"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/11/2016

Conhecimento ex officio e convolação oficiosa do objecto do processo



I. No sumário de STJ 7/6/2016 (2835/14.8TCLRS.L1.S1) pode ler-se o seguinte: 

1. Não podem os Tribunais ser alheios ao sentido de justiça dominante na sociedade que é o que as pessoas de bem acolhem intemporalmente. Um negócio jurídico de compra e venda e outros sequentes, tendo por objecto imóveis de outrem, que o vendedor adquiriu por actuação criminosa sancionada com sentença transitada em julgado, não pode ser considerado válido: é nulo por ser legalmente impossível, decorrendo essa nulidade do art. 280º, do Código Civil.

2. Tendo em conta alegação da Autora, sobretudo, no que deve ser articulado com a sentença transitada em julgado proferida em processo-crime, foi prematuro julgamento do mérito de causa no despacho saneador, por aí se ter entendido que a Autora não dispunha de um direito de crédito, no enfoque do seu pedido correspondente ao da acção de impugnação pauliana.

3. A provarem-se os factos alegados pela Autora, o Tribunal poderá considerar a nulidade dos negócios jurídicos celebrados pelos Réus, invocados como causa de pedir, não só pela via do conhecimento oficioso de simulação absoluta, se provados os pertinentes requisitos, como também por violação do art. 280º do Código Civil, como se assinalou.

4. A ordem jurídica não tolera, que, com base em actos sancionados com condenação penal transitada em julgado, possam subsistir negócios jurídicos de cariz patrimonial lesivos da Autora, praticados pelo arguido, agora 1º Réu, que são sequentes e supõem a sua actuação criminosa – um crime de burla qualificada e outro de falsificação de documento (uso de documento falso) – e que beneficiaram os demais Réus em indiciado conluio.

Tal julgamento terá que observar o princípio do contraditório, devendo as partes ser previamente notificadas da possibilidade de tal julgamento, visando evitar que se profira decisão-supresa.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"O Tribunal está sujeito ao princípio do pedido segundo o qual – art. 3º, nº1, do Código de Processo Civil – não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes, sendo-lhe defeso, salvo casos de questões de conhecimento oficioso, pronunciar-se extra petitum, sob pena de ofender aquele princípio, incorrendo a decisão em nulidade.

Como enfatizou o douto Acórdão da Formação que admitiu revista excepcional, seria socialmente censurável se a conduta do 1º Réu – já sentenciada com pena de prisão pela prática de crimes sem os quais não lhe teria sido possível apropriar-se de lotes de terreno da Autora e proceder à sua subsequente alienação em aparente conluio (simulação negocial de contratos de compra e venda) com os filhos, ora 2º a 5º Réus e a sociedade 6ª Ré [de que ao tempo eram sócios-gerentes os demais réus pessoas singulares] –, pudesse não ser sancionada, sobretudo, estando em causa interesses muito sensíveis de “particular relevância social” – art. 672º, nº1, b) do Código de Processo Civil – dos associados da Autora que podem ver em risco o seu direito à habitação.

A ordem jurídica, impondo a todos actuação de boa fé e respeito pelos bons costumes, não pode tolerar violações dolosas, criminosas, de direitos de terceiros, que, pela sua repercussão chocam a comunidade, a cidadania e o sentido geral de justiça, transcendendo os meros ingresses individuais, particulares. Nesse caso está em causa a lesão de interesses que se situam num patamar supra partes.

Dispõe o art. 280º do Código Civil: “1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável. 2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”. [...]

Não podem os Tribunais ser alheios ao sentido de justiça dominante na sociedade e que as pessoas de bem acolhem intemporalmente. Assim, um negócio jurídico tendo por objecto imóveis de outrem, que o vendedor adquiriu por actuação criminosa, sancionada com sentença penal transitada em julgado, não pode ser considerado válido: é nulo por ser legalmente impossível, trata-se de negócio fora do comércio.

É contrário à lei um negócio jurídico de alienação de um bem de que se obteve o domínio e posse com base em actuação criminosa, decorrendo essa nulidade do art. 280º do Código Civil.

No caso, está provado, na sentença penal que condenou o 1º Réu, que os lotes de terreno a que se refere tal condenação pertencem à demandante “Associação de Proprietários e Moradores do AA, Zona Norte”, tendo a associação sido constituída em 30.4.1980, visando a regularização de um Bairro de Moradores de génese ilegal. O 1.° Réu foi presidente da autora e presidente da Comissão de Administração do Bairro HH. Por via da Escritura Pública de Divisão de Coisa Comum destacou, adjudicou e registou a seu favor os lotes …43, …44, …97 a …02, …07 a …14 e …38. No dia 27 de Junho de 2002 outorgou uma procuração aos 2.° e 3.° réus conferindo-lhes poderes necessários para vender ou prometer vender os bens dos quais se havia indevidamente apropriado.

