"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/11/2016

Jurisprudência (483)


Revisão de sentença estrangeira; ordem pública
partilha de bens

1. O sumário de RL 22/6/2016 (154/16.4YRLSB-2) é o seguinte: 

I. A ordem pública internacional do Estado português não se opõe à revisão e confirmação de uma sentença de um tribunal suíço que decretou o divórcio entre dois portugueses e simultaneamente homologou um acordo em que as partes estipularam atribuir à ex-cônjuge mulher a totalidade de um imóvel localizado em Portugal e atribuir ao ex-cônjuge marido a totalidade de um imóvel localizado na Suíça, obrigando-se a ex-cônjuge mulher a cooperar no sentido de se formalizar em Portugal a transmissão a favor do ex-marido da sua quota parte no imóvel localizado em Portugal.
 
II. O acordo referido em I tem natureza meramente obrigacional, pelo que a sentença que o homologou não ofende a exclusividade da competência dos tribunais portugueses em matéria de direitos reais sobre imóveis localizados em Portugal.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso destes autos, está em causa uma sentença que decretou o divórcio e homologou o acordo simultaneamente celebrado entre os cônjuges quanto à partilha dos seus bens, incluindo bens localizados na Suíça, país do foro, e em Portugal.

A requerida manifesta-se quanto à revisão e reconhecimento da sentença no que concerne à partilha dos bens, na medida em que, segundo alega, o ordenamento jurídico português procede à destrinça, atribuindo-lhes processamentos distintos, entre o divórcio, dissolução do casamento, e a divisão do património comum do casal, a que se procede em processo de inventário.

Ora, tal afirmação não corresponde à realidade.

Por um lado, nada se encontra na nossa lei fundamental, que encerra os princípios básicos por que se rege o nosso ordenamento jurídico, que determine a obrigatória destrinça processual entre a separação de pessoas ou dissolução do matrimónio e a divisão do respeito património.

Por outro lado, a lei ordinária permite que na ação de divórcio as partes acordem quanto aos termos da partilha do património comum do casal, podendo mesmo a partilha ser efetuada no âmbito do processo de divórcio, como ocorre no divórcio por mútuo consentimento realizado na conservatória do registo civil (art.º 1175.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10 e artigos 272.º-A a 272.º-C do Código do Registo Civil, introduzidos pelo Dec.-Lei n.º 247-B/2008, de 30.12).

Não existe, assim, qualquer obstáculo, ao nível da ordem pública internacional do Estado português, para a confirmação da aludida sentença proferida pelo tribunal suíço.

Resta averiguar se haverá obstáculo à revisão da sentença, à luz da alínea c) do art.º 980.º do CPC, isto é, se a mesma versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

De facto, os tribunais portugueses são exclusivamente competentes “em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português” (alínea a) do art.º 63.º do CPC).

Ora, a sentença revidenda homologou um acordo entre os ex-cônjuges que versava o destino a dar a um imóvel localizado em Portugal. Porém, tal sentença não visou produzir efeitos no ordenamento jurídico, quanto ao estatuto real de tal imóvel. Apenas homologou um acordo produtor de efeitos obrigacionais, ou seja, um negócio jurídico vinculativo apenas dos respetivos outorgantes, mediante o qual ambos se obrigaram a diligenciar pela prática dos atos tendentes a produzirem, eles sim, a desejada modificação da situação jurídica do imóvel, quanto à titularidade do direito de propriedade, que deverá, segundo o acordo, concentrar-se na sua plenitude na esfera jurídica da requerida.

Não tendo, pois, o tribunal suíço proferido decisão em matéria de direitos reais quanto ao imóvel localizado em Portugal, nada obsta à revisão e confirmação da sentença, para produzir os respetivos efeitos jurídicos em Portugal."

[MTS]