"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/11/2016

Jurisprudência (477)


Intimação para prestação de informações;
reserva da intimidade da vida privada


1. O sumário de STJ 25/5/2016 (11/16.4YFLSB.S1) é o seguinte:
 
I - A acção de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões vem prevista no art. 104.º e segs. do CPTA. Trata-se de um meio processual autónomo através do qual podem ser exercidos o direito à informação procedimental e o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (informação extra-procedimental), tutelando-se assim este direito à informação, consagrado constitucionalmente (art. 268.°, nºs 1 e 2 da CRP) e regulado nos arts. 17.° e 82.° e segs. do CPA e pela Lei 46/2007, de 24-08.
 
II - O direito de acesso aos arquivos e registos administrativos possui ressalvas, designadamente, aquelas que resultam da lei no que toca a matérias relativas à intimidade das pessoas. O direito à reserva da intimidade da vida privada implica, para o Estado, o dever de assegurar a cada cidadão uma esfera intocável de privacidade, excluída da curiosidade alheia, o que fundamenta a necessidade de excluir o direito de acesso a documentos que contenham dados pessoais não públicos.
 
III - Devem ser classificados como documentos nominativos, nos termos do art. 3.º, n.º 1, al. d) da Lei 46/2007, os que revelam dados do foro íntimo de um indivíduo, como, por exemplo, os seus dados genéticos, de saúde, ou os que se prendem com a sua vida sexual, os relativos às suas convicções ou filiações filosóficas, políticas, religiosas, partidárias ou sindicais, os que contenham opiniões sobre a pessoa, e outros documentos cujo conhecimento por terceiros possa, em razão do seu teor, traduzir-se numa invasão da reserva da intimidade da vida privada.
 
IV - A acção de intimação não pode ser utilizada para obter documentos destinados a instruir processos de natureza penal ou cível. A obtenção de informações ou documentos que se mostrem necessários para instruir acções cíveis terá de realizar-se através dos mecanismos adequados, como os previstos nos arts. 417.°, 418.° e 436.° do CPC, sendo esse o meio adequado à satisfação da pretensão do requerente, permitindo a resolução célere da questão e com uma mais completa e concreta ponderação dos interesses em presença, incluindo a confidencialidade dos dados.
 
V - O requerente pretende aceder ao "teor integral do registo biográfico", ao "registo das faltas", às "avaliações de desempenho dos últimos 7 anos" e ao "registo disciplinar" do Juiz, do processo em que o requerente foi parte. Estes elementos pretendidos, contêm dados nominativos, ou seja, são todos estritamente pessoais. Mesmo aquele que tem uma coloração mais neutra - o registo biográfico - pode conter dados (registo criminal e sobre a saúde, por ex.) com acesso reservado; as "faltas", que, em princípio, incluem as razões que as ditaram; as "avaliações de desempenho", que contêm necessariamente apreciações e juízos de valor sobre a pessoa e, pelos mesmos motivos, o "registo disciplinar" (cfr. art. 113.º do EMJ) revelam aspectos do seu foro íntimo, pelo que o seu conhecimento por terceiros viria a traduzir-se numa clara violação da reserva da intimidade da vida privada do visado.
 
VI - O acesso a esses elementos só seria legítimo se o requerente demonstrasse a existência de autorização escrita do visado (ou de quem o representa) ou um interesse pessoal directo suficientemente relevante, nos termos do art. 6.º, n.º 5 da citada lei. Inexistindo autorização escrita do visado e sendo a amplitude do acesso requerido manifestamente desajustada ao interesse manifestado pelo requerente (o qual não foi minimamente concretizado), é de julgar improcedente a acção de intimação.
 
2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:
 
"28º) O artigo 104.º do CPTA permite a utilização do processo administrativo urgente de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, quando não seja dada integral satisfação a pedidos formulados no exercício do direito à informação procedimental ou do direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (n.º 1), podendo o pedido de intimação ter lugar, ainda, para obter a notificação integral de um ato administrativo (cfr. n.º 2 do referido preceito e artigo 60.º, n.º 2, do CPTA).

29º) Os requisitos legais do processo de intimação em apreço – que abrange quer os pedidos relativos à informação procedimental, quer à informação não procedimental - são os seguintes:

«a) A recusa da Administração em facultar a consulta de documentos, prestar informações ou processos ou em passar certidões, dentro de um prazo de 10 dias; 
 
b) A instauração da presente intimação dentro do prazo de 20 dias subsequentes ao prazo de 10 dias que a lei faculta à autoridade pública para a consulta de documentos, prestação de informações ou a passagem de certidão; e
c) O carácter não secreto ou confidencial das matérias objecto das requeridas consulta de documentos, prestação de informação, ou passagem de certidão» (assim, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 29/05/2008, processo n.º 01130/07.3BECBR [...].

