"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/09/2015

A revogação tácita dos art. 1808.º, n.º 4, 1810.º, 1841.º, n.º 4, e 1865.º, n.º 5, CC


1. A L 141/2015, de 8/9, aprova o Regime Geral do Processo Tutelar Cível (art. 1.º) e revoga, além do mais, a OTM (art. 6.º, al. a)).

Uma das novidades do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC, na abreviatura oficial: art. 1.º RGPTC) é a desjudicialização da decisão sobre a viabilidade da acção de investigação da maternidade ou paternidade após a instrução do processo de averiguação oficiosa dessa mesma maternidade ou paternidade. No regime ainda vigente, essa decisão cabe ao juiz, que, caso considere que essa acção tem probabilidade de vir a ser bem sucedida, remete o processo para o agente do Ministério Público, para que este proponha a referida acção (art. 1808.º, n.º 4, e 1810.º CC); no regime instituído pelo RGPTC, essa decisão passa a caber ao agente do Ministério Público, que, na hipótese de concluir  pela viabilidade da acção da investigação, propõe esta mesma acção (art. 62.º, n.º 1, RGPTC).

Em parte alguma se encontra uma revogação expressa dos art. 1808.º, n.º 4, e 1810.º CC ou a sua substituição por regras compatíveis com o novo regime que consta do RGPTC. Parece seguro, no entanto, que o disposto naqueles preceitos é incompatível com o estabelecido no art. 62.º, n.º 1, RGPTC, pelo que há que concluir que, tal como resulta do art. 7.º, n.º 2, CC, a entrada em vigor do RGPTC (cf. art. 7.º L 141/2015) implicará necessariamente a revogação tácita daqueles preceitos.

Resta acrescentar que a revogação tácita do art. 1810.º CC deixa sem regulação específica a situação em que da instrução do processo tutelar cível resulta que o filho nasceu ou foi concebido na constância do matrimónio da mãe. Isso, no entanto, não pode afastar a aplicação do disposto no art. 1822.º CC, dado que, nessa hipótese, o estabelecimento da maternidade a favor da mãe casada faz funcionar a presunção de paternidade do seu marido (cf. art. 1826.º, n.º 1, CC), pelo que importa permitir que, ao mesmo tempo que se estabelece a maternidade, se possa impugnar a paternidade presumida (cf. art. 1823.º, n.º 1, CC).

2. O mesmo há que afirmar quanto ao disposto no art. 1841.º, n.º 4, CC, no âmbito da acção de impugnação da paternidade, e no art. 1865.º, n.º 5, CC, quanto à averiguação oficiosa da paternidade. Também estes preceitos serão revogados tacitamente com a entrada em vigor do RGPTC, por incompatibilidade com o disposto no art. 62.º, n.º 1, RGPTC.

O art. 1841.º, n.º 3, CC -- que atribui ao tribunal, na acção de impugnação de paternidade, competência para proceder às diligências necessárias para averiguar a viabilidade da acção -- pode ser objecto de uma interpretação actualista, entendendo-se que a referência ao tribunal deve ser substituída, por imposição do art. 60.º, n.º 1, RGPTC, por uma referência ao Ministério Público.

3. A ter-se razão no que acima se afirma, verificar-se-ão em breve várias revogações tácitas no CC. Pode dizer-se -- o que é, aliás, indiscutível -- que o sistema vai funcionar adequadamente e vai evitar quaisquer desarmonias de regimes. Mas também se deve concluir que o CC é um diploma demasiado importante para que possa admitir como desejável a revogação tácita de qualquer das suas disposições.

MTS