"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/07/2015

Jurisprudência (169)


Competência internacional; competência material; tribunais eclesiásticos


1. O sumário de RC 23/6/2015 (2153/06.5TBCBR-C.C1) é o seguinte:

A acção instaurada por uma associação pública de fiéis para apreciar à luz de normas de Direito Canónico a regularidade do Decreto Bispal que nomeou uma Comissão para a dirigir é da competência – internacional e em razão da matéria – dos Tribunais Eclesiásticos.
 
2. A fundamentação do acórdão é bastante explícita. Dela extrai-se a seguinte parcela:
 
«Em conformidade com o disposto no artigo 59.º do NCPC, a matéria da competência internacional dos tribunais portugueses, rege-se, desde logo, pelo que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais e, apenas numa 2.ª linha, se terá em conta os factores de conexão enumerados no seu artigo 63.º.
 
Um destes instrumentos internacionais é, sem sombra de dúvida, a Concordata assinada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, que veio substituir a Concordata de 1940, que regula as relações entre ambas.

A separação de poderes entre a Igreja Católica (a que aqui está em causa) e o Estado Português tem consagração constitucional, dispondo-se no artigo 41.º, n.º 4, da CRP que:

“As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”.

Estabelece-se neste preceito constitucional o princípio da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto, consubstanciado na separação entre as Igrejas e o Estado e na liberdade de organização e do culto que assistem àquelas, do que resulta a obrigação de“não ingerência do Estado na organização das Igrejas e no exercício das suas funções de culto” – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP, anotada, na anotação ao preceito em referência.

Concordata referida a que, por força do disposto no artigo 8.º da CRP, há que dar prevalência relativamente às normas de direito interno (no caso, o que se dispõe no artigo 63.º do NCPC.).

Ora, de acordo com o artigo 2, n.º 1, da Concordata de 2004 (a que, doravante, nos referiremos como “Concordata”), a República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica (sublinhado nosso).

Ainda, a ter em conta, o disposto no artigo 10 da Concordata, segundo o qual:

“1. A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.

2. O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1, 8 e 9 nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica canonicamente erectos, que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede, ou pelo seu legítimo representante, até à data da entrada em vigor da presente Concordata.”.

Por outro lado, nos termos do artigo 11, n.º 1, da Concordata:

“As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza.”.

Como refere Rui M. Moura Ramos, in A Concordata de 2004 e o Direito Internacional Privado Português, RLJ, ano 135.º, pág.s 282 e seg.s:

“O Estado Português reconhece também expressamente a personalidade jurídica das restantes pessoas jurídicas canónicas que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede ou pelo seu legítimo representante (…)

As pessoas jurídicas objecto de reconhecimento nos termos que acabamos de referir regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, tendo a mesma capacidade civil que o direito português reconhece às pessoas colectivas de idêntica natureza (…)

Se, nos termos do nosso direito internacional privado, a lei pessoal é a lei da sede das pessoas colectivas, serão pessoas colectivas de estatuto português e portanto sujeitas, na sua constituição, às regras da lei portuguesa, as entidades deste tipo que se encontrem sedeadas em Portugal. Ora, os referidos artigos 1.º, 8.º, 9.º e 10.º da Concordata reconhecem expressamente a personalidade jurídica a entidades sedeadas em Portugal em cuja constituição não têm que ser observados os preceitos da lei portuguesa. Assim acontece, desde logo, com a Igreja Católica (artigo 1.º, n.º 2)”.

Deste diferente regime, consagrado na Concordata (designadamente no seu artigo 11), como salientado em todos os Acórdãos do STJ a que acima se aludiu, resulta a regra de que as referidas pessoas jurídicas canónicas se regem pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades; ou seja, estando em causa a violação do direito canónico será chamada a intervir a autoridade da Igreja (Tribunais Eclesiásticos) e estando em causa a violação do direito interno português, então, impõe-se o recurso aos tribunais civis/comuns portugueses.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 17/12/2009, acima já citado, pretendeu-se com a redacção do artigo 11 da Concordata “fazer coincidir as regras de jurisdição e competência com as normas de direito material aplicáveis pelo foro eclesiástico e pelos tribunais e autoridades públicas”, colocando-se termo a uma possível disparidade de aplicação de regimes, como o permitia a anterior Concordata (a de 1940).

Assim, o próximo passo a dar consiste na averiguação de qual o direito violado: se o direito canónico, se o direito interno português, a fim de, em conformidade com tal conclusão, determinar qual a jurisdição que deve ser chamada a dirimir a questão em apreço.

O CDC regula a disciplina das Associações de Fiéis nos Cânones 298 e seg.s, ali se distinguindo entre associações privadas e públicas de fiéis; porém, todas elas, sejam públicas ou privadas, devem ter por finalidade a missão sobrenatural da Igreja, e ainda que louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, se chamam associações privadas (Cânones 298 e 299) ou públicas (estas a seguir explicitadas) – cf. Código de Direito Canónico, Edição Anotada da Universidad de Navarra Instituto Martin de Azpilcueta, Tradução Portuguesa a cargo de José A. Marques, Edições Theologica, Braga, 1984, a pág. 237.

Por contraponto às públicas que são erigidas pela autoridade eclesiástica competente, de acordo com o Cânone 301.

Cf. autores e ob. ora cit., a pág.s 238 e 239, entende-se por “associação pública aquela que foi erigida por acto formal da autoridade eclesiástica competente, ainda que talvez, na sua origem, a associação provenha da iniciativa privada dos fiéis. Sobre o alcance da qualificação de pública, o c. 116 Parágrafo 1.º, precisa que a pessoa jurídica dotada deste carácter actua em nome da Igreja dentro do âmbito para o qual foi instituída”, acrescentando-se que só a autoridade competente pode erigir associações de fiéis para fins que, pela sua natureza, estejam reservados à hierarquia eclesiástica, o que implica que a associação assim erigida se deverá manter dentro dos limites para os quais foi constituída.

