1. Os factos instrumentais (ou
probatórios) são os factos que permitem, através de uma presunção legal ou natural, inferir
um outro facto, nomeadamente um facto essencial.
Na petição inicial, o autor tem o ónus
de alegar o facto essencial e pode (mas não tem o ónus de) alegar o
correspondente facto instrumental. É o que pode ser extraído do disposto no
art. 5.º, n.º 1, CPC (quanto aos factos essenciais) e do estabelecido no art.
5.º, n.º 2, al. a), CPC (quanto aos factos instrumentais). Concretizando o
regime legal num exemplo simples: numa acção de indemnização decorrente de um
acidente de viação o autor tem o ónus de alegar a negligência do outro condutor
(traduzida, por exemplo, na condução em excesso de velocidade), mas não tem o
ónus de alegar que infere essa negligência de um rastro de travagem ou de
qualquer outro facto instrumental.
Nada impede, no entanto, que o autor
alegue na sua petição inicial o facto essencial e o correspondente facto
instrumental. A lei só estabelece que a não alegação de um facto instrumental
não preclude a sua aquisição posterior, não que as partes não possam alegar
factos instrumentais nos seus articulados.
Na hipótese de serem alegados, em
simultâneo, o facto essencial e o correspondente facto instrumental , o regime
legal impõe que se considerem dois aspectos:
-- Um deles é a inexistência de qualquer
preclusão resultante da não impugnação do facto instrumental (art. 574.º, n.º 2
2.ª parte, CPC); ainda que o facto instrumental não seja impugnado pela
contraparte (e, por isso, deva ser considerado admitido por acordo), isso não
impede que venha a ficar provado que esse facto não é verdadeiro; sendo assim,
ainda que o réu não impugne a extensão do rastro de travagem alegado pelo autor,
nada obsta a que, durante a instrução da causa, se prove que o rastro de
travagem tem uma menor extensão que a alegada pelo autor, que o rastro
existente não é do veículo sinistrado ou até que não existe nenhum rastro de
travagem;
-- Um outro aspecto legal é a possibilidade
do conhecimento pelo juiz de factos instrumentais que resultem da instrução da
causa (art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC); isto significa, sem dúvida, que nada
impede que a velocidade do automóvel possa ser inferida de outro facto que não
o rastro de travagem; se do disposto naquele preceito é possível retirar qualquer
uma outra conclusão, isso é o que será discutido de seguida.
2. Supondo que o autor invoca na
petição inicial o facto essencial (por exemplo, negligência do condutor por
condução em excesso de velocidade) e o correspondente facto instrumental (por
exemplo, rastro de travagem), o réu possui três hipóteses de reacção:
-- Primeira hipótese: o réu impugna
apenas o facto essencial; nesta situação, há que entender que o facto
instrumental também se encontra impugnado;
-- Segunda hipótese: o réu impugna
apenas o facto instrumental; neste caso, impõe-se considerar que se encontra impugnada
a relação entre o facto instrumental e o facto essencial, ou seja, a inferência
do facto essencial do facto instrumental;
-- Terceira hipótese: o réu não impugna
nem o facto essencial, nem o facto instrumental; a solução desta situação é a
mais problemática, dado que a mesma depende da conjugação de dois elementos
legais: a não impugnação do facto essencial (e, portanto, a sua admissão por
acordo: art. 574.º, n.º 2 1.ª parte, CPC) e a não preclusão da prova da não
veracidade do facto instrumental (art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC); no fundo,
trata-se de saber como se conjugam a primeira e a segunda partes do n.º 2 do
art. 574.º CPC e qual a relevância que o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a),
CPC assume para a resolução do problema.
Procurando explicar esta relevância,
pode dizer-se o seguinte:
-- Se o disposto no art. 5.º, n.º 2,
al. a), CPC – que, recorde-se, permite a aquisição de factos instrumentais
durante a instrução da causa -- não tem nenhuma relevância para a conjugação da
primeira e segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC, então pode concluir-se
que apenas factos instrumentais alegados por uma das partes e que não tenham
sido impugnados pela contraparte podem vir a ser dados como não provados;
-- Pelo contrário, se o estabelecido no
art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC releva para a interpretação do art. 574.º, n.º 2,
CPC, então há que concluir que, durante a instrução da causa, pode ser
adquirida não só a prova da não veracidade de um facto instrumental não
impugnado, mas também a prova da veracidade de um facto instrumental
incompatível com a admissão por acordo de um facto essencial não impugnado.
3. A conjugação da não impugnação do
facto essencial com a não preclusão da prova da não veracidade do facto
instrumental também não impugnado pode ser entendida no sentido de que aquela não
impugnação preclude esta prova, ou seja, de que a não impugnação do facto
essencial -- e, portanto, a sua admissão por acordo -- preclude a prova da não
veracidade do facto instrumental. Nesta interpretação, o disposto no art.
