"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/03/2017

Informação (173)



Vìdeo de divulgação


O jurista brasileiro Gustavo Nogueira divulga e comenta um paper português sobre a omissão do dever de cooperação do tribunal. Para aceder ao vídeo clicar em Liceu ACE.



Jurisprudência estrangeira (24)


Assinatura; autoria

 

BGH 29.11.2016, VI ZB 16/16, decidiu o seguinte: 

Atendendo à variabilidade que, mesmo assinaturas de uma mesma pessoa, mostram, que utilizar, pelo menos quando a autoria seja segura, um padrão generoso nas exigências colocadas a uma assinatura. Para a questão de saber se existe uma assinatura válida, não é determinante a legibilidade ou a semelhança do produto escrito à mão com as letras do nome, mas tudo depende de se o nome completo, embora não necessariamente legível, se encontra reproduzido.


Jurisprudência (588)


Penhora de créditos;
reconhecimento tácito; oposição à execução


I. O sumário de RG 24/11/2016 (1148/14.0T8VNF-A.G1) é o seguinte:

1 - Na penhora de créditos, se o devedor nada disser no prazo estipulado, entende-se que ele reconhece a existência da obrigação, nos termos da indicação do crédito à penhora.
 
2 - Esse reconhecimento, no entanto, constitui uma presunção que é ilidível, não na ação executiva propriamente dita, mas em sede de oposição à execução.
 
3 - Na ação executiva, o título formado pela declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito, constitui o direito exequendo e comprova-o, embora só presumidamente, como é regra.
 
4 - Porém, o facto do crédito exequendo ser exigível contra o devedor, não significa que se possa partir, desde logo e sempre, para a penhora. 
 
5 - É necessário observar, antes, os demais procedimentos legais pertinentes. Designadamente, sendo aplicável a forma de processo ordinária, proferir despacho liminar, nos termos do artigo 726.º do Código de Processo Civil.
 
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] o objecto do presente recurso [...] resume-se à questão de saber, por um lado, se o crédito penhorado pela comunicação datada de 28/05/2010, existe e é exigível ao Apelante; e, depois, em caso de resposta afirmativa à questão anterior, se a ordem constante do despacho recorrido – entenda-se o despacho datado de 12/02/2016, em razão do estipulado no artigo 617.º, n.º 2, do Código de Processo Civil - tem apoio legal.

Vamos, então, por partes.

No que toca à primeira questão, tem de ser chamado à colação o regime processual que vigorava à data em que a referida comunicação foi feita; ou seja, o regime constante do artigo 856.º do Código de Processo Civil anterior ao actual [...].

Nele, para o que ora interessa, estipulava-se o seguinte, a propósito da penhora de créditos:

“1- A penhora de créditos consiste na notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução.

2- Cumpre ao devedor declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução.

3- Não podendo ser efectuadas no acto da notificação, as declarações referidas no número anterior são prestadas por escrito ao agente de execução, no prazo de 10 dias.

4- Se o devedor nada disser, entende-se que ele reconhece a existência da obrigação, nos termos da indicação do crédito à penhora”.

No caso presente, é pacífico, porque até a Apelante o reconhece, que a mesma foi notificada por comunicação datada de 28/05/2010, de que se considerava penhorado o crédito que o executado, José L, detinha sobre ela (Apelante), em consequência da prestação de serviços, até ao montante de 16.500,00€. Tal como é pacífico, porque a Apelante também o reconhece (artigo 12.º do requerimento dirigido a Juízo no dia 06/09/2016), que, no prazo de dez dias subsequentes a essa comunicação, a mesma nada disse. Só no dia 05/07/2010, informou a Agente de Execução que o executado não era seu credor a qualquer título.

Por conseguinte, em razão do estipulado no n.º 4 do citado artigo 856.º, deve entender-se que a Apelante reconhece a existência da obrigação, nos termos em que o crédito foi indicado à penhora.

“Este reconhecimento, no entanto, não pode ser encarado como um reconhecimento inabalável, fundado numa presunção “juris et de jure” decorrente de um cominatório pleno ou semipleno como o existente entre partes processuais, pois é bastante diferente da inacção de quem, sendo parte na causa, e estando citado para a acção, pura e simplesmente se não quis defender de factos que lhes eram directamente imputáveis. 

Na cominação entre as partes, o sujeito cominado conhecia a causa de pedir e o pedido contra ele era formulado, e poderia logo equacionar as consequências dessa omissão comportamental em toda a sua extensão, havendo assim uma relação de conhecimento directo, que justifica a proporcionalidade entre a falta de acção e as consequências.

