Matéria de facto;
litigância de má fé
I. O sumário de RC 14/6/2016 (2566/14.9TBLRA-A.C1) é o seguinte:
1 - Em sede de decisão de facto e tendo em vista fixar os factos provados, não são convocáveis e aplicáveis as regras dos art. 236.º e 342.º do C. Civil; regras que só funcionam no momento seguinte da decisão/sentença, no momento em que se aplica o direito aos factos previamente fixados.
2 - Tendo-se assim procedido (resultando da motivação de facto que os factos foram fixados por aplicação de tais regras de direito) e não havendo impugnação da decisão de facto, ficaram os factos (assim fixados) em definitivo assentes e, por conseguinte, servem de substrato factual para uma condenação como litigante de má-fé.
3 - Numa causa com uma expressão económica de € 100.000,00, na ausência duma específica averiguação sobre a situação económica do litigante de má-fé, impõe-se respeitar o princípio da proibição do excesso, pelo que, usando de proporcionalidade e razoabilidade, entende-se ajustada a multa de 5 UC (sendo excessiva a de 35 UC).
2 - Tendo-se assim procedido (resultando da motivação de facto que os factos foram fixados por aplicação de tais regras de direito) e não havendo impugnação da decisão de facto, ficaram os factos (assim fixados) em definitivo assentes e, por conseguinte, servem de substrato factual para uma condenação como litigante de má-fé.
3 - Numa causa com uma expressão económica de € 100.000,00, na ausência duma específica averiguação sobre a situação económica do litigante de má-fé, impõe-se respeitar o princípio da proibição do excesso, pelo que, usando de proporcionalidade e razoabilidade, entende-se ajustada a multa de 5 UC (sendo excessiva a de 35 UC).
II. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"[...] o presente recurso circunscreve-se à consideração/condenação do R./apelante como litigante de má-fé.
Impondo-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.
Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto; assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.
Tendo isto presente, importa salientar que, no caso/apelação vertente, o R. (que se conformou com a sentença que decidiu o mérito do litígio) não impugna os factos dados como provados; sucedendo – sem prejuízo do que se escreveu na motivação da decisão de facto – que dos factos fixados na sentença resulta, efectivamente, uma oposição com o alegado pelo R., uma vez que disse/alegou o que se transcreveu no relatório inicial e, opostamente, ficou provado que foi “na sequência de prestação de serviços, no processo de financiamento tendente à aquisição da sociedade comercial finlandesa F (...) , que o R. se obrigou a pagar, através dum donativo à Fundação Batalha de Aljubarrota, a quantia de € 100.000,00 (…)”.
Expliquemo-nos (o que queremos dizer “sem prejuízo do que se escreveu na motivação da decisão de facto”):
Invocou o A. na presente acção, a nosso ver, uma declaração subsumível ao art. 458.º do C. Civil, preceito que apenas estabelece um regime de “abstracção processual”, ou seja, dispensava o A. da prova da relação fundamental, mas não o dispensava de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir da acção [...].
Efectivamente, como regra, para que haja o dever de prestar e o correlativo poder de exigir a prestação, fora dos casos em que a obrigação nasce directamente da lei (gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, etc.), é necessário o acordo (contrato) entre o devedor e o credor; é o chamado “princípio do contrato”, que significa que só a convenção bilateral, no domínio das obrigações assentes sobre a vontade das pessoas, pode (em regra e fora das situações excepcionais referidas) criar o vínculo obrigacional.
Princípio/regra este de que o art. 458.º não se desvia, ou seja, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º não constituem a fonte autónoma duma obrigação; criam, insiste-se, tão só a presunção de existência duma relação negocial/fundamental (a que o art. 458.º se refere explicitamente), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação, razão por que se inverte o ónus da prova, mas apenas o ónus da prova, ou seja, o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não do ónus de alegar tal relação [...].
Significa isto [...] que quem, como o A./apelado, pretende demandar quem reconheceu unilateralmente um débito não pode limitar-se a juntar aos autos o documento particular que corporiza o acto de reconhecimento unilateral da relação causal anteriormente existente entre as partes, devendo no articulado respectivo identificar tal relação causal, alegando os seus factos essenciais constitutivos – embora, por via da dispensa de prova, contida no art. 458º do CC, esteja dispensado de provar tal factualidade, cumprindo ao demandado demonstrar que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos (se o demandado/declarante provar que tal relação não existe, a obrigação “dissipa-se”, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida) [...].
