"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/07/2015

Uma remissão equivocada no nCPC (e também já no aCPC)?



O art. 983.º, n.º 1, nCPC estabelece o seguinte: "O pedido [de reconhecimento de uma decisão estrangeira] só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696.º". Pode questionar-se a correcção da remissão para a al. g) do art. 696.º, que estabelece como fundamento do recurso extraordinário de revisão a simulação entre as partes não detectada pelo tribunal de origem. Para se perceber a razão do problema, há que considerar alguns antecedentes históricos.

O art. 1100.º CPC na versão do DL 44129, de 28/12/1961, estabelecia o seguinte: "O pedido [de reconhecimento de uma decisão estrangeira] só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 1096.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c), e g) do artigo 771.º". A al. g) do art. 771.º CPC/61 dispunha que era fundamento do recurso de revisão a contradição da decisão revidenda com uma outra que constituísse caso julgado para as partes, formado anteriormente. O regime manteve-se após a Reforma de 1995/1996: o art. 1100.º, n.º 1, continuava a remeter para o art. 771.º, al. g), que mantinha a referência à contradição entre casos julgados como fundamento do recurso de revisão.

O DL 38/2003, de 8/3, deu uma nova redacção ao art. 771.º, tendo o conteúdo da anterior al. g) passado, totalmente, para a nova al. f) e desaparecido do preceito qualquer al. g). Apesar disso, o art. 1100.º, n.º 1, continuava a remeter para a al. g) do art. 771.º. Em todo o caso, supõe-se que não seria problemático considerar que a remissão se devia entender como feita para a nova al. f) do art. 771.º, dada a inexistência de qualquer al. g) neste preceito e a identidade da nova al. f) com a antiga al. g).

O problema complicou-se com o DL 303/2007, de 24/8. O art. 1.º DL 303/2007 deu uma nova redacção ao art. 771.º, no qual foram introduzidas algumas alterações significativas. Em concreto:

-- Desapareceu dos fundamentos do recurso de revisão qualquer contradição da decisão revidenda com um anterior caso julgado; a possível justificação para esta solução encontra-se na circunstância de o então art. 675.º, n.º 1 (correspondente ao actual art. 625.º, n.º 1, nCPC), estabelecer que, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, se cumpre a que primeiro tiver transitado em julgado;

-- Foram introduzidas duas alíneas ao art. 771.º, totalmente novas quanto ao seu conteúdo:  a nova al. f), passou a estabelecer como fundamento do recurso de revisão a contradição da decisão a rever com uma decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português; a nova al. g) passou a estabelecer como fundamento do recurso de revisão a simulação processual; importa acrescentar que, antes do DL 303/2007, este último fundamento permitia a interposição de um outro recurso extraordinário (que, na altura, foi suprimido): o recurso de oposição de terceiro (cf. art. 778.º, n.º 1, CPC, na redacção anterior ao DL 303/2007).

Apesar destas profundas alterações sofridas pelo art. 771.º, o DL 303/2007 manteve a redacção do art. 1100.º, permanecendo igualmente a remissão para a al. g) do art. 771.º, que agora se refere à simulação processual como fundamento do recurso de revisão.

Pode ser que o legislador tenha efectivamente querido que a simulação processual no processo de origem da decisão estrangeira passasse a constituir um fundamento de oposição ao reconhecimento desta decisão em Portugal. No entanto, considerando a chamada proibição da révision au fond (isto é, a proibição de o tribunal do reconhecimento se pronunciar sobre o mérito da decisão estrangeira),  é muito pouco provável que tal tenha acontecido. O mais provável é que a permanência da remissão para a al. g) do art. 771.º se tenha ficado a dever a um lapso do legislador, que, ao introduzir, de novo, uma al. g) no art. 771.º, não terá reparado que o art. 1100.º, n.º 1, continha uma remissão para essa mesma alínea quando esta se referia a uma matéria totalmente distinta (a contradição entre casos julgados, que, aliás, esse mesmo legislador suprimiu como fundamento do recurso de revisão).

Esta desarmonia permaneceu até ao fim de vigência do aCPC e passou para o nCPC. Supõe-se que será uma das matérias a rever logo que haja a oportunidade de introduzir no nCPC as pequenas modificações que ainda se impõem no processo civil português.

MTS
(Agradeço ao Dr. João Gomes de Almeida, Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, ter-me alertado para o problema)