Aqui, pelo contrário, estamos perante uma sanção imposta a quem é estranho à causa, que não conhece os exactos termos de
la” [Ac. RP de 01/03/2005, Proc. 0427011 [...].

De modo que é hoje pacífico entre a doutrina e jurisprudência [...], que esse reconhecimento constitui uma presunção ilidível.

Mas, note-se: ilidível, não na ação executiva, mas em sede de oposição à execução (artigo 860.º, n.º 4, do Código de Processo Civil anterior e artigo 777.º, n.º 4, do Código de Processo Civil actual). 

Na ação executiva, o título formado pela “declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito” (artigos 860.º, n.º 3, e 777.º, n.º 3, dos Códigos citados) constitui o direito exequendo e comprova-o, embora só presumidamente, como é regra (4).

De modo que também no caso em apreço, o crédito resultante do título assim formado é exigível ao Apelante.

Mas, o facto de ser exigível não significa que se possa partir, desde logo, para a penhora, como se fez no despacho recorrido (na versão reformada). É necessário observar, antes, os demais procedimentos legais pertinentes. 

E, assim, não procedendo o devedor ao depósito da prestação devida em tempo oportuno, reabre-se uma nova execução, desta vez, contra o devedor, por impulso do exequente, a qual está sujeita ao rito próprio da forma de processo que lhe for aplicável.

No caso, esse rito é, sem dúvida, aquele a que está previsto para a forma ordinária (artigo 550.º do Código de Processo Civil), a qual está sujeita, por regra, a despacho liminar, nos termos do artigo 726.º do mesmo Código.

Ora, não foi esse o rito seguido. 

Por conseguinte, ocorrendo violação da lei, o despacho recorrido não pode manter-se em vigor, devendo, assim, ser revogado e substituído por outro que proceda àquela apreciação liminar."

III. [Comentário, extraído de uma obra em preparação]: "Apesar do reconhecimento tácito do crédito do executado pelo terceiro devedor (cf. art. 773.º, n.º 4), isso não impede que, na execução contra ele movida, o terceiro devedor possa deduzir o incidente de oposição à execução (cf. art. 728.º, n.º 1, e 856.º, n.º 1)[1]. Neste caso, verificando-se nesta oposição que o crédito não existe (contrariando-se, assim, aquele reconhecimento tácito), o terceiro devedor fica responsável pelos danos causados ao exequente e pode liquidar-se no próprio incidente de oposição a sua responsabilidade, se aquele exequente fizer valer na contestação apresentada no incidente o seu direito à indemnização (art. 777.º, n.º 4)."


[1] Cf. Lebre de Freitas, ROA 62 (2002), 400 s.


MTS



30/03/2017

Bibliografia (491)



-- Breda, V., The Objectivity of Judicial Decisions / A Comparative Analysis of Nine Jurisdictions (Peter Lang: Frankfurt am Main, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Warszawa, Wien 2017)

-- Lye, M. A., Der gutgläubige Erwerb der streitbefangenen Sache (Peter Lang: Frankfurt am Main, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Warszawa, Wien 2017)

-- Puyol Capilla, P./Pinto Palacios, F., La prueba en la era digital (La Ley: Madrid 2017)

 

Jurisprudência (587)


Condomínio; assembleia de condóminos;
deliberação; impugnação; legitimidade passiva


I. O sumário de RG 24/11/2016 (130/15.4T8MTR.G1) é o seguinte: 

1 - O condómino que pretenda impugnar em juízo deliberações tomadas numa dada assembleia terá de intentar a correspondente ação contra todos os condóminos individualmente considerados, com exceção daqueles que tenham manifestado a sua discordância relativamente à deliberação.
 
2 – No entanto, a fim de evitar a intervenção efetiva de todos os condóminos o A., ao abrigo do disposto no art. 1433º, nº 6, do C. Civil, poderá requerer a citação de todos os réus apenas na pessoa do administrador ou o representante especial.
 
3 – Caso tenha sido demandada a administração do condomínio em nome próprio, o A. não se pode socorrer do incidente de intervenção de terceiros para fazer intervir na ação os condóminos, uma vez que aquela não se encontra numa posição igual à do réu, sendo antes um caso de demanda de entidade diversa daquela(s) que devia estar na ação, não sendo. pois, uma situação de regularização da instância através da intervenção das restantes pessoas que deveriam estar na ação.
 
II. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"Como se vê dos arts. 1430º a 1433º, 1435º e 1436º do C. Civil, o administrador é o órgão executivo da administração das partes comuns do edifício, enquanto a assembleia é o órgão deliberativo. Entre os poderes do administrador contam-se os inerentes à representação judiciária contra quem sejam propostas ações de impugnação de deliberações da assembleia, salvo se outra pessoa for nomeada pela assembleia, conforme preceitua o art. 1433º, nº 6, do C. Civil.

Nas ações de impugnação das deliberações a representação judiciária do condomínio cabe ao administrador ou a outra pessoa para o efeito designada pela assembleia.


[...] a propósito da necessidade de propor a ação contra todos os condóminos, com exceção daqueles que tenham manifestado a sua discordância relativamente à deliberação, há que ter presente o preceituado n.º 6 do art. 1432º, segundo o qual, as deliberações têm de ser comunicadas a todos os condóminos ausentes, por carta registada com aviso de receção, no prazo de 30 dias e estes têm, após a receção da carta, 90 dias para comunicar por escrito, à assembleia de condóminos, o seu assentimento ou a sua discordância com a deliberação (n.º 7), sendo que o seu silêncio deve ser considerado como aprovação da deliberação (n.º 8).

Assim, a Autora deveria ter intentado a ação contra todos os condóminos, com exceção dos que votaram desfavoravelmente a deliberação ora impugnada, identificando-os.

Na verdade, as ações de anulação de deliberações da assembleia de condóminos devem ser propostas contra os condóminos porque são eles que têm interesse em contradizer a posição de quem visa destruir os efeitos de uma decisão relativa ao interesse comum subjacente àquelas deliberações, só fazendo sentido uma decisão judicial de anulação de um ato que a todos obriga igualmente se for oponível a todos os condóminos, sendo um caso de litisconsórcio necessário passivo (arts. 30º, nºs 1 e 2 e 33º, ambos do C. P. Civil).

[...] havendo aqui uma situação de ilegitimidade passiva, resta saber se o tribunal a quo
andou bem ao indeferir o incidente através do qual a Autora pretendia fazer intervir na ação os condóminos que votaram a deliberação e os que se abstiveram, de forma a, no seu entender, regularizar a instância.


Do nº 1 do art. 316º do C. P. Civil decorre que, ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

Ora, no caso a administração do condomínio não tem que intervir na ação ao lado dos condóminos, mas sim em representação destes [...].

Conforme se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/02/09 (in www.dgsi.pt) a propósito de uma situação semelhante, no caso estamos “perante a demanda de entidade diversa daquelas que deveriam estar na ação, ou seja, somos confrontados com um caso de substituição da parte incorretamente demandada por uma outra, legalmente reconhecida como aquela que deve estar nos autos”, não sendo, pois, uma situação de regularização da instância através da intervenção das restantes pessoas que deveriam estar na ação. 

O incidente de intervenção de terceiros foi, pois, bem indeferido pelo tribunal a quo."

III. [Comentário] O art. 1433.º, n.º 6, CC estabelece que a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos compete ao administrador ou à pessoa contra que a assembleia designar para esse efeito. Portanto, a acção deve ser proposta contra os condóminos que aprovaram a deliberação (alegadamente) ilegal, mas estes são representados pelo administrador ou pela pessoa designada pela assembleia. Isto é, os condóminos são as partes passivas e o administrador ou a pessoa designada o representante.

Com este enquadramento, compreende-se a solução adoptada no acórdão: tendo a acção sido proposta contra o condomínio representado pelo administrador, não é possível sanar esta ilegitimidade singular com a intervenção principal dos condóminos, dado que, como correctamente se refere, entre o condomínio e os condóminos não há, nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, nenhuma relação de litisconsórcio. Em suma: o caso não é de falta de litisconsortes em conjunto com o condomínio, mas de falta de legitimidade deste condomínio.

MTS



29/03/2017

Informação (172)



Harmonização do processo civil na UE

-- PROJETO DE RELATÓRIO com recomendações à Comissão sobre as normas mínimas comuns para o processo civil na UE (2015/2084(INL)) / Relator: Emil Radev / 10.2.2017 (PE 593.974v01-00)


Jurisprudência (586)



Direito de remição;
fraude à lei


I. O sumário de RG 24/11/2016 (418/14.1T8VNF-G.G1) é o seguinte:
 
1 - O direito de remição constitui um verdadeiro direito de preferência que tem por finalidade a protecção do património familiar, querendo evitar-se que os bens saiam para fora da família.
 
