Recurso de revista; dupla conforme
I - A aparente simplicidade do art. 671.º, n.º 3, do NCPC (2013), não deixa de exigir algum esforço interpretativo, a fim de integrar correctamente algumas situações, evitando a afirmação de uma desconformidade ou de uma conformidade aferidas, apenas e tão só, por um critério formal de coincidência ou não do conteúdo decisório.
II - Aquilo que se pretendeu com o sistema da dupla conforme mais não foi do que racionalizar o acesso ao STJ, numa altura em que os números demonstravam que existia um percurso típico de interposição de recurso para a Relação, seguindo de revista para o STJ.
III - Uma visão estritamente formalista, da letra da lei e da sua concatenação com o processo, levar-nos-ia à afirmação de que a confirmação não poderia nunca coexistir com alteração, razão pela qual – verificando-se esta – nunca se estaria perante uma situação de dupla conforme.
IV - Contudo, não existe qualquer racionalidade em não permitir o recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação parcial – ainda que formal – em que a parte recorrida é exactamente aquela que confirmou, e não o segmento desconforme.
V - Se, relativamente ao segmento que foi objecto de recurso, respectivamente, por banda da autora e do réu, existe uma dupla conformidade entre as decisões das instâncias, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, sem que tenha a autora levado ao objecto do recurso a absolvição de um réu, levada a cabo pela Relação – que constitui o único segmento desconforme do acórdão da Relação com a sentença da 1.ª instância –, não pode deixar de entender-se que não é admissível o recurso de revista normal.
2. A transcrição de parte substancial da fundamentação do acórdão esclarece os motivos da (boa) decisão que nele foi tomada, dado que esses motivos seguem o único critério admissível de determinação da dupla conformidade entre a decisão da 1.ª instância e a decisão da Relação:
"[...] no âmbito do regime recursivo aplicável, dispõe o art. 671.º, n.º 3 que sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.
Manteve-se assim a consagração do conceito de dupla conforme, introduzida na reforma do regime dos recursos em 2007, importando, por isso, clarificar o conceito de dupla conforme a que alude o referido n.º 3, posto que – como assinala Miguel Teixeira de Sousa, in Reflexões sobre a Reforma dos Recursos em Processo Civil (www.scribd.com/doc2186804), e Dupla Conforme: Critério e âmbito da Conformidade» em Cadernos de Direito Privado, n.º 21, pág. 24 – a aparente simplicidade do preceito não deixa de exigir algum esforço interpretativo, a fim de integrar correctamente algumas situações, evitando a afirmação de uma desconformidade ou de uma conformidade aferidas, apenas e tão só, por um critério puramente formal de coincidência ou não do conteúdo decisório da sentença.
Aquilo que se pretendeu com o sistema da dupla conforme mais não foi do que racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, numa altura em que os números demonstravam que existia um percurso típico de interposição de recurso para a Relação, seguido de Revista para o STJ.
Assim, entendeu o legislador que, fora das excepções que previu então no art. 721.º-A do CPCivil, não se justificava o recurso para o STJ sempre que o acórdão da Relação confirmasse de forma inequívoca a decisão de 1.ª instância.
Uma visão estritamente formalista, da letra da lei e da sua concatenação com o processo, levar-nos-ia à afirmação de que a confirmação não poderia nunca coexistir com alteração, razão pela qual – verificando-se esta – nunca se estaria perante uma situação de dupla conforme.
E o facto é que, descendo ao concreto dos presentes autos, o Acórdão da Relação não confirmou, em absoluto, a decisão da primeira instância: ele revogou a decisão da primeira instância na parte em que esta havia condenado solidariamente – em parte do pedido – o 4.º Réu (conjuntamente com o 1.º).
Mas se é um facto que neste concreto aspecto o acórdão da Relação não confirmou a decisão da primeira instância, não deixa porém de ser inequívoco que esse mesmo acórdão confirma – na improcedência dos dois outros recursos de apelação interpostos – dois segmentos da decisão de 1.ª instância:
- a absolvição do pedido dos 2.º, 3.º, 5.ª, 6.ª e 7.ª Réus;
- a condenação (parcial) no pedido do 1.º Réu.
Relativamente a estes dois segmentos, que foram objecto de recurso, respectivamente, por banda da autora e do 1.º réu, existe uma dupla conformidade entre as decisões das instâncias, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.
