Providências cautelares; garantia autónoma; medida da prova;
inversão do contencioso necessária
1. O sumário de RL 8/9/2015 (74/14.7T8LSB.L1-7) é o seguinte:
I - A autonomia da garantia, designadamente, da garantia automática ou à primeira solicitação, face ao contrato base, não é absoluta, já que, em caso de fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, o garante pode e deve mesmo recusar-se a pagar a garantia, porquanto, acima da regra acordada pelas partes, estão os princípios da boa fé e da proibição do abuso do direito.
I - A autonomia da garantia, designadamente, da garantia automática ou à primeira solicitação, face ao contrato base, não é absoluta, já que, em caso de fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, o garante pode e deve mesmo recusar-se a pagar a garantia, porquanto, acima da regra acordada pelas partes, estão os princípios da boa fé e da proibição do abuso do direito.
II – Assim, pretendendo o devedor lançar mão de medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a garantia, o êxito final dessas medidas, que constituem, inquestionavelmente, um excepcional meio de defesa, dependerá da prova inequívoca do comportamento manifestamente fraudulento ou abusivo do beneficiário.
III - O que vale por dizer que, no âmbito da garantia autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta e líquida, sendo, pois, insuficiente a consideração do simples fumus bonus iuris, típico das providências cautelares, sob pena de violação da essência da garantia autónoma à primeira solicitação.
IV – A fraude manifesta e o abuso evidente implicam a prova pronta e líquida, sendo que, a prova é pronta (preconstituída) quando não se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares e é líquida (inequívoca) quando permite a percepção imediata e segura da fraude ou do abuso, tornando-os óbvios.
2. Convém conhecer o seguinte trecho do acórdão:
"Não obstante se tratar de garantia autónoma, a doutrina e a jurisprudência reconhecem a possibilidade de o garante recusar o pagamento, quer a solicitação do beneficiário se traduza numa fraude, quer se traduza num abuso de direito.
Todavia, não reconhecem essa possibilidade em termos absolutos, já que tem sido unanimemente defendido que não basta ao garante a suspeita de fraude ou de abuso de direito, antes se exigindo que o carácter não fundado da solicitação seja claro e não contestável.
Assim, a autonomia da garantia face ao contrato-base não é absoluta, já que se tem entendido, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que, em caso de fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, o banco pode e deve mesmo recusar-se a pagar a garantia.
Trata-se, pois, de uma excepção à regra de que o banco deve prestar de imediato a garantia logo que solicitada pelo beneficiário, já que, acima daquela regra acordada pelas partes, estão os princípios da boa fé e da proibição do abuso do direito (cfr. os arts.762º, nº 2, e 334º do C.Civil).
Questão é que o abuso ou a fraude sejam inequívocos, pois que, se bastasse ao banco alegar o abuso ou a fraude do beneficiário, fazendo depender a sua prova de diligências ulteriores, frustrar-se-ia, afinal, o objectivo das garantias, acabando por virem a ser pagas só depois de largas controvérsias, quando o seu escopo é precisamente evitar essa situação.
Exige-se, deste modo, que a fraude ou o abuso sejam manifestos, fazendo-se depender, por isso, a possibilidade de recusa do garante do facto de este ter em seu poder prova pronta e líquida da fraude ou do abuso do beneficiário.
Mas pode acontecer (e parece que acontece frequentemente) que o banco, por não querer envolver-se em disputas e até por uma questão de reputação, não conteste a pretensão do beneficiário e antes preste a garantia logo que solicitada.
Ora, tem-se entendido que, para fazer face a este inconveniente, que prejudica o devedor, este tem a possibilidade de lançar mão de medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a garantia.
Porém, o êxito final dessas medidas, que constituem, inquestionavelmente, um excepcional meio de defesa, dependerá da prova inequívoca do comportamento manifestamente fraudulento ou abusivo do beneficiário.
Isto é, só podem ser requeridas no caso de o devedor possuir provas inequívocas de abuso evidente por parte do beneficiário, caso contrário, só depois de paga a garantia é que o devedor agirá contra o beneficiário, em ordem a ser reembolsado da quantia indevidamente recebida por este, se for caso disso.
O que vale por dizer que, no âmbito da garantia autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta e líquida (cfr. Mónica Jardim, ob.cit. [A Garantia Autónoma (2002)], pág.336).
Contudo, é sabido que nas providências cautelares, dado o seu carácter urgente e provisório, em lugar da prova do direito, o juiz deve contentar-se com a probabilidade séria da existência do direito, devendo o requerente oferecer prova sumária do direito ameaçado (cfr. os arts. 365º, nº 1, e 368º, nº 1, do C.P.C.).