Encurtando razões – obedecendo ao objectivo desta aparente divagação jurídica – a questão de facto dos autos não tinha o enfoque que consta da sentença recorrida [...]; isto é, estando plenamente provado – por o R. não haver impugnado a assinatura (cfr. 374.º e 376.º do C. Civil) – o que consta do documento transcrito em II.C, pertencia ao R. demonstrar que a concreta causa constitutiva, invocada pelo A., afinal não existe/ia em termos juridicamente válidos, ou seja, não estávamos exactamente perante um problema de interpretação do documento transcrito em II.C e também, a terem que eleger-se, em sede de motivação de facto, contributos para a sua interpretação, estes não consistiriam no apelo e na aplicação das regras dos art. 236.º, 238.º e 342.º/2 do C. Civil [...].
E porquê tudo isto (que, repete-se, nada tem a ver, aparentemente, com um recurso sobre a má-fé)?
Porque, lendo a motivação da decisão de facto (o que tribunal externou como tendo contribuído para a formação da sua convicção), é patente que se deu como provado o que consta do ponto 1 dos factos provados apenas com fundamento no documento transcrito em II.C, interpretando-o à luz das regras dos art. 236.º, 238.º (e, como vimos de referir, tais considerações interpretativas, à luz do art. 236.º e 238.º, não tinham/teriam o seu lugar em sede de decisão de facto, mas sim no momento/sede seguinte da sentença).
Em todo o caso, embora não concordemos (com o enfoque e raciocínios jurídicos da sentença), o que conta – por não ter sido impugnado e não fazer parte do objecto do recurso – é que se fixou como provado, não apenas o que ficou plenamente provado pelo documento, mas que, “na sequência de prestação de serviços, no processo de financiamento tendente à aquisição da sociedade comercial finlandesa F (...) , o R. se obrigou a pagar, através dum donativo à Fundação Batalha de Aljubarrota, a quantia de € 100.000,00 (…)” [...].
E isto provado, “sem apelo”, é indiscutível que o R. – ao alegar que o “A. não lhe prestou qualquer serviço relevante”, que “é falso que o R. tenha solicitado ajuda ao A. para montar o processo de financiamento da aquisição da sociedade comercial de direito finlandês F (...) ”, que “todo o processo negocial foi conduzido sem qualquer intermediação ou outro serviço relevante do A.” – alterou a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa.
Efectivamente:
Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).
Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.
Ora, é justamente este último, em face do que se deu como provado, o comportamento processual do R..
Efectivamente, pretendia o A. que fossem pagos (a terceiro, conforme o combinado) serviços que prestou ao R.; e, tendo este negado tais serviços, foram estes, após julgamento, dados como provados.
Não merece pois censura a condenação do R. como litigante de má-fé; embora por razões não coincidentes com as da decisão recorrida (que situou a má-fé em o R. ter atribuído ao documento um sentido que não lhe pode ser dado)."
Impondo-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.
Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto; assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.
Tendo isto presente, importa salientar que, no caso/apelação vertente, o R. (que se conformou com a sentença que decidiu o mérito do litígio) não impugna os factos dados como provados; sucedendo – sem prejuízo do que se escreveu na motivação da decisão de facto – que dos factos fixados na sentença resulta, efectivamente, uma oposição com o alegado pelo R., uma vez que disse/alegou o que se transcreveu no relatório inicial e, opostamente, ficou provado que foi “na sequência de prestação de serviços, no processo de financiamento tendente à aquisição da sociedade comercial finlandesa F (...) , que o R. se obrigou a pagar, através dum donativo à Fundação Batalha de Aljubarrota, a quantia de € 100.000,00 (…)”.
Expliquemo-nos (o que queremos dizer “sem prejuízo do que se escreveu na motivação da decisão de facto”):
Invocou o A. na presente acção, a nosso ver, uma declaração subsumível ao art. 458.º do C. Civil, preceito que apenas estabelece um regime de “abstracção processual”, ou seja, dispensava o A. da prova da relação fundamental, mas não o dispensava de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir da acção [...].
