Reenvio prejudicial; aproximação das legislações; manutenção dos direitos dos trabalhadores
em caso de transferência de empresas, de estabelecimentos ou de partes
de empresas ou de estabelecimentos; conceito de transferência de
estabelecimento; obrigação de apresentar um pedido de decisão
prejudicial nos termos do art. 267.°, § 3.º, TFUE; alegada violação do direito da União imputável a um órgão jurisdicional
nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de
direito interno; legislação nacional que subordina o direito à
reparação do prejuízo sofrido em razão dessa violação à prévia revogação
da decisão que originou esse prejuízo
1) O artigo
1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001,
relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à
manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de
empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de
estabelecimentos, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de
«transferência de estabelecimento» abrange uma situação em que uma
empresa ativa no mercado de voos charter é dissolvida pelo seu
acionista maioritário, ele próprio uma empresa de transporte aéreo, e em
que, em seguida, esta última assume a posição da sociedade dissolvida,
retomando os contratos de locação de aviões e os contratos de voos charter
em curso, desenvolve atividades antes prosseguidas pela sociedade
dissolvida, readmite alguns trabalhadores até então destacados nessa
empresa, atribuindo‑lhes funções idênticas às exercidas anteriormente, e
recebe pequenos equipamentos da referida empresa.
2) O
artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido
de que um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de
recurso judicial de direito interno é obrigado a submeter ao Tribunal de
Justiça da União Europeia um pedido de decisão prejudicial de
interpretação do conceito de «transferência de estabelecimento» na
aceção do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23, em circunstâncias,
como as do processo principal, marcadas simultaneamente por decisões
divergentes de instâncias jurisdicionais inferiores quanto à
interpretação desse conceito e por dificuldades de interpretação
recorrentes desse conceito nos diferentes Estados‑Membros.
3) O
direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal
de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados
aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida
por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser
interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que
exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por
esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática,
excluída.
II. Para melhor compreensão da decisão do TJ importa ter presente os seguintes dados retirados do acórdão:
"8 Em
19 de fevereiro de 1993, foi dissolvida a Air Atlantis, SA (a seguir
«AIA»), fundada em 1985, que exercia atividade no setor do transporte
aéreo não regular (voos de fretamento [charters]). No âmbito dessa dissolução, os demandantes no processo principal foram alvo de despedimento coletivo.
9 A
partir de 1 de maio de 1993, a TAP, que era a acionista principal da
AIA, passou a realizar parte dos voos já contratados pela AIA para o
período de 1 de maio a 31 de outubro de 1993. A TAP efetuou também
alguns voos charter, mercado em que, até então, não exercia
atividade, na medida em que as rotas em causa eram anteriormente
exploradas pela AIA. Para tal, a TAP utilizou parte do equipamento que a
AIA utilizava nas suas atividades, designadamente quatro aviões. A TAP
assumiu ainda o pagamento das rendas nos leasing contratados
relativos a esses aviões e passou a utilizar o equipamento de escritório
que a AIA possuía e que utilizava nas suas instalações em Lisboa e em
Faro (Portugal), bem como outros bens móveis. Além disso, a TAP veio a
contratar alguns trabalhadores da extinta AIA.
10 Em
seguida, os demandantes no processo principal intentaram no Tribunal do
Trabalho de Lisboa uma ação contra o despedimento coletivo de que foram
objeto, pedindo a sua reintegração na TAP e o pagamento das respetivas
remunerações.
11 Por
sentença do Tribunal do Trabalho de Lisboa, proferida em 6 de fevereiro
de 2007, a ação de impugnação do despedimento coletivo foi julgada
parcialmente procedente, tendo o referido tribunal ordenado a
reintegração dos demandantes no processo principal nas categorias
correspondentes, bem como o pagamento de indemnizações. O Tribunal do
Trabalho de Lisboa considerou que, no caso vertente, ocorreu transmissão
de estabelecimento, pelo menos em parte, porque se manteve a sua
identidade e prossecução da mesma atividade, passando a TAP a ocupar a
posição jurídica de empregador nos contratos de trabalho.
12 Desta
sentença foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
que, no seu acórdão de 16 de janeiro de 2008, alterou a decisão
proferida em primeira instância, na parte em que havia condenado a TAP
na reintegração dos demandantes no processo principal e no pagamento de
indemnizações, tendo declarado que o direito de recurso contra o
despedimento coletivo em causa tinha caducado
.