2 - Atenta essa finalidade, poderá ocorrer a verificação de fraude à lei, por parte do remidor, quando se prove que o exercício de tal direito, por parte deste, não teve como intuito a preservação do bem na família, mas, antes, qualquer outro fim diferente desse, designadamente, a proteção de interesses de terceiro através da utilização de um familiar como testa-de-ferro.
 
3 – Caso em que se verificará a nulidade do acto resultante do exercício do direito de remição.
 
II. Na fundamentação do acórdão, afirma-se o seguinte:
 
"Nos termos do disposto no artigo 842.º do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 17.º do CIRE): «Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda».
 
Este «instituto incidental da remição analisa-se na faculdade de, potestativamente, determinados interessados poderem fazer-se substituir ao adjudicatário ou ao comprador, na preferencial aquisição de bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido» - cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 05/06/2008, in www.dgsi.pt/jtrg.
 
Quanto à natureza do direito de remição, veja-se Alberto dos Reis, in «Processo de Execução», Vol. II, pág. 477: “Analisando o art. 912 do C.P.C., verifica-se que o direito de remição é nitidamente um benefício de carácter familiar.
 
Dá-se ao cônjuge do executado e aos descendentes e ascendentes deste o direito de adquirir para si os bens adjudicados ou vendidos, pelo preço da adjudicação ou da venda. Na sua actuação prática, o direito de remição funciona como um direito de preferência: tanto por tanto os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários. A família prefere aos estranhos. Porque admitiu a lei esta preferência a favor da família? A razão é clara. Quis-se proteger o património familiar; quis-se evitar que os bens saíssem para fora da família”.
 
Como ensina, Lebre de Freitas in, “A Acção Executiva” à luz do Código revisto, 3ª ed., pág. 281 e 282, «a lei processual concede ao cônjuge e aos parentes em linha recta do executado um especial direito de preferência, denominado direito de remição, o qual, tendo por finalidade a protecção do património familiar, evita, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado».
 
Não há dúvidas que a pessoa que se apresentou a remir, sendo filha dos insolventes, o pode fazer, fê-lo no prazo que a lei consigna e procedeu ao depósito devido – artigos 842.º, 843.º, n.º 1 a) e n.º 2 do Código de Processo Civil – pelo que, formalmente, estão cumpridos os pressupostos necessários para o exercício do direito de remição.
 
A questão que se coloca é a de saber se o fez em fraude à lei (não tanto se houve simulação, apesar dos seus pressupostos poderem estar presentes na forma como a apelante alega os factos), considerando, como supra referimos, que a finalidade do direito de remição entronca na proteção da família, é um benefício de caráter familiar, através do qual se quis evitar que os bens saíssem para fora da família.
 
Ora, a provar-se que o exercício do direito de remição foi, apenas, uma manifestação aparente e que, de facto, o bem remido não continuará na esfera patrimonial da família, tendo sido o exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes apenas um subterfúgio usado para que o bem passasse para o domínio de terceiro, poderemos, então, equacionar a verificação de fraude à lei, com a consequente nulidade do acto resultante do exercício do direito de remição.
 
Ou seja, face á alegação da apelante, sustentada em factos que, com alguma probabilidade, a indiciam, haverá que indagar se a remidora usou o direito, não para manter o bem no património da família, mas para qualquer outro fim não protegido pela norma em questão.
 
Neste sentido, veja-se Acórdão do STJ de 13/04/2010 (processo n.º 477-D/1996.L1.S1), relatado pelo Conselheiro Urbano Dias, disponível em www.dgsi.pt, que acrescenta “A ilicitude, no caso, verificar-se-ia, precisamente, se a finalidade do instituto da remição tivesse sido usada para fins diferentes dos assinalados (…) De qualquer forma, temos como certo que a fraude à lei “é uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 3ª edição, página 696)”.
 
Não se trata, portanto, de verificar se estão reunidos os pressupostos da simulação, mas apenas se, no caso concreto, houve fraude à lei por se ter usado o instituto da remição para fins diferentes dos por ele protegidos."
 
[MTS]
 
 

28/03/2017

Jurisprudência (585)


Título executivo; força probatória;
preenchimento do título



1. O sumário de STJ 24/11/2016 (2222/10.7TBGDM-C.P1.S1) é o seguinte:
 
I - Não enferma de excesso de pronúncia o acórdão da Relação que, em face da valoração da prova produzida e indicada pelo apelante, alterou a matéria de facto, no tocante à autoria da assinatura aposta na letra de câmbio dada à execução.

