"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/07/2015

Jurisprudência (174)



Litisconsórcio necessário; absolvição da instância; 
prazo de caducidade; propositura de nova acção


1. O sumário de STJ 16/6/2015 (1010/06.0TBLMG.P1.S1) é o seguinte:

I - A insusceptibilidade de, na compropriedade, incidirem sobre a mesma coisa dois ou mais direitos, negando-se a cada um dos comproprietários a titularidade autónoma de um direito de propriedade sobre a coisa comum, determina que os contitulares perdem, quase por completo, a autonomia que caracteriza o domínio, porquanto, exceptuando limitadas situações previstas na lei, todos os demais poderes compreendidos no direito de propriedade só podem ser exercidos com a colaboração dos restantes consortes, ora com o consentimento de todos os contitulares, ora através de uma deliberação maioritária, nos termos definidos por lei.

II - O direito de preferência só pode ser exercido, por todos os comproprietários, conjuntamente, em litisconsórcio necessário ativo, em virtude da pluralidade de preferentes resultante da contitularidade de um único direito de preferência, sendo que aquele que se apresente, isoladamente, a preferir, sem provocar a intervenção dos restantes ou sem demonstrar a renúncia dos mesmos, não pode deixar de ser considerado parte ilegítima, por não ser o único titular da relação controvertida, no momento em que a acção é proposta, e esta, pela própria natureza da relação jurídica em causa, exigir a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

III - E, não vinculando a decisão a obter a pessoa do outro comproprietário, a mesma não produziria o seu efeito útil normal, pois que não regularia, definitivamente, a situação concreta das partes quanto ao pedido formulado, sendo certo que o restante comproprietário não proponente, nem interveniente na acção e que não renunciou ao seu direito, poderia vir a propor uma nova acção que alterasse, completamente, a sorte desta, retirando à mesma o seu efeito útil normal.

IV - É imputável ao autor, a título de culpa, a absolvição da instância, ocorrida em anterior acção, por ter atuado em termos de a sua conduta merecer a reprovação ou a censura do direito, quando, no quadro de um razoável juízo de previsibilidade, fosse de conjeturar uma situação de absolvição da instância, como acontece quando, na condução da acção, a parte, representada pelo seu advogado, não adota um paradigma de proficiência, zelo, atenção e diligência na elaboração das respectivas peças processuais, sendo certo que, face às circunstâncias do caso, poderia e deveria ter agido de outro modo, considerando a manifesta evidência da caraterização dos pressupostos da legitimidade ativa na acção de preferência.

V - Na formulação inicial do art. 294.º, n.º 2, que veio a dar origem ao art. 289.º, n.º 2, do CPC de 1961 (hoje, o art. 279.º, n.º 2, do NCPC (2013)), o autor gozava sempre do prazo adicional de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, para repetir a acção, de modo a obviar à caducidade, independentemente da sua eventual culpa na decisão que se absteve de conhecer do mérito da causa.

VI - Por força do regime substantivo de exceção “sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos,…”, que decorre hoje do artigo 279.º, n.º 2, do NCPC, verificando-se a absolvição da instância, em acção sujeita a prazo de caducidade que veio a ser declarada, o autor dispõe agora de um prazo alargado de dois meses, relativamente ao antecedente prazo de trinta dias, a partir do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, muito embora o efeito impeditivo da caducidade se encontre, presentemente, condicionado por um juízo de não culpabilidade quanto à causa da absolvição da instância.

VII - A
ratio legis deste regime inovatório leva a considerar que o onerado com um prazo de caducidade deve preocupar-se com a propositura atempada da acção, mas, também, com a sua procedência, em ordem a atingir o fim visado pela mesma, ou seja, a satisfação célere da pretensão do autor, de modo a evitar o insucesso da causa.

VIII - Ao regime mais favorável ao autor que lhe permitia repropor, sucessivamente, a acção, dentro do prazo de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, independentemente da existência de culpa na elaboração dos contornos da petição inicial, seguiu-se um regime em que a sua conduta processual pretérita, desde que isenta de culpa na causa determinante da absolvição da instância, lhe confere um prazo adicional alargado para repetir a acção, mas em que, a ocorrer a censurabilidade do seu comportamento processual, fica privado do prazo de trinta dias do regime processual, então, inaplicável, devido à ressalva do regime substantivo, contemplada na primeira parte do n.º 2, do art. 289.º do CPC de 1961 (hoje, o art. 279.º, n.º 2, do NCPC).

