Anulação do julgamento;
plenitude da assistência do juiz
I. O sumário de RG 1975/2016 (1454/03.9TBMDL.G1) é o seguinte:
1- No caso de anulação parcial do julgamento, por obscuridade ou insuficiência de respostas à anterior Base Instrutória (actuais temas de prova), e/ou para ampliação da mesma Base Instrutória, o novo julgamento constitui continuação do primeiro (que ficou incompleto ou inacabado).
2- De acordo com princípio da plena assistência do juiz, a conclusão do julgamento antes iniciado deverá ser efectuado pelo Sr. Juiz que o iniciou, ainda que, entretanto, tenha sido transferido ou promovido.
3- Só assim não será se esse Sr. Juiz estiver totalmente impossibilitado de concluir o julgamento em apreço, caso em que o Sr. Juiz titular justificará essa impossibilidade e concluirá ele o julgamento.
II. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"De acordo com o disposto no art. 109º, n.º 2 do actual CPC (anterior 115º, n.º 2), não estamos perante um conflito de competência, porquanto ambos os Senhores Juízes exercem funções em tribunais da mesma ordem jurisdicional e porque o que está em causa não é a competência dum ou doutro tribunal, não se questionando ser o Tribunal Judicial de Mirandela - Instância Local, Secção de Competência Genérica, o tribunal competente, mas antes competência dos próprios Senhores Juízes, que se declararam ambos incompetentes para presidir ao julgamento ordenado pelo Tribunal da Relação para ampliação da matéria de facto, ao abrigo do estatuído no art. 712º, n.º 4 do CPC (na redacção anterior ao DL n.º 303/2007 de 24.08).
Este julgamento [...] destina-se a responder aos itens 9º e 10º [...] e ainda, por ampliação, aos pontos de facto alegados nos itens 126 a 133 da contestação à oposição, matéria esta que deverá ser aditada à Base Instrutória (actuais «temas de prova»), sem prejuízo, ainda, do aditamento aos factos assentes [...].
Nestes casos, tem sido jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores (à luz do anterior Código de Processo Civil), a de que, «mantendo-se os factos dados como provados no primeiro julgamento e apenas havendo que produzir prova sobre os novos quesitos, a fim de a eles o tribunal responder uma vez encerrado o segundo julgamento, não há ofensa do princípio da assistência dos juízes, ínsito no art. 654º do CPC e muito menos do princípio do juiz natural (pois que o juiz natural é o titular do processo), se o novo julgamento for presidido pelo actual titular do processo e não pelo juiz que presidiu ao primeiro julgamento». Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 30.10.2008, relator Sr. Cons. SALVADOR da COSTA, Despacho do Sr. Juiz Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28.03.2011, Dr. ANTÓNIO RIBEIRO, e J. LEBRE de FREITAS, M. MACHADO e RUI PINTO, “Código de Processo Civil Anotado”, II volume, Coimbra Editora, pág. 634.
Argumenta-se, no essencial, neste âmbito, que a resposta aos novos quesitos (resultantes da anulação parcial das respostas e do eventual aditamento de novos quesitos – tendo por referência a antiga Base Instrutória ou Questionário), ocorre em novo julgamento, baseado em nova produção de prova, sendo certo que o princípio da plenitude da assistência dos juízes se reporta às situações de continuação de julgamento, o que não acontece nos casos em que o julgamento é anulado.
Existiria, portanto, neste modo de ver, uma plena autonomia ou separação entre o primeiro e o segundo julgamento, que não constituiria continuação do primeiro, em razão do que nada imporia que o segundo julgamento fosse efectuado pelo juiz que tinha presidido ao primeiro.
Assim, em consonância com este princípio, no caso de «anulação total ou parcial de um julgamento presidido por juiz que entretanto foi transferido, a realização do novo julgamento por outro juiz não afecta o princípio da plenitude da assistência dos juízes a que se reporta o artigo 654º do Código de Processo Civil.»
Com todo o respeito pela posição antes expressa, não comungamos, no entanto, da mesma perspectiva, antes se nos impondo conclusão diversa.
Vejamos.
Desde logo, com o devido respeito, cremos que apenas com esforço é possível concluir-se que o segundo julgamento (destinado a ampliar a matéria de facto e a responder aos quesitos ou pontos de facto anulados pelo Tribunal Superior) é um novo julgamento, completamente autónomo, diverso e estanque em relação ao primeiro.