Vejamos agora o objecto do recurso.
Como se sabe, é jurisprudência uniforme, e princípio do regime recursivo em processo civil, constituírem as conclusões da alegação do recorrente, as balizas delimitadoras do objecto do recurso – arts. 635.º e 639.º do NCPCivil, anteriores arts. 684.°, n.º 3, e 685.°-A, n.º 1 –, pelo que não se pode conhecer de questões que a elas não sejam levadas, ainda que afloradas no corpo alegatório (neste sentido ver entre muitos outros Ac. do STJ de 04-12-2012, Revista n.º 714/09.0TVLSB.L1.S1 - Gregório Silva Jesus).
Com efeito, o recurso é delimitado objectivamente pelas respectivas conclusões que, por sua vez, identificam e fazem o recortedas questões que deverão ser objecto de cognoscibilidade por parte do tribunal de recurso.
Neste recurso para o STJ as conclusões das alegações da Autora reproduzem, quase na íntegra, à excepção dos pontos 1., 2. e 3. , as conclusões das alegações apresentadas no recurso de apelação, recurso este em que a Autora pretendeu atacar a bondade da decisão de 1.ª instância que absolveu os 2.º, 3.º, 5.º, 6.º e 7.º réus.
Desconsiderando a questão – também jurisprudencialmente discutida – da reprodução das alegações e/ou conclusões – o facto é que, nas suas conclusões para o STJ, a autora/recorrente não dirige uma única conclusão à revogação que a Relação fez da decisão da 1.ª instância – na parte em que havia condenado solidariamente o 4.º réu, juntamente com o 1.º réu, em parte do pedido – e que determinou a absolvição do 4.º réu do pedido.
A autora não dirige uma única conclusão contra a absolvição do 4.º réu do pedido, absolvição essa levada a cabo pela Relação e que constitui o único segmento desconforme do acórdão da Relação com a sentença de 1.ª instância.
Ou seja, limitou a Autora as suas conclusões, e necessariamente o seu recurso – intencionalmente ou não, desconhece-se - à absolvição dos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º e 7.º Réus do pedido, absolvição essa que não resultou ex novo do Acórdão da Relação, mas que vinha já da sentença de 1.ª instância e na qual há, repete-se, sem qualquer margem para dúvidas, dupla conformidade entre as decisões das instâncias.
E é nesta perspectiva – tendo como norte a decisão recorrida e o objecto do recurso tal como a recorrente o delimita – que temos de olhar para o n.º 3 do art.671.º do CPC, não podendo descurar, a este propósito, aquilo que consta do preâmbulo do DL n.º 303/2007 de 24-08, onde se refere “A presente reforma dos recursos cíveis é norteada por três objectivos fundamentais: simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando-se as suas funções de orientação e uniformização de jurisprudência. (…).
Submetem-se claramente nesse desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça a revisão do valor da alçada da Relação para € 30 000, que é acompanhada da introdução da regra de fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz e da regra da dupla conforme, pela qual se consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância.(…)”.
Com efeito, não existe qualquer racionalidade em não permitir o recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação parcial – ainda que formal – em que a parte recorrida é exactamente aquela que confirmou, e não o segmento desconforme.
Não podemos esquecer que os recursos existem para sindicar as sucumbências e não se antevê que lógica e racionalidade existam em não permitir o recurso num caso e já o permitir noutro, sendo que as decisões na parte de que se recorre são conformes, e apenas é desconforme na parte de que não se recorre.
E é exactamente essa a situação dos presentes autos, perspectivada sob o ponto de vista da recorrente/autora:
recorre da absolvição dos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º e 7.º Réus … onde existe uma conformidade entre a decisão de 1.ª instância e da Relação;
onde a desconformidade existe – não obstante não lhe ser favorável – não a leva a autora ao objecto de recurso, posto que a ela não existe a mínima referência nas conclusões das alegações.
Como se refere no Acórdão deste STJ de 10-05-2012 (Revista nº 645/08.0TBALB.C1.S1, Lopes do Rego) « (…) na verdade, o referido conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ ».
3. O referido STJ 10/5/2012 (645/08.0TBALB.C1.S1) tem o seguinte sumário:
Ocorrendo, num litígio caracterizado pela existência de um único objecto processual, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, tem-se por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação, não sendo consequentemente admissível o acesso ao STJ no quadro de uma revista normal.
MTS