1. Dois recentes acórdãos justificam que se possa duvidar de que os tribunais estejam a aplicar de forma adequada o dever de colaboração do tribunal, em especial na modalidade de dever de advertência das partes para vícios que são susceptíveis de sanação (art. 7.º, n.º 1, e 6.º, n.º 2, CPC)
TC 14/7/2016 (462/2016) decidiu o seguinte caso: um recorrente alegou a inconstitucionalidade apenas nas conclusões do recurso interposto para a Relação; a Relação não convidou o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso e não conheceu da alegada inconstitucionalidade; o recorrente interpôs recurso para o TC, alegando a inconstitucionalidade da omissão do convite ao aperfeiçoamento. De uma forma que pode ser considerada surpreendente, o TC recusou tutela constitucional ao dever de colaboração do tribunal e considerou não inconstitucional a omissão pela Relação do dever de advertência (cf. Jurisprudência constitucional (91)).
STJ 27/10/2016 (3176/11.8TBBCL.G1.S1) apreciou se a falta de cumprimento pelo recorrente do ónus de, num recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, indicar a decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida sobre as questões de facto impugnadas (cf. art. 640.º, n.º 1, al, c), CPC), é susceptível de justificar o convite ao aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso. Também de forma surpreendente, o STJ afirmou o seguinte:
"Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto. O que denega, de todo em todo, a ideia da possibilidade de prolação de um despacho de aperfeiçoamento. Manifestamente que a lei não quis impasses e tergiversações em matéria de impugnação do julgamento dos factos, impondo neste domínio rigor e autorresponsabilidade à parte recorrente. Aliás, só pode ser aperfeiçoado o ato processual da parte que, tendo sido praticado, se apresente como deficiente, obscuro ou complexo. Não o ato processual que pura e simplesmente não foi praticado, e seria o caso."
2. Neste momento, não interessa discutir um a um os argumentos utilizados pelo TC e pelo STJ nos acórdãos acima referidos. Basta referir que os mesmos desconsideram por completo o dever de cooperação do tribunal (no acórdão do TC este dever nem sequer é referido), favorecendo ambos uma decisão puramente formal em detrimento da apreciação das pretensões das partes. Aliás, dado que ambos os acórdãos confirmam as decisões recorridas, o mesmo pode ser dito destas mesmas decisões.
Nenhum dos acórdãos cumpre o desiderato da prevalência da substância sobre a forma, dado que, em ambos os casos, os recursos interpostos para a Relação deixam de ser apreciados por razões puramente formais. A "forma pela forma" impôs-se e serviu de parâmetro de decisão.
Em contraste com os referidos acórdãos, bem andou STJ 26/5/2015 (1426/08.7TCSNT.L1.S1), ao defender o seguinte:
"No âmbito da impugnação sobre a matéria de facto, a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, [...] do CPC [...] não funciona, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação."
Processo é, naturalmente, forma. Mas a forma deve ser um instrumento para a obtenção da tutela requerida, não um obstáculo à obtenção da tutela, nem, muito menos, um pretexto para a não obtenção da tutela.
3. O legislador não tem de referir artigo a artigo o dever de cooperação do tribunal com as partes. O dever de cooperação é um princípio estruturante do processo civil português (não certamente por acaso constante de um dos artigos iniciais do CPC (cf. art. 7.º)), o que implica que os artigos do CPC devem ser aplicados em consonância com esse mesmo dever. Em vez de uma leitura atomizada dos artigos do CPC, o que naturalmente se impõe é uma aplicação do CPC em consonância sistemática com os seus princípios estruturantes, nomeadamente com o dever de cooperação do tribunal.
Neste sentido, o que se pode desejar é que uma jurisprudência que desrespeita o princípio da cooperação e, em especial, o dever de colaboração do tribunal não se torne dominante. Se isso suceder, o disposto no art. 7.º CPC tornar.se-á letra morta e o tão criticado formalismo processual voltará a imperar. É este o futuro que se quer para o processo civil português?
MTS