II - O título executivo é um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art. 703.º, n.º 1, do CPC).

III - O acordo ou pacto de preenchimento é uma “convenção extracartular, informal e não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc.”.

IV - O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo.

V - A aposição da data de vencimento, tal como fora acordado no pacto de preenchimento, não constitui preenchimento abusivo.

VI - Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art. 662.º do CPC, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o STJ (art. 662.º, n.º 4, do CPC).

VII - A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material.

VIII - Socorrendo-se a Relação, para dar como assente a autoria da assinatura na letra de câmbio, à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (arts. 389.º e 396.º do CC), não é admissível a sindicância pelo STJ, nesse domínio, por não integrar as excepções previstas na parte final do n.º 3 do art. 674.º do CPC.
 
2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:
 
"[...] o título executivo consiste, como se sabe, num documento que faz prova documental simples de um acto ou de um negócio jurídico constitutivo ou certificativo de uma relação jurídica de natureza real ou obrigacional e que, só por si, permite que o credor desencadeie a actividade jurisdicional visando a realização coactiva da prestação que lhe é devida. Pode dizer-se que «é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente, ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito, cujo lastro corpóreo ou material é um documento que a lei permite que sirva de base à execução» [ Cfr., a este propósito, J.P. Remédio Marques, in Curso de Processo Executivo Comum, à face do código revisto, 1ª edição, págs. 55/56, e José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª edição, pág. 33, com referência à anterior versão do Cód. Proc. Civil, mas ainda plenamente actualizados].

Trata-se, pois, de um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador [...] e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art.º 703º, nº 1, do Cód. Proc. Civil).

No caso, o título em que se funda a execução é, como decorre dos factos apurados antes descritos, sob os n.ºs 1 e 2, uma letra de câmbio subscrita, entre outros, pelo Recorrente, na qualidade de avalista, situação muito corrente no tráfico comercial e que corresponde à denominada letra-caução que é entregue ao credor, pelo menos com uma assinatura nela aposta [...], e que fica em poder do mesmo, a quem é atribuída a faculdade de a preencher, em caso de qualquer incumprimento da obrigação caucionada, fixando-lhe a data do vencimento.

Esta modalidade de título cambiário, legalmente reconhecida (art.º 10º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças – LULL) reconduz-se à ideia genérica de garantia [...] de responsabilidades futuras, supondo, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido, porque falta determinar, por exemplo, data de vencimento ou o respectivo montante, e aparece como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento de prestações pecuniárias.

Associado a este tipo de título cambiário (letra), de formação sucessiva, ou seja aquele a que falta algum dos requisitos indicados no art.º 1º da LULL, mas que contém, pelo menos, uma assinatura aposta, com o intuito de contrair uma obrigação cambiária, está o chamado acordo ou pacto de preenchimento, que permite distingui-lo do titulo cambiário incompleto, caracterizando-se este por não existir qualquer acordo ou pacto para o respectivo preenchimento [...].

O acordo ou pacto de preenchimento é uma «convenção extracartular, informal e não sujeita a forma [...], em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc." [
Cfr, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2011, Almedina, pág. 329, Miguel JA Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª edição, Ediforum, Lisboa, 2007, pág. 479, Abel Pereira Delgado, LULL, Anotada, 4ª edição, 1980, pág. 63, e acórdão do STJ, de 3 de Maio de 2005 – 05A1086, in www.dgsi.pt]. O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo [...].

No caso, como já se disse, foi dada à execução uma letra subscrita, entre outros, pelo Recorrente, na qualidade de avalista, que interveio igualmente no pacto de preenchimento, como se alcança dos pontos 2 a 5, do elenco factual provado, nada obstando a que aquele invoque a sua desconformidade, discrepância ou contrariedade relativamente ao acordo de preenchimento, também designadas por preenchimento abusivo e abuso de preenchimento [...]. É que, como ensina Ferrer Correia [
In Lições de Direito Comercial, 1966, Volume III, págs. 68/69] «nas relações imediatas…nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeito às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem».