IX - Sendo imputável ao autor a absolvição da instância, ocorrida na acção anterior, o prazo de caducidade do direito da propositura da acção de preferência começa a correr com o ato interruptivo, atento o disposto pelo n.º 2, não gozando o autor do prazo especial, a que alude o n.º 3, ambos do art. 327.º do CC.
 


2. O principal interesse do acórdão reside na análise do regime da propositura de uma nova acção após uma absolvição da instância quando o direito que constituía o objecto da acção estava sujeito a um prazo de prescrição ou quando a própria propositura da acção estava submetida a um prazo de caducidade. Nestas hipóteses, como resulta claramente do acórdão, o regime geral que se encontra estabelecido no art. 279.º, n.º 2, CPC cede perante o regime especial constante dos art. 327.º e 332.º CC.

O que é afirmado na fundamentação do acórdão é bastante esclarecedor:
 
"II. 1. [...] Dispunha o artigo 289º, nº 1, do CPC/1961 [hoje, o artigo 279º, nº 1, do NCPC], que “a absolvição da instância não obsta a que se proponha outra acção sobre o mesmo objecto”, acrescentando o seu nº 2 [hoje, o artigo 279º, nº 2, do NCPC], que “sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos, os efeitos civis derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível, se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância”.

A ressalva “do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos”, convoca, desde logo, o regime normativo do artigo 332º, nº 1, do CC, que estatui que “quando a caducidade se referir ao direito de propor certa acção em juízo e esta tiver sido tempestivamente proposta, é aplicável o disposto no nº 3 do artigo 327º; mas, se o prazo fixado para a caducidade for inferior a dois meses, é substituído por ele o designado nesse preceito”, enquanto que o artigo 327º, nº 3, afirma que “se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo de prescrição tiver entretanto terminado ou terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem estes dois meses”.

Por outro lado, preceitua ainda o artigo 327º, nº 2, do CC, que “quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo”.

Explicitado o quadro normativo de referência, qual o significado da ressalva apontada pelo artigo 289º, nº 2, do CPC/1961 [hoje, o artigo 279º, nº 2, do NCPC], “sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos,…”, no contexto da dualidade de regimes, aparentemente, em confronto, isto é, o regime processual que esteve na origem do artigo 289º, nº 2, do CPC/1961 [hoje, o artigo 279º, nº 2, do NCPC], por um lado, e o regime civilístico dos artigos 332º, nº 1 e 327º, nº 3, do CC, por outro.

Na formulação inicial do artigo 294º, nº 2, que veio a dar origem ao artigo 289º, nº 2, do CPC/1961 [hoje, o artigo 279º, nº 2, do NCPC], dizia-se que “os efeitos civis derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu manter-se-ão, quando seja possível, se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância”, ou seja, tão-só, se excluía, então, a expressão introdutória “sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos,…”, razão pela qual o autor gozava sempre do prazo adicional de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, para repetir a acção, de modo a obviar à caducidade, independentemente da sua eventual culpa na decisão que se absteve de conhecer do mérito da causa.

Porém, por força do mencionado regime substantivo de exceção, verificando-se a absolvição da instância, em acção sujeita a prazo de caducidade que veio a ser declarada, o autor dispõe agora de um prazo alargado de dois meses, relativamente ao antecedente prazo de trinta dias, a partir do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, muito embora o efeito impeditivo da caducidade se encontre, presentemente,condicionado por um juízo de não culpabilidade quanto à causa da absolvição da instância.

II. 2. Será, então, este prazo alargado de dois meses complementar do prazo contido na lei processual, funcionando ambos com autonomia própria, consoante a eventual imputabilidade do autor na situação determinante da absolvição da instância, ou será antes o prazo do regime civilístico o aplicável, sempre que se verifique a ressalva “relativamente à prescrição e caducidade dos direitos,…”, desde que se não demonstre a culpa do autor que, a verificar-se, determina a sua não aplicação, bem assim como, simultaneamente, o regime processual que, desta feita, perderia total autonomia?

O sentido da analisada «ressalva» tem de ser obtido, através do elemento literal dos dois regimes em confronto, em conjugação com o elemento histórico da evolução da lei, já referido, mas, especialmente, com o elemento teleológico da interpretação.

