"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/11/2016

Jurisprudência (471)


Procedimento especial de despejo;
resolução do contrato; interesse em agir


1. O sumário de RC 14/6/2016 (596/15.2T8PBL.C1) é o seguinte: 

I – Os Tribunais judiciais são competentes para conhecer de uma acção em que, além de indemnização por danos causados, é pedida a resolução de um contrato de arrendamento com base em diversos fundamentos (designadamente em mora no pagamento de rendas), sendo certo que o Balcão Nacional de Arrendamento, além de não dispor de competência para apreciar pedidos de indemnização por danos causados, também não tem competência para declarar a resolução do contrato; o BNA apenas tem competência, no âmbito do procedimento especial de despejo, para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que (alegadamente) já tenha operado extrajudicialmente, nos casos em que a cessação do contrato opera sem necessidade de intervenção judicial.

II – Assim, se o senhorio não procedeu à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento (ainda que, com fundamento na falta de pagamento de rendas, tal lhe fosse permitido), optando por intentar uma acção judicial com vista a obter e ver declarada tal resolução, são os tribunais judiciais – e não o BNA – os competentes para a sua apreciação, apenas se podendo questionar se o senhorio tem ou não um interesse processual relevante (interesse em agir) no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas em virtude de a lei determinar que a resolução do contrato com esse fundamento opera por comunicação à contraparte sem necessidade de intervenção judicial.

III – Todavia, pretendendo o senhorio obter a resolução do contrato por diversos fundamentos e sendo certo que a resolução com base em alguns desses fundamentos apenas poderia ser decretada pelo Tribunal, impõe-se reconhecer que tem um interesse processual relevante em pedir ao Tribunal a resolução do contrato com base em todos esses fundamentos e que, como tal, dispõe de interesse em agir no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas ainda que, com este específico fundamento, pudesse ter resolvido o contrato de forma extrajudicial e mediante comunicação a efectuar ao arrendatário, nos termos previstos na lei.
 

2. Na fundamentação do acórdão consta o seguinte:

"O Autor pretende ver declarada a resolução do contrato de arrendamento por diversos fundamentos e, designadamente, por falta de pagamento de rendas.

Como decorre do disposto no art. 1084º do CC, a resolução do contrato pelo senhorio apenas pode operar por comunicação ao arrendatário em caso de mora no pagamento da renda, encargos ou despesas ou em caso de oposição do arrendatário à realização de obra ordenada por entidade pública, nos termos e nas condições mencionadas na aludida disposição legal; a resolução do contrato pelo senhorio com qualquer outro fundamento é decretada nos termos da lei de processo – cfr. nº 1 do citado art. 1084º - e, portanto, com intervenção judicial.

A decisão recorrida, considerando que aquilo que o Autor pretende (fundamentalmente) é a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento pontual das rendas e o consequente despejo do locado, sustenta que essa pretensão teria que ser formulada através do procedimento especial de despejo que não é da competência do Tribunal mas sim do BNA.

Mas, para que o Autor pudesse recorrer a tal procedimento seria necessário que apresentasse o comprovativo da comunicação prevista no nº 2 do art. 1084º do CC (cfr. nº 2 alínea e) do citado art. 15º), ou seja, teria que proceder previamente à resolução do contrato mediante comunicação ao arrendatário nos termos previstos na aludida disposição legal e, ao que parece, não o fez (sendo que nada foi alegado nesse sentido). E, não tendo procedido à resolução do contrato por essa via, não estava, naturalmente, em condições de recorrer ao procedimento especial de despejo.

É certo, portanto, que, atendendo aos factos alegados na petição inicial, a pretensão que o Autor vem exercer não era da competência do BNA; o que o Autor pretende, por via desta acção, é que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento e para esse efeito o BNA não dispõe de qualquer competência; o BNA apenas tem competência para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que já tenha operado pelos meios e nos termos previstos na lei e não para declarar a resolução do contrato.

A questão que se poderia colocar era a de saber se o Autor (senhorio) podia ou não vir pedir ao Tribunal a resolução do contrato com fundamento em falta de pagamento de rendas, quando a lei determina que a resolução do contrato com esse fundamento opera por comunicação à contraparte sem necessidade de intervenção judicial. Mas ainda que se entendesse que não podia recorrer ao Tribunal, não estaria em causa, salvo o devido respeito, uma questão de competência, mas sim uma questão de interesse processual (interesse em agir) que, como se tem entendido, constitui um pressuposto processual da acção.