Por isso que já se sustentou que, subordinar a concessão da providência à apresentação de prova pronta e líquida, significaria pretender corrigir a lei processual que consagra a regra da suficiência da prova sumária para efeitos de concessão de providências cautelares (cfr. Mónica Jardim, ob.cit., pág. 335).
Segundo esta autora, as jurisprudências alemã e austríaca manifestaram-se contra esta objecção, sendo depois seguidas pela demais jurisprudência internacional, que exige a apresentação de prova pronta e líquida da fraude do beneficiário, ou seja, o mesmo tipo de prova que é exigido no âmbito da excepção de fraude manifesta a opor pelo garante, fundamentando essa exigência com recurso àquilo a que chama uma «regra restritiva de direito jurisprudencial», imposta pela função da garantia autónoma.
Considera a mesma autora, ob.cit., pág.337, que a prova pronta e líquida da fraude ou abuso evidente do beneficiário deve ser tida como indispensável, uma vez que está em causa o cumprimento de um contrato de garantia, cuja autonomia não se coaduna com o deferimento de providências senão em situações excepcionais, e que seria excessivamente relativizada caso fosse suficiente uma prova meramente sumária ou indiciatória, com base na qual o juiz pudesse fazer um simples juízo de probabilidade.
Entende, assim, que os citados preceitos do C.P.C. não devem valer quando esteja em jogo uma garantia autónoma e a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, caso em que deve ser considerado insuficiente um simples fumus bonus iuris, pois só assim se negará ao devedor a possibilidade de obter, por via cautelar, o que o garante não pode obter por via da contestação à solicitação.
Concorda-se com tal entendimento, caso contrário estar-se-ia a violar a essência da garantia autónoma, frustrando-se a sua finalidade e o lema a que, fundamentalmente, obedece: pagar primeiro e discutir depois."
3. A orientação defendida no acórdão é compreensível atendendo a uma característica essencial do direito processual civil: a sua posição instrumental perante o direito substantivo. Desta instrumentalidade decorre, sem dúvida, que o direito processual civil não pode contrariar os valores substantivos. Portanto, se a prestação correspondente a uma garantia autónoma só pode deixar de ser realizada perante a prova do comportamento fraudulento e abusivo do beneficiário, não pode ser decretada uma providência cautelar destinada a evitar a realização dessa prestação sem essa mesma prova.
O ponto mais interessante que o acórdão levanta não foi -- nem tinha de ser -- tratado no mesmo. A questão é a seguinte: depois de o tribunal ter considerado a providência cautelar procedente com base numa prova stricto sensu que tenha demonstrado o comportamento fraudulento ou abusivo do beneficiário da garantia autónoma, o que se lhe pode seguir?
Em teoria, depois do procedimento cautelar no qual tenha sido decretado a providência cautelar deveria ser proposta a acção principal, sob pena de caducidade da providência decretada (art. 364.º, n.º 1, e 373.º, n.º 1, al. a), CPC). Parece evidente, no entanto, que, depois de se ter demonstrado, através de uma prova stricto sensu, a conduta fraudulenta e abusiva do beneficiário da garantia autónoma, nada resta para demonstrar numa subsequente acção principal. Nesta acção -- destinada a provar que o beneficiário não tem direito à prestação decorrente da garantia autónoma -- só poderia ser duplicada a prova realizada no anterior procedimento cautelar. Depois de ter sido decretada uma providência cautelar que determina, com base numa prova stricto sensu, que o beneficiário não tem direito à prestação decorrente da garantia autónoma não é justificada a propositura de uma acção destinada a obter o mesmo efeito com base na mesma prova: esta acção seria sempre inútil. A excepção de caso julgado permite evitar esta duplicação de meios processuais (cf. art. 580.º, n.º 2, CPC).
Parece assim dever concluir-se que a exigência da referida prova stricto sensu no procedimento cautelar implica necessariamente a inversão do contencioso. Em comparação com a situação normal -- na qual é o requerente da providência que opta por requerer a inversão do contencioso (cf. art. 369.º, n.º 1, CPC), não tendo, no entanto, nenhum ónus de o fazer --, na hipótese de o requerente pretender obstar ao funcionamento de uma garantia autónoma a favor do beneficiário só lhe resta instaurar uma providência cautelar que, ao exigir uma prova stricto sensu dos fundamentos da providência, determina necessariamente uma inversão do contencioso. O que pode fundamentar o decretamento da providência não é uma probabilidade séria da existência do direito do requerente (cf. art. 368.º, n.º 1, CPC), mas a prova desse direito.
