"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/11/2016

Jurisprudência (475)



Processo executivo;
direito de retenção; preclusão


1. O sumário de RE 16/6/2016 (214/14.6T8BJA.E1) é o seguinte: 

I - Nas acções executivas para entrega de coisa certa, o direito de retenção da coisa traduz um ónus processual dos executados a exercer nos Embargos desde que já existentes à data e a falta de alegação nessa sede gera a sua preclusão.
 
II - Se assim não fosse, assistiríamos a uma reversão da ordem de entrega que transitou em julgado, pondo em causa a sua autoridade com a invocação de fundamentos omitidos antes pelas partes e já invocáveis na altura e nunca se conseguindo alcançar a paz jurídica sobre a situação em causa.
 

2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte: 

"Na decisão recorrida foi afastada a existência de caso julgado com o argumento de que os pedidos aqui em causa não tinham sido formulados anteriormente nos Embargos de Executado e afastou-se a excepção de Preclusão do direito com o argumento de que não havia qualquer obrigação de deduzir estes pedidos nos anteriores Embargos, mas apenas uma possibilidade e afastou-se aplicação do art. 929º nº 4 do anterior CPC por não ter existido qualquer sentença condenatória em acção declarativa.

Vejamos: 

O caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – cfr artº 497º, nº2 do Código de Processo Civil anterior. É, assim, “ uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditória e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir . ”- in Miguel Teixeira de Sousa in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 558 e também neste sentido Manuel de Andrade “Noções Elementares de Processo Civil pág. 306, 324 e 382, onde se pode ler o seguinte:

“devendo os fundamentos da defesa ser formulados todos de uma vez num certo momento, a parte terá de deduzir uns a título principal e outros in eventu – a título subsidiário, para a hipótese de não serem atendidos os formulados em primeira linha ónus este imposto por razões de lealdade no combate judiciário, a que subjazem também razões de segurança e de certeza jurídica que impedem que, tornada definitiva uma sentença, os seus efeitos sejam postergados com base em novos argumentos que em tal acção não foram - mas poderiam ter sido – invocados (…) ficam precludidos todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que poderia ter deduzido com base num direito seu (p. ex., ser ele, réu, o proprietário do prédio reivindicado)...”

Por sua vez o artº 498º do mesmo diploma legal estabelecia os requisitos do caso julgado, referindo que o mesmo se verifica quando haja repetição duma causa, sendo que, por sua vez, a repetição da causa pressupõe a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir.

No nosso caso, o que está em causa é a questão dos limites do caso julgado na sua vertente NEGATIVA, ou seja, saber em que medida se pode voltar a discutir questões complementares após o trânsito da decisão da questão principal ou nuclear.

Por outras palavras, saber até que ponto fica precludido o direito de, mais tarde, em nova ação, voltar a pedir ao tribunal que decida questões acessórias que poderiam ter sido introduzidas na acção nuclear.

Desta forma, apesar de terem sido proferidas duas decisões sobre as excepções em causa, afigura-se-nos que se trata de uma única e mesma questão, pelo que ambos os recursos das duas excepções serão apreciados em conjunto, o que faremos de seguida:

Quid Juris

Sabemos que em 2000, os aqui RR. pediram em tribunal a passagem de mandado de despejo dos prédios em causa – Execução para entrega de coisa certa) e os aqui AA. deduziram Embargos de Executado onde não invocaram o direito a benfeitorias, nem o direito de retenção. 

Esses Embargos foram julgados improcedentes por decisão já transitada em julgado.

Foi ordenado o despejo e entregues as chaves dos prédios.

Pretendem os então embargantes invocar agora nesta acção direitos que poderiam ter exercido na acção inicial.

Quid Juris?

Avançamos desde já que, no nosso entendimento não o podem fazer (ao contrário do que foi entendido na decisão recorrida).

Vejamos porquê:

No que toca à execução para entrega de coisa certa determinava o art. 929º, nº 1, que “o executado pode deduzir oposição pelos motivos especificados nos artigos 814º, 815º e 816º, na parte aplicável, e com fundamento em benfeitorias”. 

Na acção executiva pode falar-se em ónus de excepcionar do mesmo modo que na acção declarativa, na medida em que está prevista a Oposição à Execução, que é o meio idóneo para a alegação dos factos que em processo declarativo constituiriam a defesa. 

