Promitente.comprador; direito de retenção
consumidor
1. O sumário de STJ 24/5/2016 (3374/07.9TBGMR-C.G2.S1) é o seguinte:
I - Os acórdãos de uniformização de jurisprudência (AUJ), apesar de não terem força obrigatória geral, criam um precedente qualificado de carácter persuasivo, a desconsiderar apenas com fundamento em fortes razões ou especiais circunstâncias que não tenham sido suficientemente ponderadas.
II - O AUJ n.º 4/2014, de 20-03-2014, não incluiu no segmento uniformizador o conceito de consumidor.
III - O conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significo comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito estrito adoptado pelo ordenamento jurídico português.
IV - Tendo-se provado, no caso dos autos, (i) que os recorridos, promitentes-compradores, são pessoas singulares que adquiriram a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; (ii) que o arrendamento para habitação celebrado foi um acto isolado (não se provaram arrendamentos de outros imóveis seus); (iii) que não exercem com carácter profissional actividade económica lucrativa; e (iv) que ao prometerem comprar a fracção à sociedade insolvente não a destinaram a uma actividade profissional, nem agiram no âmbito de uma actividade dessa natureza, é de concluir que são consumidores, na acepção que o AUJ teve em vista e adoptou ao interpretar o disposto no art. 755.º, n.º1, al. f), do CC.
V - Em consequência, estando verificados os outros requisitos do direito de retenção e uma vez que são consumidores, deve o crédito dos recorridos ser graduado antes do crédito da recorrente, credora hipotecária, confirmando-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamentos parcialmente diversos.
2: Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Importa sublinhar, em primeiro lugar, que o conceito de consumidor não foi incluído no segmento uniformizador do AUJ nº 4/2014; adianta-se, todavia, na nota de rodapé nº 10 do aresto que “...o promitente comprador é, in casu, um consumidor no sentido de ser um utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”. Este entendimento expressa a noção de consumidor em sentido estrito, que de acordo com a grande maioria, se não a totalidade da doutrina, é a adoptada no nosso ordenamento jurídico. Tal o caso, por exemplo, de Calvão da Silva, para quem consumidor é a “pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico...mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa [Vendas de Bens de Consumo, Comentário, 3ª edição, Almedina, pág. 44.], e de Carlos Ferreira de Almeida, que a dado passo conclui: “... parece, em princípio, mais ajustado que, quando se adopte um conceito genérico e supletivo de consumidor, ele se contenha em limites restritos, relacionados apenas com o uso pessoal ou familiar de bens fornecidos (ou disponíveis para fornecer) por quem exerça uma actividade profissional” [ Direito do Consumo, Almedina, 2005, pág. 50.]. É assim que a Lei nº 24/96 (Lei de Defesa dos Consumidores) define no artigo 2º, nº 1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” E o Dec-Lei n.º 24/2014, de 14.2, que transpôs a Directiva nº 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25/10/11, relativa aos direitos dos consumidores, define consumidor, para efeitos desta norma, como “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
Em segundo lugar cabe pôr em relevo que a inclusão do consumidor no texto do AUJ 4/2014 e, mais precisamente, no respectivo segmento uniformizador, assim restringindo a amplitude e o alcance do direito de retenção a que alude o artº 755º, nº 1, f), do CC apoiou-se claramente, como se infere da respectiva da fundamentação, no ensinamento do Prof. Pestana de Vasconcelos, que nos Cadernos de Direito Privado, nº 33, pág. 3 e segs, referindo-se à definição de consumidor, escreve na nota nº 25 (pág. 8), que a resultante dos artigos 10º, nº 1 e 11º, nº s 1 e 2 do Anteprojeto do Código do Consumidor, segundo a qual é “consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional”, se mostra“ponderada e equilibrada”, devendo “orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito, dando inteiro cumprimento, no caso concreto, à ratio da disposição, o que vale dizer, só tutelando quem efectivamente é carente de tutela”. Na sua obra Direito das Garantias (Almedina, 2015, 2ª edição – pág. 376) este mesmo Autor ensina que o artº 755º, nº 1, f), do CC, é “…materialmente uma norma de tutela do consumidor” e que “…embora a letra da lei não faça essa precisão, o recurso aos outros elementos hermenêuticos permite reconstruir a ratio – que é, claro, o aspecto decisivo – e restringir, nessa medida, o alcance da norma: o direito de retenção do art. 755.º, n.º 1, al. f) só beneficia o consumidor. Nos outros casos, ou seja, quando o promitente-adquirente não seja um consumidor, não há qualquer tutela particular”.
Em terceiro lugar interessa mencionar na jurisprudência, entre outros, o acórdão do STJ de 29/5/14, já acima citado, que, depois de analisar a fundamentação do AUJ 4/2014 e os textos legais mais relevantes no domínio do direito do consumo, concluiu “... que do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis”; e deve ainda mencionar-se, por último, o acórdão de 16/2/16 (Procº 135/12.7TBMSF.G1.S1) onde, feita uma análise resumida da ainda escassa jurisprudência deste tribunal sobre o assunto, acabou por se concluir “que a noção de consumidor até agora adoptada neste Supremo Tribunal acentua a qualidade de sujeito final na transacção do bem, excluindo apenas os comerciantes e aqueles que destinam o imóvel a revenda para obtenção de lucro”, aderindo-se a este entendimento.
À luz do exposto, e tendo em consideração que no caso dos autos os recorridos, promitentes compradores, são pessoas singulares que adquiriram a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; que o arrendamento para habitação celebrado foi, tudo o indica, um acto isolado (pois não se provou que tenham dado de arrendamento e aufiram rendas de outros imóveis de que sejam titulares); que não exercem com carácter profissional actividade económica lucrativa; e que ao prometer comprar a fracção à sociedade declarada insolvente não a destinaram a uma actividade profissional nem, além disso, agiram no âmbito duma actividade dessa natureza, concluímos que são consumidores, na acepção que o AUJ 4/2014 teve em vista e, aparentemente, adoptou ao interpretar o artº 755º, nº 1, f), do CC nos termos em que o fez. E sendo inquestionável que na base da doutrina nele adoptada esteve o relevo e significado prático que se quis conferir ao princípio da protecção do consumidor como parte mais débil e desprotegida nos contratos promessa identificados naquele preceito legal, não pode deixar de considerar-se, olhando com atenção para a situação concreta em causa no presente processo, que não foi a circunstância de os recorridos terem arrendado a fracção em data anterior à insolvência da promitente vendedora que, reequilibrando a relação contratual com ela estabelecida, tornou dispensável (desnecessária) a garantia do direito de retenção que as instâncias decidiram reconhecer-lhes."
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