"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/09/2015

Jurisprudência (186)



Excepção de caso julgado; "contrário contraditório"


I. O sumário de RL 2/7/2015 (771/14.7TVLSB.L1-2) é o seguinte:

1. O princípio da eventualidade ou da preclusão, consagrado no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, e que implica que toda a defesa deva ser deduzida na contestação, radica em razões de lealdade na condução da lide, de segurança e de certeza jurídica, impedem que os efeitos de uma sentença transitada em julgado sejam postergados, com base em novos argumentos que nessa acção poderiam ter sido invocados, e o não foram.

2. A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e se traduzem na tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.


 II. O sumário do acórdão não levanta grandes problemas: é possível retirar da preclusão dos fundamentos de defesa uma impossibilidade de alterar os efeitos de uma decisão transitada em julgado; é também possível, embora cum grano salis, entender que a excepção de caso julgado implica uma proibição de repetição de causas e a autoridade de caso julgado uma proibição de reapreciação da mesma questão.

O sumário não resume, no entanto, o verdadeiro sentido do acórdão. O que sucedeu foi, no essencial, o seguinte:

-- A Autora intentou uma acção declarativa de simples apreciação, com processo ordinário, através da qual pediu que seja declarada inválida a denúncia do contrato de arrendamento de que a autora é arrendatária, nos termos do artigo 1101.º CC;

-- Em 25/2/2011, a Ré da acção na qual foi proferido o acórdão tinha intentado contra a ora Autora uma acção de simples apreciação, na qual identificou uma situação de incerteza quanto à aplicabilidade al. b) do n.º 6 do art. 26.º L 6/2006, de 27/2, aos casos de transmissão entre vivos de mais de 50% do capital social entre sócios e na qual pediu a declaração daquela aplicabilidade com a consequente validade da denúncia do contrato de arrendamento comunicada nos termos do art. 1101.º, al. c), CC; esta acção foi julgada procedente por acórdão do STJ de 11/9/2012;


-- Em 18/9/2007 foi realizada uma escritura pública de divisão de uma quota da sociedade Autora e de cessão de cada uma das quotas resultante da divisão;

-- Em 06/1/2011, por sentença proferida pela 1.ª Secção do 8.º Juízo Cível de Lisboa, a escritura pública de cessão de quotas da sociedade Autora, celebrada em 18/9/2007, foi anulada; na sequência disto, em 29/1/2014, ou seja, já após a publicidade do aludido cancelamento no registo comercial das transmissões de quotas, a Ré comunicou à Autora por carta registada com aviso de recepção, a confirmação da denúncia que manifestara em 8/2/2010, ao abrigo do artigo 1104.º CC.


Perante esta situação, a RL entendeu o seguinte:
 
"No caso em apreciação, a actual pretensão da autora, ré na anterior acção, interposta em 25.02.2011, e na qual foi proferida decisão, em 11.09.2012, transitada em julgado, reconhecendo a validade da denúncia do contrato de arrendamento, assenta na alegação e prova de uma cessão de quotas realizada por escritura de 18.09.2007.

É certo que tal escritura foi anulada por sentença de 06.01.2011, logo, antes da propositura da anterior acção, visando agora a autora, na presente acção, obter precisamente o efeito inverso, com base na aludida sentença de 06.01.2011 [...], em que um dos sócios demandou os demais, bem como a própria sociedade (a ora autora), não se vislumbrando – porque nem sequer foram rigorosamente enunciadas – as razões pelas quais esta factualidade não foi oportunamente deduzida na anterior acção – como cumpriria – de nada valendo vir agora, em sede de recurso, invocar, conclusivamente, que só veio a tomar conhecimento da sentença de anulação da cessão de quotas muitos meses depois de a mesma ter sido proferida, sendo certo que, como acima ficou dito, todos os sócios intervieram na acção. Os sócios demandados, bem como a própria sociedade (a ora autora), foram citados, não contestaram e não consta que haja sido omitida pelo Tribunal, ao demandante e aos demandados, a devida notificação da aludida sentença."


Desta preclusão relativa à alegação da invalidade da cessão de quotas na acção em que foi proferido o acórdão em análise retira a RL o seguinte:
 
"[...] a presente acção assent[a] em factualidade já existente à data da anterior acção e, a ser admitida, constituiria uma grave violação da estabilidade da relação jurídica definida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, confirmada pelo mencionado Acórdão do STJ, de 11.09.2012, transitado em julgado.