Aliás, este entendimento é também acolhido prevalentemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [...], como o ilustra, por exemplo, o acórdão de 23.9.2010 – Proc. 4688-B/2000.L1.S1 – também acessível na referida base de dados, com o seguinte sumário: “1. Em execução fundada em título de crédito…. é, porém, lícito ao executado/embargante opor ao exequente/embargado excepções fundadas na relação causal, desde que nos situemos no plano das relações imediatas;2. Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de letra subscrita e avalizada em branco, e tendo a avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o sacador, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título, cabendo-lhe, porém, o ónus da prova dos factos constitutivos dessa excepção”.

Definido que ao Recorrente assiste o direito de invocar tal excepção, não valendo, por isso, as regras da abstracção, literalidade e autonomia, vejamos se, como sustenta, ocorreu o suposto preenchimento abusivo da letra. A tal propósito, importa ter presente o teor do pacto de preenchimento (que assumiu forma escrita, como se vê das várias cláusulas do contrato aludido em 2 do elenco factual provado) e que se encontra associado à emissão e à entrega da letra à exequente (e ao posterior preenchimento desta, no tocante à data de vencimento). Referimo-nos, como é óbvio, à “cláusula 05” inserida nesse contrato, na qual é definido o montante do empréstimo adiantado à sociedade executada e de que o Recorrente era representante, e “à cláusula 12” a estabelecer que «prevenindo-se a hipótese de virem a ser devidas – por efeito de resolução/anulação do contrato, a restituição das quantias ora adiantada e emprestada – nos termos descritos no número seguinte – entregam nesta data, à exequente, a letra n.º tal, no valor de 32.500€, aceite pela representada dos segundos outorgantes e avalizada pelos segundos outorgantes, autorizando desde já, que esta venha a completar o seu preenchimento e a apor-lhe, para tanto, data de emissão posterior à da resolução/anulação do contrato».

Perante a clareza do pacto de preenchimento, em conjugação com a restante matéria de facto provada, em especial com o contrato que lhe está associado e o não pagamento da letra de câmbio que lhe subjaz, é difícil descortinar que mais poderá ser dito nesta matéria, para além do que consta do acórdão recorrido, sobre a evidência de o preenchimento ter respeitado o acordo efectivamente realizado entre a exequente e os executados.

Para se eximir à responsabilidade assumida através do aval, o Recorrente traz à liça também o ónus da prova sobre a autoria da assinatura que lhe é atribuída na letra de câmbio que serve de título à execução. Nesse ponto, não há dúvidas que o ónus recai sobre a exequente, pois foi ela que apresentou o documento (art.º 374º, n.º 2, do Cód. Civil). No entanto, esse ónus probatório mostra-se cumprido com total êxito, na medida em que na sequência da impugnação factual feita, no âmbito da apelação, logrou que fosse dado como provado o ponto 5. do elenco factual, cujo teor confirma que foi o Recorrente quem «apôs a sua assinatura no verso da letra, na vertical, debaixo da frase manuscrita: “Por aval à firma subscritora».

O problema suscitado pelo Recorrente não respeita verdadeiramente ao ónus da prova, incidindo antes sobre a valoração probatória conferida pela Relação à perícia realizada, para concluir que a questionada assinatura é do seu punho. Sucede, porém, que esse domínio situa-se fora da órbita de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, pois, como se sabe, a competência para apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio radica nas instâncias, cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça, salvo situações de excepção legalmente previstas, conhecer apenas da matéria de direito, aplicando o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

Aliás, o art.º 674º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, é bem claro, quando a tal respeito, estabelece que «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

No caso, os meios probatórios utilizados pela Relação, para dar como assente a autoria da assinatura, confinaram-se à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (art.ºs 389º e 396º do Cód. Civil), não integrando, assim, as excepções previstas na parte final n.º 3 do art.º 674º do Cód. Proc. Civil, relativamente às quais é admissível a sindicância do Supremo Tribunal de Justiça.

Acentue-se que o Recorrente não invocou qualquer inobservância dessas regras probatórias e, focando-nos na alteração da matéria de facto realizada pela Relação, não vemos que tal tenha sucedido. Pelo contrário, como se alcança do teor do acórdão recorrido, mais propriamente de folhas 282 a 286 verso, as provas foram examinadas pela Relação, que motivou a sua decisão de forma coerente e transparente, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo art.º 607º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva, sendo certo que nesse domínio (da livre convicção do julgador) está vedado ao Supremo exercer censura e sindicar a respectiva substância (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil)."
 
[MTS]
 


27/03/2017

Jurisprudência (584)


Notário; controlo da legalidade;
articulado deficiente; dever de prevenção do tribunal


1. O sumário de RP 5/12/2016 (406/14.8TBMAI.P1) é o seguinte:

I - Mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública.
 
