"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/11/2016

Jurisprudência (485)


Escritura pública: prova testemunhal;
poderes do STJ


1. O sumário de STJ 2/6/2016 (781/11.6TBMTJ.L1.S1) é o seguinte:

I - O dever de fundamentar as decisões (art. 154.º do NCPC (2013)) impõe-se por razões de ordem substancial – cabe ao juiz demonstrar que, da norma geral e abstracta, soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto – e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão a fim de, podendo, a impugnar.

II - Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.

III - O vício a que se refere a primeira parte da al. c) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC radica na desarmonia lógica entre motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diversa. A obscuridade e a ambiguidade mencionadas na segunda parte desse preceito verificam-se, respectivamente, quando alguma passagem da decisão seja inintelegível ou quando se preste mais do que um sentido.

IV - A apreciação da admissibilidade do recurso à prova testemunhal para determinar as circunstâncias em que ocorreu a intervenção de uma pessoa numa escritura pública (art. 393.º do CC) cabe nos poderes cognitivos do STJ (n.º 2 do art. 674.º do NCPC).

V - Não tendo o resultado da prova testemunhal sido empregue para infirmar o âmago da força probatória plena reconhecida a esse documento – a prestação, pelos outorgantes nesse acto notarial, das declarações consignadas na escritura pública de compra e venda – mas antes para demonstrar a falta de correspondência entre a vontade real e a vontade declarada do comprador para efeitos de ilisão da presunção legal (art. 344.º, n.º 1 e art. 350.º, ambos do CC) derivada do registo predial (e não os requisitos da simulação), inexiste violação do disposto no n.º 2 do art. 393.º daquele diploma.

VI - A interpretação do preceituado do art. 674.º do NCPC segundo a qual, fora dos casos excepcionais expressamente prevenidos no seu n.º 3, cabe apenas ao STJ aplicar aos factos apurados pelas instâncias o pertinente regime legal (de onde, consequentemente, se retira que lhe é vedado apreciar o eventual erro de julgamento cometido pela Relação na alteração da matéria de facto decidida em 1.ª instância), não viola qualquer imperativo constitucional, já que a CRP não garante o acesso das partes a diferentes graus de jurisdição mas somente, no domínio do processo civil, o direito ao recurso (al. a) do n.º 1 do art. 209.º e n.os1, 3, 4 e 5 do art. 210.º da Lei Fundamental), cabendo ao legislador a concreta conformação do seu regime.
 

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"2. A questão verdadeiramente essencial no presente recurso, suscitada a coberto dos vícios imputados ao acórdão recorrido, prende-se com a admissibilidade ou não da prova testemunhal no tocante à materialidade alegada na petição inicial relativa às circunstâncias que determinaram a intervenção de HH como comprador na escritura pública de compra e venda.

No caso sub judice, estamos perante uma acção de reivindicação relativa a um terreno, correspondente aos prédios rústicos inscritos na matriz predial rústica da freguesia de Canha sob os artigos 27 e 28 da secção AH [...].

A causa petendi na acção de reivindicação de propriedade, ou seja, o facto jurídico de que deriva aquele direito consubstancia-se no título invocado como aquisitivo da propriedade. Funda-se no concreto acto ou facto jurídico alegado para justificar a aquisição desse direito, sendo que na presente acção a causa de pedir, ou seja, o título invocado como aquisitivo da propriedade é a usucapião.

A alegação da facticidade que rodeou e precedeu a celebração da escritura de compra e venda do aludido terreno, na qual figura como comprador o falecido HH, pai do ora recorrente, não teve em vista alcançar a declaração de simulação do negócio com a inerente declaração de nulidade, nos termos do disposto no artigo 240º do Código Civil, mas ilidir a presunção de propriedade a seu favor derivada do registo realizado com base na aquisição titulada nesse documento, em conformidade com o disposto no artigo 7º do Código do Registo Predial.

Daí que o recorrente tivesse vindo invocar a violação do disposto no artigo 393º, e não do artigo 394º, ambos do Código Civil.

A discordância do recorrente não radica no seu inconformismo face ao modo como os depoimentos testemunhais prestados em audiência foram livremente valorados pela Relação ao conhecer da impugnação da decisão fáctica, ao abrigo do estatuído no artigo 662º do Código de Processo Civil. Antes assenta na violação da proibição legal do uso da prova testemunhal para aferir da facticidade relativa ao circunstancialismo que envolveu a outorga da escritura pública de compra e venda do aludido terreno pelo pai do recorrente na veste de comprador.

O que está na origem da dissidência do recorrente não é o juízo de facto formulado quanto à materialidade em questão, não é um eventual erro de julgamento no âmbito da livre apreciação da prova testemunhal pelo julgador, mas a inadmissibilidade legal de produção de prova testemunhal decorrente do disposto no artigo 393º nº 2 do Código Civil, que, a verificar-se, conduziria à desconsideração, designadamente, dos seguintes factos:

10. Apesar de ter agido formalmente como procurador do sogro (HH), o Engenheiro CC agiu ao longo dos anos por conta do seu pai AA (Ponto 13)


11. O HH não gastou dinheiro com a compra, financiamento do terreno e obras de beneficiação (Ponto 15).

Colocada nestes termos a questão, cai no âmbito dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 674º nº 2 do Código Civil.

Reza assim o artigo 393º do Código Civil:

«1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.


2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.

3. As regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento». 

Sobre a inadmissibilidade da prova testemunhal consagrada neste normativo escreveram Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed. Revista e Actualizada, pág. 342) ser necessário interpretar nos seus justos termos a doutrina do nº 2, cingindo-a aos factos cobertos pela força probatória plena do documento, nada impedindo o recurso à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.

Também Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra 1983, pág. 214) escreveu que os documentos autênticos só fazem prova plena na parte em que contêm quaisquer atestações do notário relativamente a acções ou percepções suas, isto é, a actos por ele mesmo praticados ou a factos – ou palavras – por ele mesmo presenciados (propius sensibus visu et auditu).

A prova testemunhal a que se refere o recorrente não visou infirmar o que foi directamente percepcionado pelo notário no exercício das suas funções, ou seja, que pelos outorgantes foram prestadas as declarações consignadas na escritura pública de compra e venda, as quais estão cobertas pela prova plena de que este documento está dotado, mas demonstrar a falta de correspondência entre o que foi declarado naquele acto notarial pelo comprador HH, de quem o recorrente é herdeiro, e a sua vontade real, dessa forma ilidindo a presunção registral decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial.

Perante a presunção legal de que o direito de propriedade existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define, sobre a parte contrária recai o ónus probatório de afastar essa presunção, alegando e provando os factos susceptíveis de demonstrar que a aquisição registada não tem correspondência com a realidade (artigos 350º e 344º nº 1 do Código Civil).

Em face dos contornos do presente litígio, a autora não se propunha provar a simulação. A prova da desconformidade entre a vontade real e a vontade expressa pelo comprador V... no acto notarial – escritura de compra e venda – com a finalidade de afastar a aludida presunção legal é passível de ser realizada através de testemunhas, sem que tal envolva violação do comando legal inserto no artigo 393º nº 2 do Código Civil. Tem de admitir-se numa tal situação prova testemunhal."


[MTS]