Transitou em julgado a sentença penal que obrigou o arguido – aqui 1º Réu – a devolver/doar 10 lotes de terreno à Autora, sendo essa a condição imposta para a suspensão de pena de prisão de 4 anos e 10 meses, em que foi condenado.

O Réu, tendo no processo-crime pedido a prorrogação do prazo para diligenciar no sentido de “desfazer” os negócios de alienação, tacitamente [...] reconhece essa obrigação de restituição, não só para preencher a condição imposta para a suspensão da pena que lhe foi aplicada, mas também porque afirma que “sempre foi, e continua a ser, vontade do Arguido cumprir a decisão judicial que lhe foi aplicada” – como escreveu no art. 9º do referido requerimento.

Ante estes factos e ao muito mais que decorre das decisões do julgamento das instâncias penais, resulta, de forma clara, que a Autora foi lesada.

É certo que recorreu, para obter a reparação dessa lesão patrimonial, a acção de impugnação pauliana – art. 610º do Código Civil –; é certo, igualmente, que as instâncias cíveis consideraram que inexiste o requisito elementar que postula que o impugnante seja titular de um direito de crédito, julgamento que este Supremo Tribunal de Justiça, definitivamente, e com o devido respeito, não sufraga.

Vejamos:

A acção de impugnação pauliana consiste na faculdade concedida por lei ao credor, de atacar os actos do seu devedor que realizados, dolosamente, façam perigar a satisfação do seu crédito.

Ao contrário do regime legal que vigorava no Código de Seabra em que tal acção era considerada uma “acção rescisória” ou “anulatória”, já que o art. 1404º estipulava que:“Rescindido o acto ou contrato, revertem os bens ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”, a lei actual, diversamente, estabelece no art. 616º, nº1, do Código Civil:

Que julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

Os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição. [...]

Não se está, assim, perante uma declaração de nulidade com a inerente repristinação do “status quo ante” que permitiria a todos os credores do devedor executar o património deste – cfr. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.3.96, in CJ/STJ, 1996, I, 159 – “A impugnação pauliana reveste um carácter pessoal, já que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”. [...]

São requisitos da impugnação pauliana, enquanto meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações: a existência de um crédito; a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal, que cause ao seu credor, um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade); a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se o crédito for posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé - arts. 610.º a 612.º do Código Civil.

A consideração da inexistência do requisito direito de crédito – foi decisiva para o julgamento no despacho saneador, e para que o Tribunal de 1ª Instância não tivesse sequer apreciado os demais requisitos do art. 610º do Código Civil: desde logo, a decisão recorrida que sufragou o entendimento da 1ª Instância não pode manter-se, tendo sido prematuro o julgamento do processo no despacho saneador – art. 595º, nº1, b) do Código de Processo Civil.

Por tal motivo a decisão recorrida será anulada, e com ela a decisão da 1ª Instância, com vista à ampliação da matéria de facto – art. 682º, nº3, do Código de Processo Civil – alegada e integrante da causa de pedir invocada na acção.

Sempre se dirá que o processo documenta a existência de negócios celebrados pelo 1º Réu – escrituras públicas de contratos de compra e venda – e outros actos praticados pelo 1º Réu sem os quais não seria possível a lesão patrimonial da Autora, negócios que, ademais constam dos factos provados no processo-crime que evidenciam ostensiva contrariedade à ordem pública e são ofensivos dos bons costumes, sendo nulos, nos termos do art. 280º do Código Civil, como antes se referiu. [...]

Na nossa perspectiva, importará começar, assim, por prevenir que não se considera aqui como atentado aos bons costumes, latamente, todo comportamento ilícito, mas apenas, mais circunscritamente, aquele que atenta contra os fundamentos mais profundos da moral — e não, unicamente, a moral sexual, mas toda a que poderá afectar o humano comportamento; não a moral deste ou daquele, mas a moral pública, isto é, a que pode dizer-se comum à sociedade em que se insere.

Num sistema jurídico laico, será directamente o critério sociológico que nos ajudará a precisar esta moral pública — reservando-se ao critério religioso, numa sociedade que não prescinde da religião, a magistratura de influência que consegue moldar mais ou menos marcadamente áreas importantes do critério sociológico, ou desempenhar, ao menos, um papel moderador.

A fórmula do critério sociológico definidora dos bons costumes que nos parece mais feliz é a adoptada pelo Supremo Tribunal alemão: “o sentido do decoro ou da dignidade de todas as pessoas que pensam com equidade e justiça”. [...]

Uma vez que este Tribunal considera estar provado o requisito da impugnação pauliana, que as instâncias consideraram não existir – o direito de crédito da Autora – a anulação do julgamento visa a ampliação da matéria de facto, em ordem à apreciação do pedido formulado, em função da causa de pedir, ou seja, dos factos que a Recorrente alega no contexto da impugnação pauliana.

