"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/11/2016

Aplicação no tempo da jurisprudência uniformizada



1. Do sumário de RC 2/2/2016 (1516/14.7TBCLD-B.C1)  consta o seguinte:

I – A jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 4/2014 deve ser entendida no sentido de que só o promitente-comprador que seja consumidor (excluindo, portanto, o promitente-comprador que não seja consumidor) goza do direito de retenção nas situações ali abrangidas.

II – Ainda que a jurisprudência uniformizada do STJ deva ser respeitada pelos Tribunais e ainda que a doutrina firmada pelo Acórdão supra citado – que assenta numa interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção aí previsto apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor – seja, em princípio, aplicável a qualquer processo que se encontre pendente, ela não deverá ser aplicada a reclamações de créditos que foram formuladas (no âmbito de um processo de falência) dezoito anos antes e no decurso das quais não foram trazidos aos autos, por nenhuma das partes, os factos que seriam pertinentes para concluir se os credores reclamantes (promitentes-compradores) eram ou não consumidores, por não ser, então, previsível a exigência desse requisito que não estava previsto na lei e cuja relevância/necessidade só mais tarde começou a ser suscitada na doutrina e jurisprudência e por não ser exigível que as partes ponderassem ou admitissem a pertinência desses factos em termos de poderem, agora, ser responsabilizadas pelas consequências da sua não alegação.

III – Daí que, nessa situação e não obstante a aludida jurisprudência uniformizada, deva ser reconhecido o direito de retenção aos credores que o invocaram, ao abrigo do disposto no art. 755º, nº1, al. f), do CC, com base na sua qualidade de promitentes-compradores de determinadas fracções, cuja tradição obtiveram, para garantia do crédito emergente do incumprimento desse contrato.
 

2. No Blog tem-se vindo a chamar a atenção para a problemática da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência e para as dúvidas que se podem levantar quanto à sua aplicação imediata a actos anteriores à sua publicação (cf. por exemplo, Jurisprudência (341)).

O acórdão da RC mostra sensibilidade para o problema e entende não aplicar a doutrina de um acórdão uniformizador numa acção pendente (aliás, há muito tempo). A posição da RC é totalmente correcta, porque a confiança das partes não deve ser frustrada pela aplicação de acórdãos de uniformização posteriores à prática do acto (em juízo ou fora dele).

Acima de tudo cabe salientar que, ao contrário do que sucedia até há pouco, a jurisprudência já não ignora o problema da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência. É uma evolução que naturalmente é salutar. Agora só falta que o STJ passe a modelar, sempre que tal se mostre necessário, a aplicação no tempo dos seus acórdãos de uniformização. 

MTS