"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/09/2015

Posição do transmissário posterior na sequência de uma resolução em benefício da massa insolvente



1. O disposto no art. 120.º, n.º 1, do CIRE permite que os actos prejudiciais à massa insolvente que sejam praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência possam ser resolvidos em benefício dessa massa (sobre o conceito de massa insolvente, cf. art. 46.º, n.º 1, CIRE). A resolução pode ser condicional – hipótese em que se exige a má-fé do terceiro adquirente (cf. art. 120.º, n.º 4, CIRE) – ou incondicional – situação em que se dispensa essa má-fé (art. 120.º, n.º 3 e 4, e 121.º, n.º 1 caput, CIRE).

A resolução deve ser efectuada, sem o recurso a qualquer meio judicial, pelo administrador da insolvência (art. 123.º, n.º 1, CIRE). A resolução pode ser impugnada no prazo de três meses pelo devedor insolvente, pelo terceiro adquirente ou por um transmissário posterior (art. 125.º CIRE). Na ausência de qualquer registo da resolução e do carácter receptício da resolução, deve entender-se que qualquer prazo para a impugnação só se conta a partir da possibilidade do conhecimento da resolução pelo impugnante.

A resolução implica a reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido (art. 126.º, n.º 1, CIRE; fica em aberto a questão de saber como justificar a resolução de uma omissão). Por exemplo: se o devedor tiver transmitido a um terceiro um imóvel e se esta alienação for resolvida pelo administrador da insolvência por ser prejudicial à massa insolvente, isso implica que esse imóvel é reintegrado nesta massa.

2. Pode suceder que, antes da resolução em benefício da massa, o bem transmitido ou cedido pelo devedor agora insolvente tenha sido transmitido ou cedido pelo adquirente (por convenção, terceiro adquirente) a um terceiro (por convenção, transmissário posterior). Nesta hipótese, o art. 124.º, n.º 1, CIRE determina – aliás, de forma paralela ao que se encontra no art. 613.º, n.º 1, CC – que a resolução é oponível a este transmissário posterior se este se encontrar de má-fé, isto é, se este terceiro conhecer quer que o devedor (primeiro transmitente) se encontrava em situação de insolvência, quer que o acto realizado por esse devedor é prejudicial à massa e que ele se encontrava em situação de insolvência, quer ainda que o processo de insolvência contra aquele primeiro transmitente já se tinha iniciado (art. 120.º, n.º 5, CIRE). Em conclusão: 

– A resolução condicional é oponível ao terceiro adquirente, se este se encontrar de má-fé (cf. art. 120.º, n.º 4, CIRE), e é oponível ao transmissário posterior, se este também se encontrar de má-fé (cf. art. 124.º, n.º 1, CIRE);

– A resolução incondicional é sempre oponível ao terceiro beneficiário (cf. art. 120.º, n.º 3 e 4, e 121.º, n.º 1 caput, CIRE), mas só é oponível ao transmissário posterior se este se encontrar de má-fé (cf. art. 124.º, n.º 1, CIRE). 

O n.º 2 do art. 124.º CIRE, à semelhança do estabelecido no art. 613.º CC, manda aplicar o regime da oponibilidade da resolução a transmissários posteriores à constituição a favor do transmissário posterior de quaisquer direitos sobre os bens transmitidos pelo devedor insolvente ao terceiro adquirente. Por exemplo: se o transmissário posterior se encontrar de boa-fé e se constituir a seu favor uma hipoteca sobre os bens que foram alienados pelo devedor insolvente e que se encontram no património do terceiro adquirente, essa hipoteca subsiste após a resolução. Nesta hipótese, apesar de o bem hipotecado regressar, por força da resolução, à massa insolvente do primeiro alienante, deve entender-se que o transmissário posterior não pode reclamar o seu crédito nessa insolvência, dado que ele não é credor da insolvência (o seu devedor é o terceiro adquirente). Disto parece resultar que o bem só pode ser liquidado na execução enquanto bem hipotecado, dado que, como o credor hipotecário (transmissário posterior) não pode reclamar o seu crédito na insolvência, não há forma de extinguir a hipoteca neste mesmo processo.

