"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/06/2015

Jurisprudência (151)


Excepção de caso julgado; pedido parcial


1. É o seguinte o sumário de STJ 26/5/2015 (169/13.4TCGMR.G2.S1): 

I – De acordo com o art. 644.º, n.ºs 1 e 3 do Cód. de Proc. Civil, a decisão proferida no saneador no sentido da improcedência da excepção de caso julgado material não pode ser objecto de recurso autónomo.

II – A impugnação dessa decisão pode ser incluída no recurso de decisão posterior admissível.

III – Tendo a decisão final - que lhe seguiu - sido favorável à ré que alegara a referida excepção, pode aquela parte como recorrida, pedir a ampliação do objecto do recurso para a reapreciação da decisão sobre o caso julgado material, para o caso de a apelação proceder.

IV – Sendo formulado esse pedido de ampliação, mas improcedendo os fundamentos da apelação, nos termos dos arts. 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1 al. d), segunda parte, do Cód. de Proc. Civil, não pode essa ampliação do âmbito do recurso ser conhecida.

V – Havendo, numa anterior acção cível ocorrida entre as mesmas partes, sido reconhecido um dano de determinado montante sofrido pela autora num incêndio por cujos danos a ré seguradora era responsável por contrato de seguro, mas não tendo esta sido condenada em parte do valor desse dano, por tal parte não constar do pedido efectivamente formulado, não pode a autora em nova acção formular esse pedido parcial não reconhecido, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, por se não verificar a relação de subsidiariedade exigida no art. 474.º do Cód. Civil.
 

2. O acórdão é interessante sobre vários aspectos, embora o que desperte maior interesse não seja o que nele foi decidido (que, aliás, não suscita nenhum reparo), mas os antecedentes da acção em que o acórdão foi proferido.

Segundo resulta do relato constante do acórdão, antes da acção agora decidida foram apreciadas duas outras acções: 

-- Uma primeira acção em que a autora pediu, contra a empresa seguradora, um pedido de indemnização dos prejuízos sofridos com um incêndio; nesta acção, a autora obteve a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização; 

-- Uma segunda acção em que a mesma autora formulou, contra a mesma ré, um novo pedido de indemnização, com o fundamento de que não tinha obtido na primeira acção a reparação integral dos seus danos; esta acção terminou com a absolvição da ré da instância com base na excepção de caso julgado. 

Foi depois desta decisão que a autora instaurou a presente acção, mudando a qualificação jurídica da causa de pedir (na segunda acção invocava responsabilidade civil, agora alega enriquecimento sem causa).

3, A absolvição da instância proferida na segunda acção com fundamento na excepção de caso julgado (cf. art. 580.º, n.º 1 e 2, 581.º, 577.º, al. i), e 576.º, n.º 2, CPC) só pode ter tido como fundamento a consideração de que a segunda acção tinha por objecto os mesmos danos já indemnizados na primeira acção. É algo que, sem acesso aos elementos da acção, não se pode avaliar. 

Em todo o caso, pode concluir-se, sem perigo de errar, que o tribunal da segunda acção (aquele que decretou a absolvição da instância) entendeu que o pedido formulado na primeira acção não era um pedido parcial, isto é, um pedido que não esgotava tudo o que o autor podia pedir nessa acção. Se esse tribunal tivesse considerado que o pedido formulado na primeira acção não esgotava tudo o que o autor podia ter pedido, então não podia ter concluído pela verificação da excepção de caso julgado. Afinal, o autor ainda tinha direito a algo mais do que pediu e obteve na primeira acção, tendo instaurado a segunda acção precisamente com a finalidade de obter esta parcela restante.

O pedido parcial levanta vários e complicados problemas (nomeadamente, quando o mesmo é utilizado para defraudar as regras relativas à forma do processo, à competência do tribunal ou à recorribilidade da decisão), mas, em si mesmo, não pode ser considerado inadmissível. Constitui uma legítima estratégia processual instaurar uma acção antes que as provas que se procura apresentar se inutilizem ou propor uma acção com os elementos de que já se dispõe, sem prejuízo de mais tarde, com outros elementos que agora ainda não estão disponíveis, peticionar o restante. Será difícil considerar que o autor defrauda a lei, se essa parte apresentar expressamente o seu pedido como parcial (o que corresponde, na designação corrente na doutrina e na jurisprudência alemãs, à offene Teilklage).
 
Se o pedido parcial é admissível, então também é admissível pedir numa acção posterior a parcela restante do que não foi pedido na acção anterior. Como exemplifica a situação em análise, é, no entanto, indispensável que o segundo pedido se refira a algo que não foi apreciado e decidido na primeira causa, pois que só se assim suceder se pode dizer que ambas as acções são parciais.

Importa ainda acrescentar que, mesmo fora de qualquer situação de fraude à lei, a protecção do demandado impõe que a decisão proferida na primeira acção sobre o pedido parcial não possa produzir nenhum efeito de caso julgado na segunda acção (cf. Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht, 17.ª ed. (2010), 883). A composição dos interesses contrapostos do autor (que pode ter razões para formular um pedido parcial) e do réu (que nada ganha em ser demandado em várias acções respeitantes à mesma situação) é realizada impedindo que a primeira acção possa servir de acção prejudicial em relação à segunda acção. Ambas são acções parciais de um mesmo todo, mas mantêm-se reciprocamente independentes.

MTS