574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC só é aplicável se o correspondente facto essencial
tiver sido impugnado; se assim não suceder, a prova da não veracidade do facto
instrumental encontra-se precludida, pelo que nada pode afastar a admissão por
acordo do facto essencial.
É discutível que esta seja a melhor forma
de conjugar aqueles elementos legais. O principal argumento que pode ser
aduzido contra aquela solução é o de que a preclusão da prova da não veracidade
do facto instrumental quando o correspondente facto essencial não tenha sido
impugnado conduz à decisão do processo segundo uma verdade formal ou, até
talvez melhor, a uma decisão contra
veritatem. Foi adquirido no processo que o facto instrumental não é
verdadeiro e que, portanto, este facto não pode servir de base à inferência do
facto essencial; ainda assim, mantém-se adquirido para o processo o
correspondente facto essencial, mesmo na hipótese de não ter sido provado
nenhum outro facto instrumental do qual se possa inferir a sua verdade.
Um outro argumento contra aquela
solução é retirado da possibilidade da aquisição de factos instrumentais
durante a instrução incompatíveis com o facto essencial (art. 5.º, n.º 2, al.
a), CPC). Este preceito permite que o juiz considere os factos instrumentais
que resultem da instrução da causa: esses factos instrumentais são certamente
os factos que provam algum dos factos essenciais alegados pelas partes; mas,
segundo parece, nada impede que o juiz também possa considerar factos
instrumentais que provem a não veracidade de um facto essencial invocado pela
parte e não impugnado pela contraparte.
4. Do exposto decorre que a primeira e a
segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC devem ser conjugadas no sentido de
que a prova da não veracidade do facto instrumental é admissível tanto quando o
correspondente facto essencial tenha sido impugnado, como quando este facto não
tenha sido impugnado; dito de outro modo: o art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC é
aplicável qualquer que tenha sido a posição da parte quanto ao facto essencial
alegado pela outra parte, isto é, mesmo que, nos termos no art. 574.º, n.º 2 1.ª
parte, CPC, esse facto essencial deva considerar-se admitido por acordo por
falta de impugnação.
Além disso, do disposto no art. 5.º,
n.º 2, al. a), CPC resulta a possibilidade da aquisição de factos instrumentais
contrários a factos essenciais alegados pelas partes. Não há nenhum motivo para
se entender que os factos instrumentais que podem ser adquiridos durante a
instrução da causa só possam ser aqueles que confirmem factos essenciais
alegados pelas partes; também estão sujeitos à mesma regra de aquisição factos que
contrariam esses factos essenciais.
Assim, em função da prova realizada, o
juiz pode considerar, por exemplo:
-- A prova do rastro de travagem, apesar
de este não ter sido alegado pelo autor; em concreto, o juiz pode dar como
provada a velocidade excessiva do veículo alegada por aquela parte com base
neste facto adquirido durante a instrução da causa;
-- A prova de uma deficiência mecânica
no veículo, apesar de este facto não ter sido alegado pelo réu; com base nesta
prova, o juiz pode dar como não provada a negligência do condutor, mesmo no caso
de o réu não ter impugnado este facto essencial.
Se assim é, pode então concluir-se que
os factos instrumentais adquiridos durante a instrução da causa permitem tanto
uma prova positiva ou confirmatória de um facto essencial alegado, como uma
prova negativa ou infirmatória de um facto essencial invocado e não impugnado
(e, portanto, admitido por acordo). O actual processo civil português permite
que se considere não provado um facto essencial não impugnado e, portanto,
admitido por acordo: isso é o que sucede quando, apesar de o facto essencial
não ter sido impugnado, for dado como provado um facto instrumental
incompatível com aquele facto essencial.
5. Até agora considerou-se apenas o
caso em que o réu não impugna nem o facto essencial, nem o facto instrumental
alegado pelo autor. Os resultados adquiridos também valem, no entanto, para duas
outras hipóteses:
– Aquela em que o autor alegou o facto
essencial e o facto instrumental, mas o réu impugnou apenas este facto (situação
correspondente à segunda hipótese referida no n.º 2); se for provado um facto
instrumental incompatível com o facto essencial não impugnado, há que
considerar este facto como não provado;
– Aquela em que o autor só alegou o facto
essencial e em que o réu não o impugnou; também nesta situação, a não
impugnação do facto essencial e a correspondente admissão por acordo não impedem
que este venha a ser considerado não provado se for demonstrado um facto
instrumental incompatível com a sua verdade.
MTS