"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/09/2015

Jurisprudência (196)



Excepções peremptórias; caducidade; condições do conhecimento


I. O sumário de RP 14/9/2015 (388/11.8TJPRT-A.P1) é o seguinte:

1. O excecionante tem o ónus de alegar os factos integradores da exceção perentória que deduz.

2. As prestações periódicas são uma das modalidades das prestações duradouras, sendo que estas últimas, por sua vez, se distinguem das prestações fracionadas ou repartidas. 

3. Nas prestações duradouras, o tempo influi decisivamente na determinação do seu objeto, especialmente do seu montante, enquanto nas prestações fracionadas o decurso do tempo contende apenas com o modo de execução da prestação, servindo o tempo apenas para permitir a liquidação de uma certa prestação, de modo repartido, dividindo-a em duas ou mais prestações que se sucedem separadas por um maior ou menor lapso temporal.

4. Dentro das prestações duradouras distinguem-se as prestações de execução continuada, ou seja, aquelas em que o seu cumprimento é ininterrupto, das prestações reiteradas ou com trato sucessivo, que se renovam em prestações singulares sucessivas, podendo estas, por sua vez, ser periódicas ou não periódicas, consoante se renovem num dado período temporal certo ou não.

5. As despesas de conservação, ainda que impostas legalmente com uma periodicidade mínima, não são necessariamente periódicas pois que, se podem ser fixadas a forfait, para serem cobradas anualmente, na veste das denominadas quotizações do condomínio, podem ter caráter pontual, determinado em função do concreto custo das obras em causa e do momento em que se decide efetuar certa obra.

6. Omitindo os excecionantes a alegação de factos que permitam concluir que os montantes exigidos nestes autos constituem prestações periódicas, o tribunal
a quo estava em condições de julgar improcedente a exceção de prescrição fundada na previsão da alínea g), do artigo 310º do Código Civil. 

II. Da fundamentação do acórdão consta a seguinte afirmação:
 
"[...] se, como justamente salienta o Sr. Professor Teixeira de Sousa no seu blog do IPPC[...], a procedência de uma exceção perentória não pode ser decidida sem que antes se provem os factos constitutivos do direito relativamente à qual opera essa exceção[...], já o mesmo não sucede quando se trate de julgar improcedente uma exceção, como é o caso dos autos". 


Como se refere em nota de rodapé, o tema do conhecimento das excepções peremptórias foi tratado no post Conhecimento de excepções peremptórias no despacho saneador? Depende!... . Neste momento, só há que agradecer a simpática citação e remeter para o referido post.

III. a) Na nota de rodapé 13 que acompanha a afirmação acima transcrita é realizada a seguinte observação:

"Pela nossa parte, temos fortes reservas em seguir o entendimento do Sr. Professor Teixeira de Sousa quando esteja em causa o conhecimento da caducidade do exercício de um direito potestativo, como seja, por exemplo, o de investigação de paternidade, não se nos afigurando existir qualquer entrave, antes pelo contrário, a que seja conhecida e julgada procedente antes da determinação dos factos constitutivos do direito intempestivamente exercido".

Os direitos potestativos são uma realidade bastante mais complexa do que pode parecer e tornam-se ainda mais complexos quando têm de ser exercidos através dos tribunais (como é o caso do direito à investigação da paternidade -- ou, talvez melhor, do direito ao estabelecimento da paternidade). A doutrina alemã costuma distinguir entre os direitos potestativos -- designados habitualmente como Gestaltungsrechte depois da sua "descoberta" por Seckel, FG Richard Koch (1903), 205 ss. -- e os "direitos de acção potestativos" -- os chamados Gestaltungsklagerechte (cf., v. g., Bötticher, FS Hans Dölle I (1963), 54 ss.). Uma boa exposição sobre a dogmática dos direitos potestativos encontra-se em Hattenhauer, Einseitige private Rechtsgestaltung / Geschichte und Dogmatik (2011), 188 ss., 197 ss. e 229 ss.

A este propósito tem interesse um rápido apontamento de história dogmática. Durante o século XIX, alguns processualistas descobriram que havia um grupo de acções e de sentenças que não se encaixavam nas tradicionais acções e sentenças condenatórias; foi com base nestas reflexões que E. Seckel (1864-1924) veio esclarecer que a essas acções e sentenças correspondia um novo tipo de direito subjectivo -- precisamente, o direito potestativo (cf. FG Richard Koch (1903), 205 ss). Portanto, não foi o direito potestativo que originou a acção constitutiva como o correspondente meio de tutela, mas o contrário: primeiro foi individualizado o meio de tutela e depois a respectiva categoria substantiva.  