30º) Ou seja: «A procedência do presente meio depende da verificação dos seguintes requisitos:

a) A qualidade de interessado do Requerente;

b) A existência de um pedido prévio à interposição da intimação dirigido à Administração solicitando a prestação de informação, a emissão de certidão, ou a consulta do processo;

c) Que a Administração, por omissão ou recusa, não tenha prestado a “informação” solicitada no prazo legal;

d) Que o Requerente intime judicialmente a Administração no prazo processual de 20 dias;
 
e) Que não ocorram limites, restrições, exceções constitucionais e/ou legais justificativas de recusa da administração em prestar a “informação” solicitada».

31º) Ora, independentemente da verificação dos demais pressupostos, certo é que, não se afigura reunido o último dos pressupostos referidos, ocorrendo motivo justificativo para a recusa na prestação documentação pretendida. Senão vejamos:

32º) O artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa prevê que os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam diretamente interessados, bem como, o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas (n.º 1).

33º) De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 268.º da Constituição – aditado na Revisão Constitucional de 1989 - «os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas».

34º) Como se salienta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 117/2015: «Esta norma veio consagrar, no plano constitucional, o princípio da administração aberta ou do arquivo aberto, que permite a qualquer cidadão o acesso a arquivos e registos administrativos. Na raiz do princípio está a pretensão de substituir e superar o princípio da arcana praxis ou o princípio do segredo, característico de um modelo de Administração Pública autoritária, burocrática, fechada sobre si mesmo, que decide em segredo, pelo princípio geral da publicidade ou da transparência, próprio de uma Administração aberta, participada, que age em comunicação com os administrados.
 
 A mudança para uma nova Administração traduz-se, além do mais, em facultar «aos cidadãos uti universi informações em primeira mão sobre atitudes, orientações e projetos da Administração, munindo-os de meios indispensáveis à sua participação, enquanto agentes cívicos, em quaisquer campos da ação administrativa, sobretudo naqueles que mais interesse suscitam na opinião pública. Sob este aspeto, o princípio do arquivo aberto organiza, no pano do direito administrativo, o direito cívico que se filia na liberdade de dar, de receber e de procurar informações. É portanto, um instrumento do direito à informação, hoje incluído por muitos no catálogo dos direitos fundamentais do cidadão» (cf. Barbosa de Melo, As garantias dos Administrados na Dinamarca e o Principio do Arquivo Aberto, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LVII, 1981, pág. 270)».

35º) Como conclui o mesmo aresto do Tribunal Constitucional: «o direito à informação consagrado no n.º 1, do artigo 268.º é uma das principais expressões do direito de participação previsto no n.º 4, do artigo 267.º da CRP, uma vez que quem participa efetivamente num procedimento não pode deixar de conhecer o seu objeto e os atos e formalidades que o formam; já o direito à informação consagrado no n.º 2 do artigo 268.º é expressão, no domínio dos direitos e garantias dos administrados, do mais amplo direito à informação garantido no n.º 2 do artigo 48.º da CRP, que se funda nas exigência de democratização e transparência da vida administrativa. E daí que os dois direitos tenham objetivos diferentes: «o direito à informação administrativa procedimental visa a tutela de interesses e posições subjetivas diretas, enquanto o direito de acesso a arquivos e registos administrativos está configurado como um dos instrumentos de proteção de interesses mais objetivos partilhados pela comunidade jurídica, designadamente o da transparência da ação administrativa» (cf. Raquel Carvalho, O Direito Á Informação Administrativa Procedimental, Publicações Universidade Católica, Porto, 1999, págs. 160 e 161)».

36º) Na concretização do mencionado preceito constitucional, o CPA enuncia – ao lado de um princípio da proteção dos dados pessoais (artigo 18.º) - um princípio da administração aberta (artigo 17.º) nos seguinte termos:

«1- Todas as pessoas têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, mesmo quando nenhum procedimento que lhes diga directamente respeito esteja em curso, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal, ao sigilo fiscal e à privacidade das pessoas.

2 – O acesso aos arquivos e registos administrativos é regulado por lei».