Todavia, independentemente da sua qualificação como pública ou privada, toda a associação de fiéis está sujeita à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar, como decorre do cânone 305.

As públicas devem obedecer ao estatuído nos cânones 312 a 320, designadamente, são erectas pela autoridade eclesiástica competente, tendo em vista a prossecução dos fins que se propõem realizar, carecendo os seus estatutos de aprovação da autoridade eclesiástica a quem compete a respectiva erecção, administrando os bens que possui em conformidade com os estatutos sob a superior direcção da autoridade eclesiástica respectiva, a quem devem prestar contas anualmente.

Assume especial relevância para o caso em apreço o disposto no cânone 318, Parágrafo 1.º, segundo o qual:

“Em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a autoridade eclesiástica referida no cân. 312 P. 1.º pode designar um comissário que em seu nome dirija temporariamente a associação.”.

Como se refere no CDC anotado já anteriormente citado, pág.s 247 e 248: “A nomeação de um comissário poderá ter lugar quando as circunstâncias aconselhem que a autoridade competente não só exercite a alta direcção (c. 315), mas que também assuma temporariamente o regime da associação, procurando ao mesmo tempo que cessem quanto antes os motivos que dão lugar a essa intervenção extraordinária.”.

Por seu turno, o regime das associações privadas encontra-se tipificado nos cânones 321 a 326, de onde resulta, no que aqui importa, que as mesmas são governadas pelos fiéis segundo as prescrições dos estatutos, com a ressalva de que se encontram sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, nos termos do cânone 305, acima já referidos.

Por último, de acordo com o cânone 325, confere-se às associações privadas o direito de administrarem livremente os bens que possuem, de acordo com as prescrições dos estatutos e sem prejuízo de a autoridade eclesiástica competente vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação.

De ater ainda ao disposto nas Normas Gerais das Associações de Fiéis, designadamente, nos seus artigos 7.º e 23.º, de acordo com os quais, todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar e que possibilita a este, em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a nomeação de um comissário que em seu nome dirige temporariamente a associação.

Ora, a decisão da questão sub judice depende, em absoluto, de a B... ser considerada como associação pública ou privada de fiéis e sem esquecer o que se acha disposto no cânone 305, desde que verificados os requisitos do cânone 323, do que depende a validade dos Decretos Bispais que nomearam um representante à B... .

Ou seja, tudo questões a resolver pelas regras acima referidas e que se encontram inseridas no CDC, à luz das quais é que se poderá aferir se a B... , aquando da sua actuação, violou ou não os respectivos estatutos e se, consequentemente, o Bispo D... estava ou não habilitado a emitir o Decreto através do qual nomeou um representante à B... .

Assim sendo, na esteira do que deixámos exposto e por via do disposto no artigo 11 da Concordata, estamos em face de uma eventual violação do disposto em normas do Direito Canónico, pelo que serão competentes para conhecer da presente acção os Tribunais Eclesiásticos.

Do confronto entre o disposto nos artigos 11 e 12 da Concordata, como se salienta no Acórdão do STJ, de 17/12/2009, já citado, “a aplicabilidade da ordem jurídica nacional não tem lugar quanto à regulação dos aspectos estruturais, orgânicos ou internos das pessoas colectivas canónicas, mas apenas quanto à disciplina de certas actividades, extrínsecas e complementares aos fins estritamente religiosos, envolvendo aspectos de índole patrimonial e prestacional que justificam a aplicação do nosso ordenamento jurídico e a sujeição a alguma forma de tutela ou controlo público.”.

O que está em causa, reitera-se é a validade do Decreto Bispal que, ao abrigo de normas de Direito Canónico, nomeou um representante à B... .

Trata-se, pois, de sindicar os fundamentos de tal Decreto Bispal, que corporiza a decisão do Ordinário do lugar, ou seja, da Autoridade Eclesiástica competente para o fazer, à luz do Direito Canónico, o que não pode ser apreciado nos tribunais portugueses, sob pena da violação do comando constitucional ínsito no artigo 41.º, n.º 4, da CRP, ou seja, do princípio da separação da Igreja e do Estado.

Está em apreciação uma potencial violação de regras do Direito Canónico, estando vedado à jurisdição comum o seu conhecimento e apreciação, que, assim, cabe aos tribunais eclesiásticos.

Como, igualmente, se refere no Acórdão do STJ por último citado, esta solução em nada colide com o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º da CRP, dado que neste não se impõe que o direito nele consagrado tenha de ser necessariamente atribuído aos tribunais portugueses, que não detêm o exclusivo da competência para o conhecimento e decisão de todos os litígios, mesmo daqueles que tenham conexão com outros ordenamentos jurídicos.

Acrescentamos nós que é a própria legislação nacional que a afasta em alguns casos, designadamente a nível das disposições que fixam a competência internacional dos tribunais portugueses, em que se dá prevalência ao que se encontra estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais (cf. artigo 59.º do CPC e 8.º, n.º 2 da CRP), bem como no que se estabelece nos artigos 14.º a 65.º do Código Civil em que se prevêem e regulam inúmeras situações de conflitos de leis.

Concluindo, estando, como estamos nós, perante a alegada violação de normas previstas no CDC, nos termos expostos, terão de ser os tribunais eclesiásticos a conhecer e a decidir a questão sub judice, o que acarreta a incompetência – internacional e em razão da matéria – dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção, com a consequente absolvição dos réus da instância, nos termos do disposto nos artigos 96.º, 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a); 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a), todos do NCPC, sendo, pois, de manter a decisão recorrida.»        

MTS