II - Entre o notário e as partes não se estabelece qualquer vínculo de cariz negocial, pelo que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza extracontratual.
 
III - A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas.
 
IV - O notário, enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, por mor do disposto no nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004, de 4 de fevereiro, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.
 
V - O referido normativo assume natureza de norma de proteção, porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
 
VI - O facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
 
VII - O estrito cumprimento do poder funcional estabelecido na alínea b) do nº 2 do art. 590º do Código de Processo Civil implica que o tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado.
 
VIII - O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
 
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
 
"No caso em apreço, como deflui da exegese da petição inicial, verifica-se que o autor/apelante filia a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduz no presente processo no facto de o réu C…, aquando da celebração da escritura pública destinada a documentar o contrato de compra e venda que teve por objeto mediato o imóvel identificado nesse articulado - na qual o autor interveio na qualidade de comprador -, não ter cumprido os seus deveres enquanto notário, posto que, nesse ato, não fez, como se impunha, a advertência às partes outorgantes de que o imóvel se encontrava onerado por uma penhora.

A presente ação, tal como o autor a configura, integra um caso de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, domínio em que imperam, fundamentalmente, os arts. 483º a 498º do Código Civil [...]. [...]

No ato decisório sob censura considerou-se [...] não estarem, in casu, reunidos os pertinentes pressupostos ou requisitos da aludida fonte de obrigações, mormente por ausência de nexo de causalidade entre o comportamento do réu C... e os danos cuja reparação o autor reclama na presente demanda.

É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso, já que é primordialmente em relação à afirmação da ausência do apontado nexo causal que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva apresentada pelo apelante, que esgrime argumentação no sentido de que é manifesta a existência de nexo de causalidade (seja à luz da teoria da causalidade adequada, seja sob o enfoque da teoria do fim da norma) entre o comportamento omissivo do réu e os danos que afirma ter sofrido em consequência do mesmo.

Na resolução da enunciada questão importa, como prius, caraterizar, ainda que em termos necessariamente sumários, o concreto estatuto dos notários, sendo que nos autos não é fundadamente posto em crise que a ajuizada escritura pública foi formalizada pelo réu na sua qualidade de notário.

Como é consabido, desde, pelo menos, a reforma levada a cabo pelos Decretos-Leis nºs 26/2004 (que aprovou o Estatuto do Notariado) e 27/2004 (que criou a Ordem dos Notários e o respetivo Estatuto), ambos de 4 de fevereiro, mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino [...], sendo que à luz deste sistema o notário é um profissional de direito encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes autenticidade. Ou seja, notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública. Assim, é simultaneamente um oficial público e um profissional do direito, como, aliás, expressamente preceitua o nº 2 do art. 1º do DL nº 24/2004, dispondo ainda o nº 3 do mesmo normativo que “a natureza pública e privada da função notarial é incindível”.

Como oficial público exerce a fé pública notarial que tem e sustenta um duplo conteúdo: na esfera dos factos, a exatidão dos que o notário vê, ouve ou percebe pelos seus sentidos; na esfera do direito, a autenticidade e força probatória das declarações de vontade das partes no instrumento público, redigido segundo as leis. Deste modo, exerce uma função pública, documental ou de autenticação; função dirigida ao documento, na sua expressão externa de autenticidade dos factos ou das declarações de vontade, do ato ou da relação jurídica. Já como profissional de Direito exerce uma função jurídica privada: função assessora, de assistência, conselho e formação da vontade das partes e de adequação ou conformação daquela vontade ao ordenamento jurídico. Dito de outro modo, a função jurídica privada refere-se à preparação do documento, à recolha da vontade das partes, ao conselho, à pedagogia e auxílio dessa vontade e à sua interpretação, bem como à expressão da vontade das partes, à redação e conformação do ato ou relação jurídica.

Daí que o notário venha sendo considerado um terceiro imparcial, que deve estar sempre acima dos interesses comprometidos: a sua profissão obriga-o a proteger as partes com igualdade, libertando-as, com as suas explicações imparciais e oportunas, dos enganos a que poderia conduzi-las a sua ignorância. O notário tem pois o dever (legal) de cuidar dos interesses de ambas as partes e, buscando o ponto de equilíbrio, servir a vontade comum, obtendo uma composição duradoura, e se possível definitiva, dos interesses opostos. O notário serve as partes e nenhuma em particular. Para o notário não há clientes, há apenas outorgantes, e todos merecem o mesmo tratamento e proteção. Por via disso, não se estabelecendo entre o notário e as partes qualquer vínculo de cariz negocial, propendemos, pois, a considerar que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza aquiliana, que não contratual.

