegado numa outra acção; no entanto, esta regra comporta uma excepção, não se aplicando no processo executivo posterior à correspondente acção declarativa que reconheceu o crédito exequando.

Este argumento é facilmente rebatível. Antes do mais, podem ser aduzidos motivos de ordem económica: não tem sentido admitir a tramitação de uma complexa e custosa acção executiva quando o crédito exequendo pode afinal ser extinto através do reconhecimento de um contracrédito do executado. A isto acresce que não é aceitável submeter o devedor a um processo executivo quando este executado possui um contracrédito sobre o exequente (eventualmente, até de montante superior ao crédito exequendo) que é susceptível de extinguir, no todo ou em parte, o crédito exequendo. Quase apetece dizer que quem defende a preclusão da invocação do contracrédito do executado no processo executivo só tem uma maneira de proteger a posição do executado: admitir a penhora do crédito do executado sobre o exequente.

Por fim, importa fazer uma referência de direito comparado. Por razões históricas (fundamentalmente ligadas à rejeição da compensação ipso iure), a compensação, no direito alemão, opera ope exceptionis (o que justifica o disposto no § 322 (2) ZPO quanto à inclusão da apreciação da excepção de compensação no âmbito objectivo do caso julgado da decisão que aprecia, em simultâneo o crédito do autor e o contracrédito do demandado); apesar disso, a doutrina alemã maioritária, procurando obviar aos inconvenientes da preclusão da invocação da compensação no processo executivo, tem defendido a não aplicação da regra de preclusão que consta do § 767 (2) ZPO (regra que é semelhante à que se encontra no art. 729.º, al. g), CPC) a essa compensação (cf. Rosenberg/Gaul/Schilken/Becker-Eberhard, Zwangsvollstreckungsrecht, 12.ª ed. (2010), 774 ss.; para um panorama geral do problema, cf. MünchKommZPO/Schmidt/Brinkmann (2012), § 767 80 ss.). Seria muito surpreendente que, enquanto a doutrina alemã maioritária procura não aplicar à compensação uma regra legal que literalmente a abrange (o § 767 (2) ZPO), a doutrina portuguesa percorresse precisamente o caminho inverso e, a partir de uma base legal que não impõe nenhuma preclusão quanto à invocação da compensação na acção executiva, acabasse afinal por vir a defender essa mesma preclusão.

MTS