"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/11/2016

Jurisprudência (470)


Caso julgado; autoridade de caso julgado;
factos não provados


1. O sumário de RP 6/6/2016 (1226/15.8T8PNF.P1) é o seguinte:

I - O instituto do caso julgado material é analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado.

II - A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério eclético, que sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões 
preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.

III - A autoridade do caso julgado não se verifica relativamente a matéria de facto considerada não provada noutro processo.

2. Na fundamentação do acórdão diz-se o seguinte:

"Na alegação do recurso e respectivas conclusões, o réu D…, para além de impugnar a decisão sobre a matéria de facto integrada na sentença e a sua condenação com base na responsabilidade civil contratual, questiona (ver conclusão D.) o despacho proferido na audiência de julgamento, de 24/11/2015, do seguinte teor:

“Desde logo, como é jurisprudência e doutrina unânimes, no âmbito do C.P.C. anterior à redacção actualmente vigente, e, por maioria de razão, se impõe agora, em face da natureza perfeitamente instrumental da definição dos temas da prova, a selecção daqueles não se constitui com a força do caso julgado, sequer formal, razão pela qual é possível, a todo o tempo e mesmo apenas em sede de sentença final, a consideração como assentes de factos levados aos temas da prova, desde que confessados, plenamente provados por documento ou revestidos da autoridade do caso julgado.
Donde, desde logo improcedente a 1.ª das objecções pelo Réu à pretendida alteração/eliminação.

Considerada outrossim a natureza meramente indiciária ou perfunctória do juízo probatório em sede de Procedimento Cautelar, inatendível também a argumentação in fine de contradição entre o facto sob o ponto 16 da decisão do Procedimento Cautelar junto aos autos a fls. 111 e seguintes e aquele cuja consideração como provado e a eliminação dos temas da prova vem requerida.

No que mais importa agora, cabe remetermo-nos para a exposição já feita em sede de audiência prévia quanto à distinção entre excepção de caso julgado e autoridade de caso julgado, que vem a ser, novamente, convocada no requerimento que antecede. Ora, quando se considere agora que os factos que se constituem como causa defendendi nestes autos e levados aos temas da prova sob o ponto cuja eliminação se requer correspondem aos factos que sob os artigos/pontos 12º a 16º da Sentença constante de fls. 57 e seguintes, já transitada, foram ali havidos por não provados, sendo outrossim que os mesmos ali, isto é, naqueles autos, se prefiguravam como facto constitutivo da pretensão reconvencional julgada improcedente, os mesmos integram-se, manifestamente, na figura/previsão da autoridade de caso julgado.

Assim é que, para fundamentar uma pretensão indemnizatória, os ali e aqui novamente Réus alegaram e não provaram os precisos factos que, novamente, invocaram em sede defensional e que sob o ponto 5º dos temas da prova, indevidamente, se consideram passíveis de “nova” decisão e que, verificada melhor a Sentença constante dos autos, transitada, e pelo exposto se considera inadmissível. 

Assim, como se requer, decide-se da eliminação do ponto 5º dos temas da prova, por se opôr a autoridade do caso julgado, constituída pela falta de prova dos factos sob os artigos/pontos 12º a 16º da Sentença de fls. 62 e ss. dos autos, confirmada pela de fls. 75 e seguintes. E, nos termos da menção em sede de audiência prévia à eficácia do juízo probatório daquela, se terá de haver como definitiva a falta de prova daqueles factos.”.
Cumpre, desde logo, apreciar esta decisão interlocutória, regularmente impugnada (artº 644º, nº 3, do CPC).

O tema de prova enunciado na audiência prévia sob o nº 5 é o seguinte:

“5. Foram inúmeras as tentativas dos réus para que os autores permitissem a realização de obras, tendo estes manifestado sempre a sua expressa oposição e só permitindo que fossem realizadas obras se recebessem uma contrapartida financeira de € 50.000,00.”.

Na decisão sobre a matéria de facto integrada na sentença recorrida consta do item “factos não provados” o nº 3 exactamente com a mesma redacção do descrito nº 5 dos temas de prova.

Na respectiva motivação a julgadora da 1ª instância afirma, no que concerne:

“A convicção do tribunal no que interessa aos factos havidos por provados e por não provados fundou-se:

Decisiva ou relevantemente no teor da decisão junta a estes autos por certidão, por via da autoridade do caso julgado ali formado, em conformidade com a força ou eficiência do juízo probatório ali realizado, em conformidade com a exposição/enquadramento em sede audiência prévia, para a qual, por brevidade, novamente nos remetemos. Assim, determinantemente, os factos havidos por não provados sob 3. a 8.”.

Constata-se, assim, que a julgadora a quo baseou a sua decisão no teor do aludido despacho (impugnado) proferido na audiência prévia, ou seja, na autoridade do caso julgado eventualmente decorrente do decidido no processo nº 1826/09.5TBAMT, e não na análise de qualquer meio de prova produzido na audiência de julgamento ou durante a instrução.

Recorde-se, antes de mais, que, no dispositivo da sentença proferida naquele processo nº 1826/09, confirmada por acórdão desta Relação, de 19/05/2014, julgou-se improcedente quer a acção como reconvenção, com a consequente absolvição dos pedidos. Nessa sentença, considerou-se, na respectiva fundamentação, verificada a caducidade do contrato de arrendamento urbano em causa.