Portanto, no exercício desse múnus o notário (latino), a par da função estritamente documental, desempenha outrossim uma função jurídica privada [...] – que corresponde, além de outras tarefas, à adaptação, adequação ou conformação da vontade dos particulares ao ordenamento jurídico.

É certo que a segurança que o notário proporciona é, antes de tudo, uma segurança documental, derivada da eficácia do instrumento público, dotado de autenticidade, eficácia essa que se expande pelo tráfico jurídico, pelo processo e em variadas outras direções (eficácia probatória, executiva, legitimadora, etc.).

Mas a importância desta segurança formal não pode fazer esquecer que antes dela há uma outra – a segurança substancial – que requer que o ato ou contrato documentado seja válido e eficaz, segundo as prescrições do ordenamento jurídico. O instrumento público só pode ter por conteúdo um negócio válido. A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei. Existe, por conseguinte, um controlo [...] da legalidade do negócio, cabendo ao notário detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas. Por isso se tem justamente afirmado que a segurança preventiva é uma consequência ou resultado normal da sua intervenção [...].

Como se assinalou, o notário enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, tem de ser (é, por definição) completamente independente no exercício da sua função, autónomo e responsável, não subordinado, devendo obediência apenas à lei e à vontade das partes, encontrando-se outrossim obrigado a proteger os outorgantes com igualdade e imparcialidade, deveres estes que resultam juspositivados, designadamente, nos arts. 10º, 11º, 12º, 13º e 15º do DL nº 26/2004. [...]

Ora, malgrado na decisão recorrida se tenha afirmado a antijuridicidade do comportamento do réu C… (por inobservância da referida regra legal), facto é que nela se concluiu pela inexistência de fundamento para a responsabilização dos réus, por inverificação do necessário nexo causal entre o descrito comportamento omissivo do identificado demandado e os danos que o autor afirma ter sofrido na sua esfera jurídica. [...]

[...] revertendo ao caso sub judicio, importa, desde logo, reter que o sentido decisório sufragado na sentença recorrida se ancorou primordialmente no entendimento de que “nada do que foi alegado permite ao Tribunal apurar pela existência de um nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano que o autor diz ter sofrido”, afirmando, ainda que em obicter dictum, que a violação do citado art. 11º, nº 3 do DL nº 26/2004 por parte do réu C… “não foi a causa direta e necessária do dano sofrido pelo autor”.

Ora, procedendo à exegese da petição inicial, apesar de essa peça processual não primar por uma cabal densificação factual do aludido requisito da responsabilidade civil, certo é que, ainda assim, dela deflui que o autor acaba por alegar (cfr. arts. 6º e 10º) que se soubesse que o imóvel estava onerado com uma penhora não realizaria o ajuizado contrato de compra e venda, adiantando outrossim que desconhecia a existência desse ónus aquando da celebração da escritura destinada a documentar esse ato alienatório.

Admite-se, neste particular, que o aludido articulado se revele deficiente [...] na exposição e concretização de substrato factual que permita afirmar, de forma concludente, que o demandante não teria despendido as quantias que alegadamente afirma ter desembolsado como consequência da celebração do ajuizado contrato de compra e venda, maxime quando, na economia da ação, pretende obter do réu C… (e das respetivas seguradoras) a reparação desse prejuízo por ausência da advertência de que o imóvel que constituía objeto mediato desse contrato se encontrava onerado por uma penhora.
 
Nessas circunstâncias justificar-se-ia, pois, que em despacho pré-saneador (art. 590º, nºs 2 al. b) e 4 do Cód. Processo Civil) ou até na audiência prévia (art. 591º, nº 1 al. c), 2ª parte do CPC) o demandante fosse convidado ao aperfeiçoamento do dito articulado, de molde a que se lograsse suprir a mencionada deficiência na alegação do nexo causal [Como adverte TEIXEIRA DE SOUSA, In Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências?, pág. 7 e seguinte, disponível no blog do IPPC, a omissão do poder-dever que compete ao tribunal por força do disposto no art. 590º do CPC “constitui, nos termos do art. 195º, nº 1 do mesmo diploma, uma nulidade processual (decorrente, naturalmente, de uma omissão do tribunal)”, acrescentando, com o concordamos, que “o que o tribunal não pode é deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado”]."

[MTS]