Ficcionar tal dualidade – de julgamentos e consequentes decisões – na mesma causa e instância, não parece harmonizar-se razoavelmente com a essência do problema inerente (realizar a justiça do caso) nem com os princípios estruturantes do processo.
Ao invés, cremos que o segundo julgamento será sempre uma continuação do mesmo julgamento (o primeiro) versando sobre o mesmo caso litigioso da vida constituído em tema de prova e de decisão, julgamento que ficou inacabado ou incompleto por via da anulação de que foi alvo e, por tal vicissitude, tem de ser […] retomado, não obstante a demais matéria de facto, não atingida pela anulação, se manter, por princípio, intocada.
Por outro lado, o segundo julgamento não é, em absoluto, estanque relativamente ao primeiro, na estrita medida em que, como resultava do citado art. 712º, n.º 4 do CPC (na anterior versão) e se mantém hoje no art. 662º, n.º 3 al. c)- do novo CPC, sempre poderá ser necessária a apreciação da matéria de facto antes julgada, para evitar contradições.
Esta possibilidade, que é real (pois que, de outro modo, não seria expressamente prevista pelo legislador), desde logo nos inculca a ideia de que estamos em presença da continuação do primeiro julgamento e, sobretudo, que se apresenta como vantajoso, de um ponto de vista de coerência e de adequação do sistema, que o julgamento seja efectuado, preferencialmente, pelo mesmo juiz , salvo nos casos em que tal se mostre inviável por impossibilidade do juiz que presidiu ao primeiro julgamento.
Se assim se nos afigura em termos de princípio geral, estamos em crer, com o devido respeito por opinião oposta, que esta nossa posição colhe apoio, desde logo, no art. 605º, n.º 3 do actual CPC, ao ali se consignar que o «o juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento.» [...]
Digamos, portanto, que, por princípio, e salvo caso de impossibilidade para o exercício do cargo ou grave dificuldade (que torne preferível a repetição integral dos actos praticados no anterior julgamento), a tarefa do julgamento da matéria de facto e a própria elaboração da sentença (cfr. n.º 4 do art. 605º) deverão estar concentrados num único juiz, qual seja o juiz que iniciou o julgamento com produção (perante si) de meios de prova, deste modo se ganhando inquestionavelmente mais na eficácia, no mérito e credibilidade da decisão do que se perde em eventuais constrangimentos de ordem pessoal e até funcional. Vide, neste sentido, ainda no domínio do anterior CPC, despacho da actual Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, Drª RAQUEL REGO, de 11.06.2012, proferido no processo 54/12.7YGMR, disponível no sítio www.trg.pt (conflitos de competência).
Por outro lado, ainda, e não obstante o legislador não tenha aproveitado o ensejo da recentíssima reforma do Código de Processo Civil para esclarecer, de forma clara e definitiva, a questão ora em apreço , julgamos que é, ainda, o aludido princípio que subjaz do preceituado no art. 662º, als. b) e d), ao ali se apontar para conceitos como «se for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz…» ou «se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.»
Acresce, ainda, como sinal de clara consagração deste princípio (que será, portanto, transversal ao sistema e não confinado às instâncias superiores), que o próprio artigo 218º do novo CPC, ao consignar que quando o processo volte à Relação ou ao Supremo, seja por via de interposição de apelação de nova sentença proferida em 1ª instância após revogação da primeira pela Relação, nos termos do art. 662º, n.º 2 al. c), seja em consequência da revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, nos termos dos arts. 682º, n.º 3 e 683º, dispôs que não há lugar a nova distribuição, quer na Relação, quer no Supremo, mantendo-se, sempre que possível, o mesmo relator da 1ª decisão.
Neste sentido, referem J. LEBRE de FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado ”, 1º volume, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 408 [já no âmbito do novo Código de Processo Civil], em anotação ao citado art. 218º que «esta norma é manifestação do mesmo princípio que subjaz ao disposto no art. 605º (princípio da plenitude assistência do juiz), tendo na sua base a ideia de que é vantajoso para a coerência e adequação da decisão final do processo concentrar a apreciação da causa, em cada instância, no mesmo julgador (ou julgadores).» [...]