37º) Para além disso, o CPA consagra todo um capítulo ao direito à informação (artigos 82.º a 85.º) prevendo um direito dos interessados à informação, sobre o andamento dos procedimentos em que sejam diretamente interessados, o direito de consulta de processos e a passagem de certidões.

38º) Centrando-nos no n.º 2 do artigo 268.º da CRP – pois, previamente, ao requerimento apresentado no CSM inexistia algum procedimento em curso referente ao requerente – a Constituição consagra expressamente restrições no acesso à informação constante de registos e arquivos administrativos, em matérias referentes à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas, ainda que admita que a concretização de tais restrições se efetue pela lei .

39º) Mostram-se, pois, excluídas do mencionado direito de acesso aos documentos administrativos as matérias referentes à segurança interna ou externa do Estado, aquelas que estejam sujeitas ao segredo de Justiça, ao regime do segredo do Estado e que ponham em causa a intimidade pessoal.

40º) Mas para além destas restrições expressas, outras imanentes têm sido assinaladas, designadamente, no confronto entre os vários direitos constitucionalmente protegidos.

41º) De facto, «para além das restrições expressamente previstas no n.º 2 do artigo 268.º da CRP, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido que o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos pode sofrer outras restrições impostas pela necessidade de salvaguardar direitos e interesses constitucionalmente protegidos.

A consagração constitucional da transparência como regra, empurrando o segredo para o domínio da exceção, não exclui a existência de outras áreas onde se justifique uma intervenção legislativa destinada a resolver, por via geral e abstrata, um conflito entre direitos e valores afirmados por normas e princípios constitucionais. O facto da Constituição consagrar limites expressos não implica que nenhum outro limite seja admitido. É que, qualquer que seja o âmbito e intensidade de proteção de um direito na Constituição, podem existir limites que resultam simplesmente da existência de outros direitos e bens, igualmente reconhecidos na Constituição e que em certas circunstâncias com eles conflituam. Como se refere no Acórdão n.º 254/99, “o n.º 2 do artigo 268.º implica que em matérias que não sejam relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas, o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos não tem à partida (prima facie, a priori) os limites que resultam da lei nestas matérias. Nessas outras matérias apenas pode ter a posteriori os limites que resultam da solução constitucional das situações de conflito com outros bens ou interesses constitucionalmente protegidos”».

42º) Como assinala o Tribunal Constitucional, «há domínios não referidos no n.º 2 no artigo 268.º que podem conflituar com o direito de acesso, como é o caso dos documentos que contenham informação sobre a vida económica das empresas ou relacionada com direitos de propriedade intelectual ou industrial e respetivos segredos comerciais e industriais».

43º) A LADA concretizou diversas restrições ao direito de acesso aos documentos administrativos, cuja conformidade constitucional foi já, por diversas vezes, objecto de apreciação, sem objeção de inconstitucionalidade.

44º) Dispõe o artigo 6.º da LADA o seguinte:

«1 ‐ Os documentos que contenham informações cujo conhecimento seja avaliado como podendo pôr em risco ou causar dano à segurança interna e externa do Estado ficam sujeitos a interdição de acesso ou a acesso sob autorização, durante o tempo estritamente necessário, através da classificação nos termos de legislação específica.

2 ‐ O acesso a documentos referentes a matérias em segredo de justiça é regulado por legislação própria.

3 ‐ O acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração.

4 ‐ O acesso aos inquéritos e sindicâncias tem lugar após o decurso do prazo para eventual procedimento disciplinar.

5 ‐ Um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos se estiver munido de autorização escrita da pessoa a quem os dados digam respeito ou demonstrar interesse directo, pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade.

6 ‐ Um terceiro só tem direito de acesso a documentos administrativos que contenham segredos comerciais, industriais ou sobre a vida interna de uma empresa se estiver munido de autorização escrita desta ou demonstrar interesse directo, pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade.

7 ‐ Os documentos administrativos sujeitos a restrições de acesso são objecto de comunicação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa à matéria reservada».

45º) Para além das aludidas restrições, a LADA enunciou também limitações de acesso, designadamente decorrentes do respeito da reserva pela intimidade da vida privada, na medida em que distingue entre os documentos administrativos nominativos («o documento administrativo que contenha, acerca de pessoa singular, identificada ou identificável, apreciação ou juízo de valor, ou informação abrangida pela reserva da intimidade da vida privada») e os documentos administrativos não nominativos (os que não contenham os aludidos elementos nominativos)." 
 
[MTS]