13 Os
demandantes no processo principal interpuseram então recurso de revista
no Supremo Tribunal de Justiça, que, no seu acórdão de 25 de fevereiro
de 2009, declarou que o despedimento coletivo não enfermava de qualquer
ilicitude. O referido tribunal observou que, para que haja transmissão
de estabelecimento, não basta a «simples prossecução» da atividade,
sendo ainda necessário que se verifique a conservação da identidade do
estabelecimento. Ora, no caso vertente, a TAP, na realização dos voos
relativos ao verão de 1993, não fez uso de uma «entidade» com a mesma
identidade da «entidade» que antes pertencera à AIA, pelo que, falecendo
a identidade das duas «entidades» em causa, não se concebe a
possibilidade de ocorrer uma transmissão de estabelecimento.
14 O
Supremo Tribunal de Justiça considerou ainda que não se tinha
verificado passagem de clientela da AIA para a TAP. Além disso, segundo o
mesmo tribunal, a AIA era titular de um estabelecimento vinculado a
certo bem que era uma licença, a qual não era transmissível, o que teria
impossibilitado o trespasse do estabelecimento, podendo apenas ser
objeto do negócio os bens singulares e não o próprio estabelecimento.
15 No
que se refere à aplicação do direito da União, o Supremo Tribunal de
Justiça observou que o Tribunal de Justiça, confrontado com situações em
que uma empresa prosseguia a atividade até então levada a cabo por
outra, considerou que essa «mera circunstância» não permitia concluir
pela transferência de uma entidade económica, uma vez que «uma entidade
não pode ser reduzida à atividade de que está encarregada».
16 Tendo
alguns dos demandantes no processo principal requerido ao Supremo
Tribunal de Justiça que submetesse ao Tribunal de Justiça um pedido de
decisão prejudicial, aquele considerou que «[a] obrigação de reenvio
prejudicial, que impende sobre os órgãos jurisdicionais nacionais cujas
decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito
interno, só se afirma quando esses mesmos órgãos jurisdicionais
considerem que o recurso ao direito [da União] é necessário para a
solução do litígio que perante eles corre e, além disso, que se tenha
suscitado uma questão de interpretação desse direito». Além disso, tendo
em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à
interpretação das normas da União relativas à transmissão de
estabelecimento, não existe «dúvida relevante» na interpretação das
referidas normas, «que implique a necessidade do reenvio prejudicial».
17 Segundo
o Supremo Tribunal de Justiça, «[o] próprio Tribunal de Justiça,
expressamente reconheceu que ‘a correta aplicação do direito [da União]
pode impor‑se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida
razoável quanto à solução a dar à questão suscitada’, afastando, por
conseguinte, também nesta hipótese, a obrigação de reenvio prejudicial.
Ora, [segundo o órgão jurisdicional nacional,] face ao conteúdo das
normas das [disposições do direito da União] referenciadas pelos
[demandantes no processo principal], face à interpretação que das mesmas
vem sendo feita pelo [Tribunal de Justiça] e face aos contornos do caso
[…] que foram ponderados […], inexiste dúvida relevante na operação
interpretativa que implique a necessidade do reenvio prejudicial [...]».
18 O
Supremo Tribunal de Justiça sublinhou ainda que «[...] o [Tribunal de
Justiça] tem uma vasta e já sedimentada jurisprudência sobre a
problemática da interpretação das normas [do direito da União] que se
reportam à ‘transmissão de estabelecimento’, sendo que a […] Diretiva
[2001/23] [...] traduz já a consolidação dos conceitos nela enunciados
por força daquela jurisprudência e estes apresentam‑se agora com uma
clareza em termos de interpretação jurisprudencial (comunitária e,
mesmo, nacional) que dispensa[va], no caso vertente, a consulta prévia
ao Tribunal de Justiça […]».
19 Os
demandantes no processo principal intentaram então uma ação de
responsabilidade civil extracontratual contra o Estado português,
pedindo que este fosse condenado a indemnizar determinados danos
patrimoniais sofridos. Invocaram como fundamento de recurso o facto de o
acórdão em causa do Supremo Tribunal de Justiça ser manifestamente
ilegal, por fazer uma interpretação errada do conceito de «transferência
de estabelecimento» na aceção da Diretiva 2001/23 e porque aquele
tribunal violou o seu dever de submeter ao Tribunal de Justiça questões
de interpretação do direito da União pertinentes.
20 O
Estado português alegou que, em conformidade com o artigo 13.°, n.° 2,
do RRCEE, o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação
da decisão danosa pela jurisdição competente, recordando que, não tendo
sido revogado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não havia lugar
ao pagamento da indemnização pedida.
21 O
órgão jurisdicional de reenvio afirma que importa saber se o acórdão
proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça é manifestamente ilegal e se
este fez uma interpretação incorreta do conceito de «transferência de
estabelecimento», à luz da Diretiva 2001/23 e face aos elementos de
facto de que dispunha. Além disso, importa ainda saber se o Supremo
Tribunal de Justiça estava obrigado a proceder ao reenvio prejudicial
que lhe havia sido pedido.