De facto, ainda que a questão não seja líquida, parece-nos que o senhorio terá, pelo menos em abstracto, o direito de recorrer aos tribunais e intentar uma acção judicial com vista a obter a declaração de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento de rendas e consequente condenação na entrega do imóvel e, portanto, a única questão que se poderia colocar prende-se com o interesse processual (interesse em agir).

É certo que do disposto no art. 1084º do CC e do art. 14º, nº 1, da Lei 6/2006, parece resultar que a acção de despejo apenas se destina às situações em que a lei impõe o recurso à via judicial, o que apenas acontece relativamente à resolução efectuada pelo senhorio com fundamento no disposto no nº 2 do art. 1083º e não nos casos em que a lei expressamente permite que a resolução do contrato opere por via extrajudicial.

Afigura-se-nos, porém, que essa é uma leitura demasiado redutora que colide com o direito constitucional de acesso aos tribunais, que está consagrado no art. 20º da Constituição e que inclui “…o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (…) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada…”
[J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, pág. 163] e com o disposto no art. 2º, nº 2, do Código de Processo Civil, onde se dispõe que “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.

Mas ainda que, em face do disposto nas citadas normas, não deva ser negado ao senhorio o direito, em abstracto, de recorrer aos tribunais para ver reconhecido judicialmente o seu direito à resolução do contrato de arrendamento, poder-se-á questionar se tem algum interesse processual relevante (interesse em agir) em propor uma acção com essa finalidade, quando é certo que pode resolver o contrato por via extrajudicial.

Mas, mesmo nessa perspectiva, a nossa jurisprudência tem considerado que o senhorio, ainda que tenha ao seu dispor um meio alternativo para resolver o contrato, dispõe de interesse em agir na propositura de uma acção judicial com essa finalidade [
Cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 06/05/2010, processo nº 438/08.5YXLSB.LS.S1 e os Acórdãos da Relação do Porto de 06/05/2014, processo nº 747/13.1TBPVZ.P1e de 17/10/2013, processo nº 2541/11.5TBOAZ.P1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt].

De qualquer forma, ainda que noutras situações esse interesse em agir possa ser discutível, parece-nos que ele é inegável no caso sub judice, na medida em que, o Autor não se limita a pedir a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas, invocando também muitos outros factos que, na sua perspectiva, constituem fundamento para a resolução do contrato e com base nos quais não poderia proceder à resolução extrajudicial, na medida em que, como dispõe o art. 1084º do CC, a resolução do contrato com esses fundamentos apenas pode ser decretada pelo Tribunal.

Parece-nos, com efeito, não poder – nem dever – ser exigido ao Autor que, tendo necessidade de intentar uma acção judicial para obter a resolução do contrato com fundamento nos demais factos que vem invocar (resolução que, como se disse, apenas poderia ser decretada pelo Tribunal), tivesse que utilizar outro meio – a resolução extrajudicial – para resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas, correndo o risco – naturalmente – de ver contestada a resolução extrajudicial e o subsequente procedimento especial de despejo a que viesse a recorrer, o que daria origem a um novo processo judicial, em conformidade com o disposto nos arts. 15º-H e segs. do NRAU. E, portanto, pretendendo obter a resolução do contrato com diversos fundamentos, não poderá deixar de ser reconhecido ao senhorio o direito e o interesse de ver apreciados todos esses fundamentos através de um único meio – a acção judicial – e de assim obter a resolução do contrato.


3. Ao contrário da jurisprudência citada no acórdão, não deve ser reconhecido interesse processual ao senhorio quando o mesmo possa obter a resolução do contrato por mera comunicação ao arrendatário. O interesse processual serve precisamente para evitar acções inúteis (ou não necessárias), como sucede sempre que o efeito que se pretende obter através da acção instaurada possa ser obtido, de forma mais célere e económica, através de um meio extrajudicial.

A situação é distinta quando -- como sucedia no caso decidido pela RC -- o senhorio pretenda obter a resolução do contrato de arrendamento com um fundamento que não justifica a resolução extrajudicial. Neste caso, há que reconhecer-lhe interesse processual, ainda que na acção proposta seja invocado um fundamento que teria permitido a resolução extrajudicial do contrato de arrendamento: o que é indispensável é que, além deste fundamento, sejam invocados outros fundamentos que não permitem a resolução extrajudicial daquele contrato.

MTS