É nesta Oposição – com natureza declarativa - que o executado deve invocar os fundamentos de que disponha para se opor à pretensão do exequente, sob pena de não poder intentar outra acção para o efeito.

E isso justifica-se pelo respeito devido ao caso julgado, formado pela sentença da Oposição e no âmbito do qual se devem considerar abrangidos todos os meios de defesa – designadamente as excepções – que podiam ter sido invocados, ainda que o não tenham sido. 

Com efeito, nos termos do então art. 489º do CPC, toda a defesa devia (e ainda hoje é assim) ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado, bem como as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente, sob pena de ficarem precludidos tais direitos, o que emana do princípio da eventualidade ou da preclusão, no sentido de exigir do réu a exposição de todas as matérias de defesa de forma cumulada e alternativa, fundamenta-se na ideia de “preclusão consumativa”, exigindo-se que a defesa seja apresentada de uma só vez (vícios formais e questões de mérito que no seu entender sejam pertinentes para a solução definitiva do litígio, sob pena de não poder alegá-las posteriormente. 

Ou seja, devem esgotar-se na discussão de todos os argumentes existentes factuais e jurídicos referentes àquela relação jurídica, para que a decisão realmente vincule as partes e traga segurança.

O conteúdo do caso julgado não se resume aos meios de defesa que o réu deduziu, mas mesmo aos que ele não chegou a deduzir e até aos que ele poderia ter deduzido com base num direito seu. [...]

Com efeito, o caso julgado abrange não só aquilo que foi objecto de controvérsia na acção, mas também os assuntos ou factos que o réu tinha o ónus de trazer à colação.

Só assim se consegue a paz jurídica sobre a situação em causa, não fazendo sentido que, anos depois, se reabra a discussão com questões que já existiam à data da 1ª acção. 

Note-se que, os AA. tiveram no âmbito dos Embargos a possibilidade de exercer os seus direitos, pelo que alegam, já existentes à data e não o fizeram.

Como diz Lopes do Rego “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1999, página 620: “desde que tenha tido oportunidade processual para o fazer – “maxime” porque tal direito não é de considerar superveniente, relativamente ao momento em que era oportuno deduzi-lo na ação declaratória – considera-se o mesmo precludido – não podendo ser invocado no âmbito da execução» 

Também a este propósito, se conclui no Ac. do STJ de 10.10.2012, Proc. nº 1999/11.7TBGMR.G1.S1: «constitui uma grave violação da estabilidade da relação jurídica definida pela sentença transitada em julgado a posterior dedução daquela mesma pretensão fundada em factos materiais que na ocasião já se haviam verificado e que, sem qualquer inconveniente ou prejuízo para o direito material, poderiam ter sido alegados, discutidos e apreciados em toda a sua extensão na primeira acção.

(…) Fazendo-o, teriam permitido que a sentença apreciasse em toda a extensão a realidade emergente dos factos apurados, para efeitos de confirmar ou infirmar o juízo sobre a existência e a titularidade do direito de propriedade inerente à faixa de terreno litigada ou para afirmar ou negar, com base em todos os factores pertinentes, a obrigação de restituição dessa faixa e de demolição da construção que sobre a mesma fora erigida.

Pensamos que o sistema não pode admitir, sem limites, a discussão eterna de questões jurídicas. [...]
Aliás, no nosso modesto entender, nas acções executivas para entrega de coisa certa, o direito de retenção da coisa traduz um ónus processual e a falta de alegação do mesmo gera a sua preclusão.

Se assim não fosse, assistiríamos a uma reversão da ordem de entrega que transitou em julgado, pondo em causa a sua autoridade com a invocação de fundamentos omitidos antes pelas partes e já invocáveis na altura. [...]

Desta forma, pensamos que nas acções executivas para entrega de coisa certa, o direito de retenção da coisa traduz um ónus processual e a falta de alegação do mesmo nessa sede, gera a sua preclusão.

Se assim não fosse, assistiríamos a reversão da ordem de entrega, que transitou em julgado, pondo em causa a sua autoridade, com a invocação de fundamentos omitidos anteriormente pelas partes, apesar de já existentes na altura."

3. Sobre as relações entre a preclusão e o caso julgado, cf., em termos algo distintos do que é referido no acórdão e da orientação mais comum, Paper (199). 

MTS