A provarem-se os factos alegados pela Autora, o Tribunal poderá considerar, oficiosamente, a nulidade dos negócios jurídicos invocados como causa de pedir, com fundamento na simulação absoluta, se provados os pertinentes requisitos, como os poderá considerar nulos, nos termos do art. 280º do Código Civil, porquanto a ordem jurídica não tolera que, com base em actos sancionados com condenação penal transitada em julgado, possam subsistir negócios jurídicos de cariz patrimonial lesivos da Autora, praticados pelo arguido, agora 1º Réu, que são sequentes e supõem a sua actuação criminosa – um crime de burla qualificada e outro de falsificação de documento (uso de documento falso) – e que beneficiaram os demais Réus.

Tal julgamento terá que observar o princípio do contraditório, devendo as partes serem previamente notificadas da possibilidade de julgamento oficioso, visando evitar que se profira decisão-supresa.

A provarem factos que demonstrem que os negócios jurídicos celebrados com base na actuação 1º Réu, são simulados, ou ofensivos dos bons costumes ou contrários à lei, estão eles feridos de nulidade, que deverá ser decretada, oficiosamente, pelo Tribunal. [...]"

III. a) O acórdão debruça-se sobre um caso interessante: uma autora intentou uma acção condenatória, que qualificou como acção de impugnação pauliana de uma alienação; as instâncias consideraram a acção improcedente; o STJ entendeu que o contrato que a autora quer impugnar pode ser nulo por simulação ou por ofensa dos bons costumes; nesta base, o STJ anulou o acórdão recorrido e decretou a ampliação da matéria de facto.

O caso é ilustrativo das consequências do conhecimento oficioso de certas matérias. No caso em análise, o autor pediu a impugnação pauliana do contrato, mas pode vir a obter a declaração de nulidade do contrato. 

b) O que o caso tem de relevante é que não parece que se possa dizer que o STJ tenha simplesmente qualificado de forma diferente os factos alegados pela autora. Se assim tivesse sucedido, nada haveria a salientar no acórdão do STJ.

A verdade é que a autora não invocou nem os fundamentos da simulação, nem da contrariedade aos bons costumes do contrato celebrado pelo réu. Sendo assim, o que parece verificar-se é que o STJ construiu uma convolação oficiosa do objecto do processo: inicialmente, a autora pediu a impugnação pauliana de um contrato de alienação de uns terrenos; agora, o STJ admite que, em função dos factos que venham a ser provados nas instâncias, esse contrato pode vir a ser declarado nulo.

É nisto que reside o interesse do acórdão. Até agora apenas se considerou admissível o conhecimento oficioso da nulidade; o acórdão contém algo de inovatório nesta matéria, admitindo que esse conhecimento oficioso pode implicar uma convolação oficiosa do objecto do processo e que, por isso, o autor pode vir a obter coisa diferente do que pediu. Quer dizer:  o STJ aceita que, com base no conhecimento oficioso da nulidade, a autora pode vir a obter uma decisão de procedência de algo que não pediu. 

Segundo se percebe, o STJ admite que, em vez da improcedência da impugnação pauliana, venha a ser decretada a nulidade do contrato. Isto é: em vez de uma decisão de improcedência do pedido de impugnação pauliana formulado pela autora, o STJ aceita que seja declarada a nulidade do contrato a favor dessa mesma autora.

Fica em aberto a questão de saber se o STJ admitiria ainda algo de ainda mais "radical": a declaração de  nulidade do contrato, apesar de a impugnação pauliana estar em condições de ser julgada procedente.  

c) Não é este o momento adequado para uma análise completa das implicações da convolação oficiosa do objecto do processo. Em todo o caso, importa ter presente que esta convolação permite completar o que até agora sempre se deu por adquirido. Efectivamente, sempre se entendeu que o conhecimento oficioso da nulidade pode obstar à procedência do pedido formulado pelo autor, ou seja, sempre se reconheceu uma função "impeditiva" realizada por esse conhecimento oficioso. O que a referida convolação mostra é que, além desta função "impeditiva", o conhecimento ex officio da nulidade também pode cumprir uma função "constitutiva", atribuindo ao autor algo de diferente do que ele pediu inicialmente. 

Portanto, em vez de se entender (como até agora tem acontecido) que o conhecimento oficioso só pode jogar contra o autor (e a favor do réu), passa também a entender-se que esse conhecimento pode jogar a favor do autor (e contra o réu). Dito de outra forma: a nulidade pode cumprir em juízo uma função distinta da de excepção peremptória (que é, como se sabe, a de determinar a improcedência da causa: cf. art. 576.º, n.º 1, CPC); essa nulidade também pode constituir fundamento de procedência da causa.

d) Em suma: um acórdão muito interessante sobre uma questão que merece ser aprofundada pela doutrina e para a qual é importante que a jurisprudência esteja sensibilizada.

MTS