Contra esta solução não pode ser invocado o disposto no art. 48.º, al. e), CIRE, porque este preceito qualifica como subordinado apenas o crédito que o terceiro de má-fé adquira sobre a insolvência em consequência da resolução. O crédito do transmissário posterior não é, como se referiu, sobre a insolvência, mas sobre o terceiro adquirente, pelo que, por este motivo, não pode ser incluído entre os créditos subordinados.

3. Igualmente complicada é a resposta ao problema de saber o que sucede quando, numa execução instaurada pelo transmissário posterior contra o terceiro adquirente (seu devedor), for penhorado o bem transmitido a este terceiro pelo primeiro alienante e este bem regressar entretanto, por força da resolução, à massa insolvente deste primeiro alienante. Tudo está em saber se, neste caso, se aplica o disposto no art. 88.º, n.º 1, CIRE, que determina a suspensão de quaisquer diligências executivas requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente.

É certo que a execução proposta pelo transmissário posterior atinge um bem que, após a resolução, integra a massa insolvente do primeiro alienante, mas essa execução não se pode considerar como tendo sido proposta por um credor deste insolvente (mas antes por um credor do terceiro adquirente). Sendo assim, parece dever entender-se que, apesar de nessa execução ser penhorado um bem que integra a massa insolvente, essa execução instaurada pelo transmissário posterior contra o terceiro adquirente não pode ser suspensa. Isto significa que também não se pode reconhecer àquele transmissário posterior a faculdade de reclamar o seu crédito na insolvência do primeiro alienante.

Dado que o bem, após a resolução, deixa de integrar o património do (executado) terceiro adquirente, pode ainda perguntar-se o que é necessário para que a resolução opere contra o transmissário posterior na execução por ele instaurada e para que nesta execução não seja penhorado e vendido esse bem. Pode nomeadamente questionar-se se é necessário que o administrador da insolvência deduza embargos de terceiro para evitar a penhora do bem que foi objecto da resolução (cf. art. 342.º, n.º 1, CPC). Parece dever entender-se que tal não é necessário, sendo suficiente, para obter o levantamento da penhora sobre esse bem, que o administrador da insolvência invoque a resolução nessa execução. 

Após esta invocação caberá ao transmissário posterior (e exequente) impugnar a resolução, alegando que se encontra de boa-fé e que, por isso, a resolução não lhe é oponível. Pode apenas discutir-se se, como impõe o art. 125.º CIRE, essa impugnação deve ser dependente do processo de insolvência ou se aquela impugnação pode ser dependente do processo de execução que também se encontra pendente. Apesar de o art. 125.º CIRE ter sido construído certamente a pensar no caso em que nenhuma outra acção se encontrava pendente aquando da impugnação da resolução, não só não se vislumbram inconvenientes, como até se encontram algumas vantagens em que, apesar da pendência da execução, a impugnação da resolução corra como dependência do processo de insolvência.

4. Também é pensável que o transmissário posterior venha a ser declarado insolvente. Nesta hipótese, existem duas insolvências pendentes: aquela que foi requerida contra o devedor (primeiro alienante) e aquela que foi instaurada contra o transmissário posterior. Se a resolução for oponível a este transmissário posterior, o bem que lhe foi transmitido pelo terceiro adquirente não pode integrar a sua massa insolvente. 

Nesta situação deve entender-se que o administrador da insolvência do primeiro alienante pode solicitar a restituição ou a separação do bem ao administrador da insolvência do transmissário posterior (cf. art. 141.º, n.º 1, al. c), CIRE), incumbindo a este transmissário posterior (insolvente) impugnar a resolução (art. 125..º CIRE). Esta mesma faculdade também tem de ser reconhecida a qualquer credor reclamante na insolvência (cf. art. 141.º, n.º 1 caput, e 130.º, n.º 1, CIRE), sem que isto possa significar, no entanto, que a má-fé ou a boa-fé de qualquer credor reclamante tenha qualquer relevância para a oponibilidade da resolução a esse credor. Para aferir esta oponibilidade, apenas releva a má-fé do transmissário posterior.

MTS