22 Foi
nestas condições que as Varas Cíveis de Lisboa decidiram suspender a
instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões
prejudiciais:
«1a – A Diretiva 2001/23[…], em especial o seu art° 1° n° 1, deve ser interpretad[a] no sentido de que o conceito de ‘transferência de estabelecimento’
abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado de voos
charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, ela
própria uma empresa ativa no setor da aviação e, no contexto da
liquidação, a empresa mãe:
i) – assume a posição
da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos
contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;
ii) – desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;
iii) – readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e os coloca a exercer funções idênticas;
iv) – recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida?
2ª – O
artigo 267° […] TFUE deve ser interpretado no sentido de que o Supremo
Tribunal de Justiça, perante a factualidade descrita na [primeira]
questão […] e o facto de os tribunais nacionais inferiores que
apreciaram o caso terem adotado decisões contraditórias, estava obrigado
a proceder ao reenvio, para o Tribunal de Justiça […], de questão
prejudicial sobre a correta interpretação do conceito de ‘transferência
de estabelecimento’ na aceção do artigo 1° n° 1 da Diretiva 2001/23/CE?
3ª – O
Direito [da União] [...] e, em especial, os princípios formulados pelo
Tribunal de Justiça […] no acórdão Köbler [C‑224/01, EU:C:2003:513]
sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares
em virtude de uma violação de Direito [da União] [...] cometida por um
órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, obsta à
aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de
indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?»"
III. Dada a importância do acórdão para a ordem jurídica portuguesa, convém conhecer as conclusões do AG 11/6/2015 (C-160/14) (de que, aliás, o TJ não se afastou):
[...] Atentas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas pelas Varas Cíveis de Lisboa da seguinte forma:
1) O
artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva deve ser interpretado no sentido de que o
conceito de transferência de estabelecimento abrange uma situação em
que uma empresa ativa no mercado dos voos charter é dissolvida
por decisão do seu acionista maioritário, que é, ele próprio, uma
empresa com atividade no setor da aviação e que, no âmbito da liquidação
da primeira empresa:
– Se sub-roga
na posição da sociedade dissolvida nos contratos de locação de aviões e
nos contratos de voos de fretamento em curso com os operadores
turísticos;
– desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;
– readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e os coloca a exercer funções idênticas, e
– recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida.
2) O
artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido
de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são
suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, como o
Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), é obrigado, em circunstâncias
como as do processo principal, a submeter a questão prejudicial ao
Tribunal de Justiça.
3) Em
circunstâncias como as do processo principal, o direito da União, e em
especial a jurisprudência decorrente do acórdão Köbler (C‑224/01,
EU:C:2003:513), deve ser interpretado no sentido de se opõe a um regime
nacional de responsabilidade do Estado que condiciona o direito à
indemnização à prévia revogação da decisão danosa.
IV. Do exposto anteriormente já ressaltou, certamente, a enorme relevância do acórdão para a ordem jurídica portuguesa. Em resumo, importa realçar o seguinte:
-- O acórdão (na sequência de TJ 30/9/2003 (C-224/01, Köbler/Republik Österreich)) reafirma o princípio da obrigatoriedade da submissão ao TJ, pelos tribunais que decidem sem possibilidade de recurso, das questões prejudiciais relativas ao direito europeu, entendendo, nesta base, que o STJ violou, na apreciação do caso concreto que então decidiu, essa mesma obrigação; neste sentido, o acórdão constitui uma importante chamada de atenção dos tribunais portugueses para a necessidade de cumprir a obrigação de submissão das questões prejudiciais europeias ao TJ;
-- O acórdão, ao considerar que o disposto no art. 13.º, n.º 2, RRCEE -- que exige, como pressuposto da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente -- viola o direito europeu, constitui um forte argumento para que, ao nível interno, se possa considerar essa mesma disposição inconstitucional, nomeadamente porque o direito interno continua a não prever nenhuma forma de rever as decisões insusceptíveis de recurso com fundamento em erro judiciário; a opção do legislador do RRCEE é compreensível, mas tem de ser necessariamente acompanhada da possibilidade de impugnar as decisões que, por motivo de alçada ou de disposição especial ou porque foram proferidas pelo STJ ou pelo STA, não admitem nenhuma outra impugnação ordinária;
-- Por fim, não pode deixar de ser sublinhada a exemplar actuação das Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, que souberam utilizar os mecanismos europeus de forma correcta e com total propósito.
MTS