Isto demonstra que a inversão do contencioso pode ser necessária, no sentido de que essa inversão se impõe ao requerente e ao tribunal e de, portanto, dispensa qualquer pedido do requerente da providência: é o que sucede quando àquele requerente é exigida uma prova stricto sensu dos factos constitutivos da providência cautelar e quando este órgão só pode decretar a providência se esta prova for realizada. Dito de outro modo: ao contrário da inversão do contencioso voluntária -- que não tem de ser nem pedida, nem proferida em conjunto com o decretamento da providência cautelar --, a inversão do contencioso é necessária quando a providência cautelar só pode ser pedida e decretada em conjunto com essa inversão.
A inversão do contencioso necessária produz todos os efeitos desta inversão, nomeadamente o de impor ao requerido o ónus de propositura de uma acção de impugnação, sob pena de consolidação da providência decretada pelo tribunal (cf. art. 371.º, n.º 1, CPC).
4. As reflexões anteriores não podem deixar de suscitar outras reflexões. Uma delas é a seguinte: dado que, em casos como o apreciado no acórdão, a providência cautelar só pode ser decretada se for provado (em termos de prova stricto sensu) o fundamento dessa providência, cabe perguntar se o próprio procedimento cautelar é admissível ou se o interessado tem afinal de instaurar uma acção. Pode argumentar-se que, se o que se exige é uma prova stricto sensu, então o interessado tem de propor uma acção, porque esse é a medida de prova própria de qualquer acção.
Crê-se, no entanto, que não há fundamento para recusar a admissibilidade do procedimento cautelar, desde que a situação seja vista como uma inversão de contencioso necessária. Esta construção garante que o requerente não pode propor posteriormente nenhuma acção sobre o mesmo objecto (a tal obsta a excepção de caso julgado: cf. art. 580.º e 581.º CPC), mas, acima de tudo, assegura que o requerido pode evitar a consolidação da providência decretada através de uma acção de impugnação (cf. art. 371.º, n.º 1, CPC). Isto permite equilibrar a posição das partes: o requerente obtém, através de um procedimento cautelar, uma tutela cautelar que é potencialmente definitiva mais depressa do que obteria uma tutela definitiva através de uma acção, mas o requerido pode obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação.
Um outro problema que o caso em análise suscita é o de saber se existirão outros casos de inversão de contencioso necessária. A resposta (teórica) que se pode dar é a de que não se pode excluir que existam outras situações de inversão de contencioso necessária, de acordo com o critério acima referido: a inversão do contencioso é necessária sempre que a medida de prova exigida para todos os fundamentos da providencia seja a prova stricto sensu.
Isto não exclui que, mesmo sem se verificar qualquer inversão do contencioso necessária, alguns desses fundamentos também possam exigir uma prova stricto sensu, ou seja, requeiram uma medida de prova maior do que a normal mera justificação (cf. art. 368.º, n.º 1, CPC). Pense-se, por exemplo, no caso em que, para o decretamento de uma providência cautelar, é necessário determinar se houve uma declaração tácita de uma das partes; para que se verifique uma declaração tácita é necessário que a mesma possa ser deduzida de "factos que, com toda a probabilidade, a revelam" (art. 217.º, n.º 1, CC); pode então perguntar-se se, num procedimento cautelar, o tribunal pode considerar que se verificou uma declaração tácita, apesar de esse mesmo tribunal não ter adquirido a convicção segura de que os factos que a podem revelar se verificaram ou não ter ter conseguido inferir desses factos, "com toda a probabilidade", aquela declaração; a resposta parece dever ser negativa.
Algo de semelhante se pode dizer se, num procedimento cautelar, for necessário determinar o termo da curadoria pela certeza da morte do ausente (cf. art. 98.º, al. e), e 112.º, al, c), CC) ou a não verificação de uma condição pela certeza de que a mesma não se pode verificar (cf. art. 275.º, n.º 1, e 2237.º, n.º 1, CC). Nenhuma destas certezas pode ser substituída num procedimento cautelar por uma probabilidade séria.
5. Pode concluir-se que, apesar de, nos procedimentos cautelares, a regra ser a suficiência de uma mera justificação (cf. art. 368.º, n.º 1, CPC), a medida de prova exigida pelo direito substantivo (ou pelos valores do direito substantivo) tem de ser respeitada nos procedimentos cautelares. No caso mais extremo -- que é aquele em que todos os fundamentos da providência cautelar requerem uma prova stricto sensu --, isso conduz a uma inversão do contencioso necessária.
MTS