Efectivamente, como regra, para que haja o dever de prestar e o correlativo poder de exigir a prestação, fora dos casos em que a obrigação nasce directamente da lei (gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, etc.), é necessário o acordo (contrato) entre o devedor e o credor; é o chamado “princípio do contrato”, que significa que só a convenção bilateral, no domínio das obrigações assentes sobre a vontade das pessoas, pode (em regra e fora das situações excepcionais referidas) criar o vínculo obrigacional.
Princípio/regra este de que o art. 458.º não se desvia, ou seja, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º não constituem a fonte autónoma duma obrigação; criam, insiste-se, tão só a presunção de existência duma relação negocial/fundamental (a que o art. 458.º se refere explicitamente), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação, razão por que se inverte o ónus da prova, mas apenas o ónus da prova, ou seja, o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não do ónus de alegar tal relação [...].
Significa isto [...] que quem, como o A./apelado, pretende demandar quem reconheceu unilateralmente um débito não pode limitar-se a juntar aos autos o documento particular que corporiza o acto de reconhecimento unilateral da relação causal anteriormente existente entre as partes, devendo no articulado respectivo identificar tal relação causal, alegando os seus factos essenciais constitutivos – embora, por via da dispensa de prova, contida no art. 458º do CC, esteja dispensado de provar tal factualidade, cumprindo ao demandado demonstrar que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos (se o demandado/declarante provar que tal relação não existe, a obrigação “dissipa-se”, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida) [...].
Encurtando razões – obedecendo ao objectivo desta aparente divagação jurídica – a questão de facto dos autos não tinha o enfoque que consta da sentença recorrida [...]; isto é, estando plenamente provado – por o R. não haver impugnado a assinatura (cfr. 374.º e 376.º do C. Civil) – o que consta do documento transcrito em II.C, pertencia ao R. demonstrar que a concreta causa constitutiva, invocada pelo A., afinal não existe/ia em termos juridicamente válidos, ou seja, não estávamos exactamente perante um problema de interpretação do documento transcrito em II.C e também, a terem que eleger-se, em sede de motivação de facto, contributos para a sua interpretação, estes não consistiriam no apelo e na aplicação das regras dos art. 236.º, 238.º e 342.º/2 do C. Civil [...].
E porquê tudo isto (que, repete-se, nada tem a ver, aparentemente, com um recurso sobre a má-fé)?
Porque, lendo a motivação da decisão de facto (o que tribunal externou como tendo contribuído para a formação da sua convicção), é patente que se deu como provado o que consta do ponto 1 dos factos provados apenas com fundamento no documento transcrito em II.C, interpretando-o à luz das regras dos art. 236.º, 238.º (e, como vimos de referir, tais considerações interpretativas, à luz do art. 236.º e 238.º, não tinham/teriam o seu lugar em sede de decisão de facto, mas sim no momento/sede seguinte da sentença).
Em todo o caso, embora não concordemos (com o enfoque e raciocínios jurídicos da sentença), o que conta – por não ter sido impugnado e não fazer parte do objecto do recurso – é que se fixou como provado, não apenas o que ficou plenamente provado pelo documento, mas que, “na sequência de prestação de serviços, no processo de financiamento tendente à aquisição da sociedade comercial finlandesa F (...) , o R. se obrigou a pagar, através dum donativo à Fundação Batalha de Aljubarrota, a quantia de € 100.000,00 (…)” [...].
E isto provado, “sem apelo”, é indiscutível que o R. – ao alegar que o “A. não lhe prestou qualquer serviço relevante”, que “é falso que o R. tenha solicitado ajuda ao A. para montar o processo de financiamento da aquisição da sociedade comercial de direito finlandês F (...) ”, que “todo o processo negocial foi conduzido sem qualquer intermediação ou outro serviço relevante do A.” – alterou a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa.
Efectivamente:
Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).
Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.
Ora, é justamente este último, em face do que se deu como provado, o comportamento processual do R..
Efectivamente, pretendia o A. que fossem pagos (a terceiro, conforme o combinado) serviços que prestou ao R.; e, tendo este negado tais serviços, foram estes, após julgamento, dados como provados.
Não merece pois censura a condenação do R. como litigante de má-fé; embora por razões não coincidentes com as da decisão recorrida (que situou a má-fé em o R. ter atribuído ao documento um sentido que não lhe pode ser dado)."
[MTS]