Ora, a «ratio legis» deste regime inovatório leva a considerar que o onerado com um prazo de caducidade deve preocupar-se com a propositura atempada da acção, mas, também, com a sua procedência, em ordem a atingir o fim visado pela mesma, ou seja, a satisfação célere da pretensão do autor, de modo a evitar o insucesso da causa, “por motivo imputável em exclusivo ao autor a uma automática renovação do prazo de caducidade, entretanto consumado, decorrente da irrestrita oportunidade de repetir a causa e com isso obter automaticamente a sobrevivência dos efeitos civis decorrentes, no âmbito do instituto da caducidade, da proposição atempada da acção originária”[8].

Este efeito já não teria lugar, por não se justificar, quando a decisão de absolvição da instância não seja imputável ao autor, como acontece quando subsistem dúvidas razoáveis sobre a definição de pressupostos processuais, cuja falta veio a determinar a absolvição da instância, mas que se não demonstrou, na hipótese em apreço,

Ao regime mais favorável ao autor, que lhe permitia repropor, sucessivamente, a acção, dentro do prazo de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, independentemente da existência de culpa na elaboração dos contornos da petição inicial, seguiu-se um regime em que a sua conduta processual pretérita, desde que isenta de culpa na causa determinante da absolvição da instância, lhe confere um prazo adicional alargado para repetir a acção, mas em que, ocorrendo censurabilidade do seu comportamento processual, fica privado do prazo de trinta dias do regime processual, então, inaplicável, devido à ressalva do regime substantivo, contemplada na primeira parte do nº 2, do artigo 289º, do CPC/1961 [hoje, o artigo 279º, nº 2, do NCPC].

Trata-se de uma manifestação do princípio processual da auto-responsabilidade das partes na condução do processo, segundo o qual determinadas insuficiências que venham a ter lugar, na preparação e condução da acção, nomeadamente, por imprudência, descuido ou imprevisão dos seus mandatários, são geradoras de efeitos preclusivos que a inviabilizam, irreversivelmente.

Deste modo, sendo imputável ao autor a absolvição da instância, ocorrida na acção anterior, o prazo de caducidade do direito da propositura da acção de preferência começa a correr com o ato interruptivo, atento o disposto pelo nº 2, não gozando o autor do prazo especial, a que alude o nº 3, ambos do artigo 327º, do CC[...]." 


Note-se que, ao contrário do que o sumário pode dar a entender, o STJ reconheceu correctamente que entre os vários comproprietários e preferentes se verifica, não um litisconsórcio necessário natural, mas um litisconsórcio necessário legal (cf. art. 419.º, n.º 1, CC). Nesta base, atenta a "manifesta evidência da caraterização dos pressupostos da legitimidade ativa na acção de preferência", pode concluir-se com facilidade que a absolvição da instância proferida na primeira acção é imputável ao autor. 

3. Do disposto nos art. 327.º, n.º 3, e 332.º, n.º 1, CC, decorre que, quanto à prescrição e à caducidade, os efeitos civis resultantes da propositura da primeira acção se mantêm nos dois meses seguintes à absolvição da instância, desde que esta absolvição tenha tido um fundamento processual que não seja imputável ao titular do direito e autor da acção. Este regime constitui uma excepção, não ao disposto no art. 279.º, n.º 2, CPC, mas aos efeitos da interrupção da prescrição do direito e ao decurso do prazo de caducidade para a propositura da acção: sem este regime, o novo prazo de prescrição teria começado a correr a partir da citação do réu (cf. art. 326.º CC) e o esgotamento do prazo de caducidade durante a pendência da acção obstaria à propositura da segunda acção.  

Esta conclusão é relevante, porque obsta a que se possa defender que, no prazo de 30 dias a que se refere o art. 279.º, n.º 2, CPC, o autor pode sempre propor uma nova acção, mesmo que a absolvição da instância tenha ficado a dever-se a culpa desse demandante. Não é assim: se o direito estiver sujeito a um prazo de prescrição ou se a acção estiver submetida a um prazo de caducidade, a propositura da segunda acção após a absolvição da instância é regulada exclusivamente pelo disposto no art. 327.º, n.º 3, e 332.º, n.º 1, CC, pelo que, se esta absolvição tiver tido por fundamento uma conduta culposa do demandante, nunca é possível a propositura de uma nova acção. 

4. Sobre a matéria, cf. também  STJ 30/6/2011 (797/07.7TBFAF.G1.S1) e STJ 27[não 16]/2/2012 (566/09.0TBBJA.E1.S1) (este acórdão é citado na nota 8 do acórdão agora publicitado), considerando que é imputável ao demandante a desistência da instância que frustou o proferimento de uma decisão sobre o mérito.

MTS