Justifica-se a invocação, na presente acção, da autoridade do caso julgado eventualmente constituída pela falta de prova dos factos sob os artigos/pontos 12º a 16º da sentença de fls. 62 e ss. dos autos, ou seja, a prolatada no mencionado processo nº 1826/09?

Pensamos que não.

De acordo com o nº 1, do 580º, do CPC, a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso e tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (nº 2 do normativo).

Distingue a lei o caso julgado material do caso julgado formal. [...]

“O instituto do caso julgado material é analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado.

O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/2/1998, acessível em www.dgsi.pt).

“[…] Quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado no processo posterior, ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalente um efeito vinculativo, a autoridade do caso julgado material, e a identidade entre os objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a excepção do caso julgado material”.

[…] “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (…), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica.

“Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a “repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente” (Miguel Teixeira de Sousa, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ/325º, p. 171, 176 e 179).

A força e autoridade de caso julgado (material) significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente, tão somente, a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.

Em princípio, segundo alguma doutrina, os limites objectivos do caso julgado confinam-se à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado os fundamentos da mesma (Castro Mendes, Dir. Proce. Civil, 1980,III, pág.282, e Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, 1968, pág. 152, Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio Nora, Manual Proce. Civil,1985, pág.714, Anselmo de Castro, Dir. Proce. Declaratório, 1982,III,pág.404, e Manuel Andrade, Noções Elementares de Proce. Civil,1976,pág.334 e 335).

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem adoptando um critério moderador do rígido princípio restritivo dos limites objectivos do caso julgado. Entende-se que a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos objectivos da mesma, mas abrange as questões preliminares que constituíram as premissas necessárias e indispensáveis à prolação do juízo final, da parte injuntiva, contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material, abrangendo, pois, todas as excepções aí suscitadas por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, solução que permite evitar a incoerência dos julgamentos, respeita os princípios da justiça e da estabilidade das relações jurídicas, propicia a economia processual e corresponde ao alcance do caso julgado contido no artº 621º do CPC (ver, entre outros, os acórdãos do STJ, BMJ nº 353º/352, 388º/377 e CJ/STJ, 1997,II,165, e de 01/06/2010, 12/07/2011, 15/01/2013, 08/11/2013, 21/03/2013, 26/03/2015, 07/05/2015 e 16/02/2016, todos acessíveis em www.dgsi.pt). [...]

Os limites objectivos do caso julgado abrangem o objecto do processo, ou seja, todas as questões que o juiz deve resolver, mesmo que suscitadas pelo réu em sua defesa desde que interessem ao conhecimento e decisão do litígio.

Em suma, nos limites objectivos do caso julgado material incluem-se todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.

Do expendido, importa reter, no essencial, que uma sentença pode servir como fundamento da excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção já foi, total ou parcialmente, por aquela definido; quando o autor pretenda ver reconhecido, na nova acção, o mesmo direito que já lhe foi negado por sentença proferida noutra acção - identificado esse direito não só através do seu conteúdo e objecto, mas também através da sua causa ou fonte.

No entanto, saliente-se, em matéria de fundamentação de facto, mesmo após o trânsito em julgado da respectiva sentença, não ocorrerá, em princípio, caso julgado, ou seja, a extensão objectiva da respectiva eficácia no novo processo – artº 621º, do CPC.

Dispõe o nº 1, do artº 581º, do CPC, que se repete a causa “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

Assim, duas acções só serão idênticas quando, numa e noutra, as partes sejam as mesmas, o objecto seja o mesmo (“numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”) bem como a causa de pedir.

A autoridade do caso julgado dispensa, em princípio, essa tripla identidade (ver Ac. do STJ de 29/05/2014, acessível em www.dgsi.pt).

Feitas estas considerações, importa reter que a matéria de facto em causa, enunciada com tema de prova na audiência prévia (ponto 5.) e depois retirada desse âmbito no decurso da audiência de julgamento, foi considerada não provada na sentença proferida no processo nº 1826/09 (correspondendo, no essencial, ao vertido nos nºs 12 e 13 dos factos não provados).

Como se sabe, da resposta negativa a determinada matéria de facto apenas resulta que se não provou essa factualidade, mas não que se demonstrasse o facto contrário, tudo se passando como se essa matéria não tivesse sido articulada/alegada.

Significa isto, a nosso ver, que aquela factualidade inexistente não foi considerada para a apreciação de qualquer questão que constituísse antecedente lógico da decisão proferida nos referidos autos.

Como predito, em matéria de fundamentação de facto, mesmo após o trânsito em julgado da respectiva sentença, não ocorrerá, em princípio, caso julgado, ou seja, a extensão objectiva da respectiva eficácia no novo processo.

Por isso, no que concerne aos factos tidos por não provados na acção nº 1826/09, não se impõe, salvo melhor opinião, a autoridade do caso julgado na presente acção.

O ponderado na fundamentação de direito no sentido de que “da caducidade deste contrato de arrendamento nasceu para os réus (locadores) a obrigação de indemnizar os autores (locatários) pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela parda do locado (…)” não vincula o julgador/sentenciador da presente acção, sendo certo que foi decidido, com trânsito em julgado, na audiência prévia, no cotejo das duas acções, julgar improcedente a excepção do caso julgado.

Com efeito, esta acção não se destina a fixar os limites quantitativos de um direito de crédito (indemnizatório) já reconhecido judicialmente aos demandantes mas a determinar a existência desse eventual direito e a definir o quantitativo do mesmo."

[MTS]