Com efeito, a admitir-se a nova pretensão da autora consubstanciada na presente acção, implicaria que o Acórdão do STJ de 11.09.2012, transitado em julgado, poderia ser negativamente atingido pelos efeitos de nova sentença, assente na factualidade agora invocada, o que representaria [...] a admissão pelo sistema, sem limites, da discussão eterna de questões jurídicas e que nem sequer as sentenças transitadas em julgado conferissem aos seus beneficiários direitos efectivos, ficando eternamente submetidas aos efeitos da litigiosidade (ou da chicana processual) promovida pela parte vencida.

Daí que, quer para contrariar o reconhecimento do direito invocado pela aqui ré, autora na primitiva acção, tinha a aqui autora/apelante o ónus de ter levado para o objecto da primitiva acção tudo quanto pudesse colidir com a pretensão ali formulada, o que não foi efectuado.

Por conseguinte, mostra-se impedido o prosseguimento da acção, por via da autoridade de caso julgado projectada pelo Acórdão do STJ de 10.10.2012, proferido na primeira acção [...] pois se assim se não entendesse, equivaleria, na prática, a ser admissível, a própria anulação do efeito do caso julgado material, resultado que a lei não permite.

Assim sendo, e estando em causa uma excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, implica, em consequência, a absolvição da ré da instância, como decidiu o Tribunal a quo."


Não se pode acompanhar esta última conclusão da RL, dado que não há nenhuma "excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado". O caso julgado (material) só é susceptível de criar uma excepção dilatória: a excepção de caso julgado, correspondente à exceptio rei iudicatae do processo civil justinianeu (D. 44.2.: De exceptione rei iudicatae; antes da codificação justinianeia as fontes falavam da exceptio rei iudicatae vel in iudicium deducta (Gaius, 3.181 e 4.106 s.), sendo muito discutido se se tratava de uma mesma excepção ou de duas excepções distintas: cf. Steinwenter, Paulys RE IX/2 (1916), 2478). 

O que o caso julgado ainda pode originar, além da referida excepção dilatória, é a vinculação de um tribunal de uma acção posterior ao decidido numa acção anterior: é isso precisamente que constitui a autoridade de caso julgado. Exemplo típico desta autoridade de caso julgado é o efeito que é reconhecido à decisão sobre uma relação prejudicial numa acção relativa a um objecto dependente: aquela decisão (sobre o reconhecimento da propriedade, por exemplo) é vinculativa na acção referente a um objecto dependente (a indemnização pela ocupação da propriedade, por exemplo).

O caso sub iudice deveria ter sido decidido com base na excepção de caso julgado. Dada -- como, aliás, bem viu a RL -- a preclusão referente à invocação da questão relativa à invalidade da cessão de quotas na acção na qual foi proferido o primeiro acórdão, tudo se resume em procurar obter na presente acção (a declaração da invalidade da denúncia do contrato de arrendamento) o contrário do que foi decidido na anterior acção entre as mesmas partes (a declaração da validade dessa denúncia).

A doutrina alemã vem, há muito, salientando que o caso julgado de uma decisão também abrange o "contrário contraditório" do que foi decidido: "verifica-se o contrário contraditório sempre que a acção proposta pelo réu da primeira acção e actual autor é susceptível de prejudicar os efeitos da sentença transitada em julgado" (Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht, 17 ed. (2010), 881; também MüKoZPO/Gottwald (2013), § 322 42 ss.; Prütting/Gehrlein/Völzmann-Stickelbrock (2015), § 322 15; Musielak/Voit/Musielak (2015), § 322 21). Esta solução é facilmente compreensível pelos juristas portugueses, dado que, segundo o disposto no art. 564.º, al. c), CPC, a citação do réu para uma acção inibe esta parte de propor contra o autor uma acção destinada à apreciação da mesma questão jurídica, ou seja, atendendo à inversão da posição das partes, uma acção destinada a obter o "contrário contraditório" do que é requerido pelo autor.

Em conclusão: a RL deveria ter reconhecido a excepção de caso julgado e, nessa base, absolvido a Ré da instância (cf. art. 577.º, al. i), 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. e), CPC).

MTS