Por fim, quanto ao argumento, invocado pelo anterior Juiz, de a posição do seu sucessor pôr em causa o princípio do juiz natural (ou legal), refira-se, apenas, que, sem se entrar agora pela discussão do que ele significa e onde ele mais releva (no processo penal) – que não é certamente a “titularidade” actual do processo –, sempre se nos […] afigura ser a opção de o julgamento anulado dever continuar concentrado no primeiro que melhor respeita o espírito e objectivos do mesmo quando referido ao processo civil.
O que, sintetizando, e tendo em conta que nenhum obstáculo foi invocado que tal inviabilize, importa que, no caso dos autos, se imponha a procedência da apelação interposta pelos Recorrentes, com a consequente afirmação da competência do Exm.º Sr. Juiz que iniciou o julgamento [...]".
[MTS]
Se assim se nos afigura em termos de princípio geral, estamos em crer, com o devido respeito por opinião oposta, que esta nossa posição colhe apoio, desde logo, no art. 605º, n.º 3 do actual CPC, ao ali se consignar que o «o juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento.» [...]
Digamos, portanto, que, por princípio, e salvo caso de impossibilidade para o exercício do cargo ou grave dificuldade (que torne preferível a repetição integral dos actos praticados no anterior julgamento), a tarefa do julgamento da matéria de facto e a própria elaboração da sentença (cfr. n.º 4 do art. 605º) deverão estar concentrados num único juiz, qual seja o juiz que iniciou o julgamento com produção (perante si) de meios de prova, deste modo se ganhando inquestionavelmente mais na eficácia, no mérito e credibilidade da decisão do que se perde em eventuais constrangimentos de ordem pessoal e até funcional. Vide, neste sentido, ainda no domínio do anterior CPC, despacho da actual Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, Drª RAQUEL REGO, de 11.06.2012, proferido no processo 54/12.7YGMR, disponível no sítio www.trg.pt (conflitos de competência).
Por outro lado, ainda, e não obstante o legislador não tenha aproveitado o ensejo da recentíssima reforma do Código de Processo Civil para esclarecer, de forma clara e definitiva, a questão ora em apreço , julgamos que é, ainda, o aludido princípio que subjaz do preceituado no art. 662º, als. b) e d), ao ali se apontar para conceitos como «se for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz…» ou «se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.»
Acresce, ainda, como sinal de clara consagração deste princípio (que será, portanto, transversal ao sistema e não confinado às instâncias superiores), que o próprio artigo 218º do novo CPC, ao consignar que quando o processo volte à Relação ou ao Supremo, seja por via de interposição de apelação de nova sentença proferida em 1ª instância após revogação da primeira pela Relação, nos termos do art. 662º, n.º 2 al. c), seja em consequência da revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, nos termos dos arts. 682º, n.º 3 e 683º, dispôs que não há lugar a nova distribuição, quer na Relação, quer no Supremo, mantendo-se, sempre que possível, o mesmo relator da 1ª decisão.
Neste sentido, referem J. LEBRE de FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado ”, 1º volume, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 408 [já no âmbito do novo Código de Processo Civil], em anotação ao citado art. 218º que «esta norma é manifestação do mesmo princípio que subjaz ao disposto no art. 605º (princípio da plenitude assistência do juiz), tendo na sua base a ideia de que é vantajoso para a coerência e adequação da decisão final do processo concentrar a apreciação da causa, em cada instância, no mesmo julgador (ou julgadores).» [...]
Por fim, quanto ao argumento, invocado pelo anterior Juiz, de a posição do seu sucessor pôr em causa o princípio do juiz natural (ou legal), refira-se, apenas, que, sem se entrar agora pela discussão do que ele significa e onde ele mais releva (no processo penal) – que não é certamente a “titularidade” actual do processo –, sempre se nos […] afigura ser a opção de o julgamento anulado dever continuar concentrado no primeiro que melhor respeita o espírito e objectivos do mesmo quando referido ao processo civil.
O que, sintetizando, e tendo em conta que nenhum obstáculo foi invocado que tal inviabilize, importa que, no caso dos autos, se imponha a procedência da apelação interposta pelos Recorrentes, com a consequente afirmação da competência do Exm.º Sr. Juiz que iniciou o julgamento [...]".
[MTS]