Os direitos potestativos de exercício necessariamente jurisdicional são direitos à constituição de uma determinada situação jurídica por um tribunal. Depois de a situação jurídica se encontrar constituída pelo tribunal, não mais se pode falar de um direito à constituição dessa situação. Pode assim afirmar-se que, quando a paternidade é estabelecida pelo tribunal, o direito ao seu estabelecimento deixa de existir, pois que não pode subsistir um direito ao estabelecimento da paternidade depois de o tribunal ter estabelecido essa mesma paternidade. Todos os direitos potestativos se extinguem quando se constitui a situação que decorre do seu exercício.

Quando se fala de direitos potestativos, há que perspectivar o processo civil, não como um meio de tutela, mas antes como um meio de exercício desses direitos. O que o autor pretende obter não é a tutela do seu direito ao estabelecimento da paternidade (aquela parte não pretende o reconhecimento daquele direito), mas antes o estabelecimento da paternidade (ou seja, a situação que decorre do exercício daquele direito). É aliás por isso que os direitos potestativos são exercidos numa acção constitutiva (art. 10.º, n.º 2 e 3, al. c), CPC) e originam uma sentença constitutiva (como é o caso, por exemplo, da sentença que estabelece a paternidade).

É esta circunstância que justifica que a caducidade de um direito potestativo possa ser conhecida durante o seu exercício em juízo, necessariamente antes da constituição da situação jurídica decorrente desse exercício. A excepção peremptória é sempre relativa, porque se opõe sempre a uma pretensão; a excepção de caducidade é oponível ao direito ao estabelecimento da paternidade, não a este estabelecimento. O que pode caducar é o direito ao estabelecimento da paternidade, não este estabelecimento. Aliás, se a caducidade se referisse ao estabelecimento da paternidade, então teria de ser a partir deste estabelecimento que se iniciaria a contagem do respectivo prazo. A circunstância de se considerar um prazo de caducidade que é anterior ao estabelecimento da paternidade mostra que essa caducidade só se pode referir ao direito a esse estabelecimento, e não a este mesmo estabelecimento.

Do exposto resulta que a caducidade só pode incidir sobre o direito ao estabelecimento da paternidade e que, por conseguinte, essa caducidade não pressupõe esse estabelecimento. Pelo contrário: só faz sentido conhecer da caducidade do direito ao estabelecimento da paternidade antes do estabelecimento da paternidade. Aquela caducidade destina-se a evitar o estabelecimento da paternidade, não a destruir ou a paralisar uma paternidade estabelecida.

Resta acrescentar que o acima afirmado vale para a invocação da excepção de caducidade contra qualquer direito potestativo que seja exercido em juízo (como, por exemplo, um direito à aquisição, à anulação, à revogação, à resolução ou à impugnação). A excepção de caducidade visa obstar ao exercício desse direito, não destruir ou paralisar a situação jurídica resultante desse exercício.

b) Nestes termos, não há qualquer problema em subscrever a afirmação de que nada obsta a que a excepção de caducidade "seja conhecida e julgada procedente antes da determinação dos factos constitutivos do direito intempestivamente exercido", ou seja, antes do estabelecimento da paternidade. Em todo o caso, são indispensáveis duas observações:

-- A caducidade não pode ser oposta a um direito ao estabelecimento da paternidade sem qualquer base factual, ou seja, fundamentado em factos sem relevância jurídica, ou feito valer por alguém sem legitimidade para tal; se o direito ao estabelecimento da paternidade invocado pelo autor não puder existir ou se este demandante não puder ser o seu titular, a caducidade não pode ser oposta a esse direito; ter-se-á de concluir que, no mínimo, a caducidade só é oponível a um direito ao estabelecimento potencialmente existente;

-- A caducidade não pode ser oposta a um direito ao estabelecimento da paternidade que se verificou não existir; depois de o tribunal ter concluído que a acção de investigação não pode ser julgada procedente, não é possível julgar a acção improcedente com fundamento na caducidade do direito ao estabelecimento; a caducidade não pode ser oposta a um direito ao estabelecimento inexistente, ou seja, a caducidade não é cumulável com nenhum outro fundamento de improcedência da acção. 


MTS