"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/09/2015

Responsabilidade civil do Estado por erro judiciário; consequências de TJ 9/9/2015 (C‑160/14)


1. Já houve a oportunidade de divulgar e de chamar a atenção para a importância de TJ 9/9/2015 (C‑160/14, Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português) (cf. Jurisprudência europeia (TJ) (61)). Volta-se agora ao tema para algumas reflexões complementares.

Após o acórdão do TJ parece claro que, sempre que numa acção de responsabilidade civil proposta contra o Estado, seja invocado um erro judiciário por violação do direito europeu, não pode ser exigida, ao contrário do que dispõe o art. 13.º, n.º 2, RRCEE, a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro.

Isto coloca a necessidade de avaliar a vantagem (ou a possibilidade) de manter o requisito da revogação da decisão que alegadamente contém o erro judiciário, quando este não incida sobre a interpretação ou a aplicação de direito europeu. Uma resposta afirmativa a esta questão é mais do que duvidosa, fundamentalmente por três razões:

-- Primeiro, porque origina uma duplicidade de regimes para o erro judiciário por violação do direito europeu (em que a prévia revogação da decisão não pode ser exigida) e para o erro por violação do direito interno e do direito decorrente de convenções internacionais (em que aquela revogação continuaria a ser requerida);

-- Segundo, porque exige colmatar a actual lacuna que se verifica no ordenamento jurídico português, dado que, neste momento, não se prevê nenhuma forma de impugnar, com fundamento em alegado erro judiciário, uma decisão que não é impugnável por recurso ordinário (nomeadamente, por motivo da alçada ou da circunstância de a decisão provir do STJ ou do STA);

-- A isto acresce, num plano mais geral, que a exigência da revogação prévia da decisão alegadamente errada subverte o sentido da indemnização que o lesado pretende obter do Estado; o que este lesado quer é ser ressarcido dos danos provocados por uma decisão ilegal, não afastar esta mesma decisão do ordenamento jurídico; aliás, a exigência da prévia revogação da decisão como pressuposto da responsabilidade do Estado não deixa, num certo sentido, de ser algo contraditória, porque estabelece como requisito da responsabilidade a supressão da própria fonte da responsabilidade (o que, pelo menos na grande maioria dos casos, tem como consequência que só poderão ser indemnizados os danos provocados entre o proferimento e a revogação da decisão).

2. Ainda assim, pode ensaiar-se a continuação da exigência da referida revogação (mesmo que se mantenha excluída desta exigência a alegada violação do direito europeu). Neste contexto, tem interesse voltar ao caso concreto. Após o proferimento do acórdão do TJ, não fosse encontrar-se ultrapassado o prazo estabelecido no art. 697.º, n.º 1, CPC, estaria aberta a possibilidade da interposição de um recurso de revisão contra STJ 25/2/2009 (08S2309) com fundamento no disposto no art. 696.º, al. f), CPC.
 
Apesar disto, parece dever concluir-se que a via para obter a revogação do acórdão que contém o erro judiciário exigida pelo art. 13.º, n.º 2, RRCEE não pode ser a que acabou por ser seguida no caso concreto, em conjugação com a interposição de um recurso de revisão de acordo com o disposto no art. 696.º, al. f), CPC. Recorde-se que o iter foi o seguinte:

-- Propositura de uma acção de indemnização contra o Estado por alegado erro judiciário de STJ 25/2/2009 (as afirmações de que "o juiz nacional não pode efectuar um reenvio que tenha por objecto [...] aferir da compatibilidade entre um preceito de direito interno e outro de direito comunitário" e de que "não se insere [...] na competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias saber se determinado normativo de direito comunitário é, ou não, aplicável (ainda que não directamente) a uma dada situação sobre a qual se debruçam os tribunais nacionais dos vários Estados Membros" não podem ser efectivamente acolhidas);

-- Formulação do pedido de apreciação prejudicial do TJ pelo tribunal no qual a acção de responsabilidade tenha sido proposta;

-- Confirmação pelo TJ do erro judiciário constante da decisão, o que, no plano teórico, abre a hipótese da interposição de um recurso de revisão com fundamento no disposto no art. 696.º, al. f), CPC.

Independentemente do que se pense, em termos de estratégia processual, sobre este iter, a verdade é que o objectivo do lesado não é impugnar a decisão alegadamente ilegal, mas antes obter uma indemnização por responsabilidade civil com base nessa mesma decisão. Dito de outro modo: o lesado não pretende obter a substituição da decisão alegadamente errada por uma outra decisão (como sucede no recurso de revisão), mas antes ser indemnizado pelos danos causados por essa decisão.

Além disto, o referido iter só poderia ser  seguido nos casos em que fosse invocada uma violação de direito europeu. Ora, conforme se referiu acima, para esta situação o TJ já definiu que não pode ser exigida a prévia revogação da decisão. Isto significa que, daqui em diante, bastará a qualquer interessado invocar que, segundo a jurisprudência do TJ, a acção de indemnização baseada em erro judiciário por violação do direito europeu não exige a prévia revogação da decisão pretensamente ilegal.

Resta ponderar a possibilidade de alargar a faculdade de interposição do recurso de revisão às hipóteses de alegado erro judiciário na interpretação ou aplicação de direito interno ou de direito internacional convencional. O principal problema desta solução (mesmo esquecendo a distinção quanto à origem do erro a ela subjacente) é aquele que já acima foi referido: o que o lesado pretende conseguir é a indemnização dos danos sofridos com a decisão alegadamente ilegal, não a supressão desta decisão. Aliás, muito frequentemente a revogação da decisão é absolutamente irrelevante para o lesado: se, por exemplo, uma decisão sobre o despejo de um imóvel foi proferida com base num erro de direito, o que o lesado pretende obter é uma indemnização pelo erro judiciário, não a revogação da decisão e a sua posterior substituição por qualquer outra (que, aliás, nunca conseguiria colocar o inquilino despejado como se não tivesse sido despejado).

3. Pelo acima exposto, a melhor solução seria mesmo a revogação da exigência da revogação da decisão na qual foi alegadamente cometido o erro judiciário como pressuposto da responsabilidade do Estado perante o lesado. Para salvaguardar a eventualidade em que o erro conste de um acórdão de uma das Relações ou do próprio STJ, poder-se-ia estabelecer o princípio de que, nas acções de responsabilidade propostas com base em erro judiciário, seria sempre admissível a interposição de recurso até ao STJ (podendo ainda discutir-se a formação de Desembargadores ou de Conselheiros a que seria atribuída competência para a apreciação do recurso de apelação ou de revista nessas acções).

MTS