"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/01/2015

A função dos factos instrumentais e a possibilidade de considerar não provado um facto essencial admitido por acordo



 
1. Os factos instrumentais (ou probatórios) são os factos que permitem, através de uma presunção legal ou natural, inferir um outro facto, nomeadamente um facto essencial.

Na petição inicial, o autor tem o ónus de alegar o facto essencial e pode (mas não tem o ónus de) alegar o correspondente facto instrumental. É o que pode ser extraído do disposto no art. 5.º, n.º 1, CPC (quanto aos factos essenciais) e do estabelecido no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC (quanto aos factos instrumentais). Concretizando o regime legal num exemplo simples: numa acção de indemnização decorrente de um acidente de viação o autor tem o ónus de alegar a negligência do outro condutor (traduzida, por exemplo, na condução em excesso de velocidade), mas não tem o ónus de alegar que infere essa negligência de um rastro de travagem ou de qualquer outro facto instrumental.

Nada impede, no entanto, que o autor alegue na sua petição inicial o facto essencial e o correspondente facto instrumental. A lei só estabelece que a não alegação de um facto instrumental não preclude a sua aquisição posterior, não que as partes não possam alegar factos instrumentais nos seus articulados.

Na hipótese de serem alegados, em simultâneo, o facto essencial e o correspondente facto instrumental , o regime legal impõe que se considerem dois aspectos:

-- Um deles é a inexistência de qualquer preclusão resultante da não impugnação do facto instrumental (art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC); ainda que o facto instrumental não seja impugnado pela contraparte (e, por isso, deva ser considerado admitido por acordo), isso não impede que venha a ficar provado que esse facto não é verdadeiro; sendo assim, ainda que o réu não impugne a extensão do rastro de travagem alegado pelo autor, nada obsta a que, durante a instrução da causa, se prove que o rastro de travagem tem uma menor extensão que a alegada pelo autor, que o rastro existente não é do veículo sinistrado ou até que não existe nenhum rastro de travagem;

-- Um outro aspecto legal é a possibilidade do conhecimento pelo juiz de factos instrumentais que resultem da instrução da causa (art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC); isto significa, sem dúvida, que nada impede que a velocidade do automóvel possa ser inferida de outro facto que não o rastro de travagem; se do disposto naquele preceito é possível retirar qualquer uma outra conclusão, isso é o que será discutido de seguida.

2. Supondo que o autor invoca na petição inicial o facto essencial (por exemplo, negligência do condutor por condução em excesso de velocidade) e o correspondente facto instrumental (por exemplo, rastro de travagem), o réu possui três hipóteses de reacção:

-- Primeira hipótese: o réu impugna apenas o facto essencial; nesta situação, há que entender que o facto instrumental também se encontra impugnado;

-- Segunda hipótese: o réu impugna apenas o facto instrumental; neste caso, impõe-se considerar que se encontra impugnada a relação entre o facto instrumental e o facto essencial, ou seja, a inferência do facto essencial do facto instrumental;

-- Terceira hipótese: o réu não impugna nem o facto essencial, nem o facto instrumental; a solução desta situação é a mais problemática, dado que a mesma depende da conjugação de dois elementos legais: a não impugnação do facto essencial (e, portanto, a sua admissão por acordo: art. 574.º, n.º 2 1.ª parte, CPC) e a não preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental (art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC); no fundo, trata-se de saber como se conjugam a primeira e a segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC e qual a relevância que o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC assume para a resolução do problema.

Procurando explicar esta relevância, pode dizer-se o seguinte:

-- Se o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC – que, recorde-se, permite a aquisição de factos instrumentais durante a instrução da causa -- não tem nenhuma relevância para a conjugação da primeira e segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC, então pode concluir-se que apenas factos instrumentais alegados por uma das partes e que não tenham sido impugnados pela contraparte podem vir a ser dados como não provados;

-- Pelo contrário, se o estabelecido no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC releva para a interpretação do art. 574.º, n.º 2, CPC, então há que concluir que, durante a instrução da causa, pode ser adquirida não só a prova da não veracidade de um facto instrumental não impugnado, mas também a prova da veracidade de um facto instrumental incompatível com a admissão por acordo de um facto essencial não impugnado.

3. A conjugação da não impugnação do facto essencial com a não preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental também não impugnado pode ser entendida no sentido de que aquela não impugnação preclude esta prova, ou seja, de que a não impugnação do facto essencial -- e, portanto, a sua admissão por acordo -- preclude a prova da não veracidade do facto instrumental. Nesta interpretação, o disposto no art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC só é aplicável se o correspondente facto essencial tiver sido impugnado; se assim não suceder, a prova da não veracidade do facto instrumental encontra-se precludida, pelo que nada pode afastar a admissão por acordo do facto essencial.

É discutível que esta seja a melhor forma de conjugar aqueles elementos legais. O principal argumento que pode ser aduzido contra aquela solução é o de que a preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental quando o correspondente facto essencial não tenha sido impugnado conduz à decisão do processo segundo uma verdade formal ou, até talvez melhor, a uma decisão contra veritatem. Foi adquirido no processo que o facto instrumental não é verdadeiro e que, portanto, este facto não pode servir de base à inferência do facto essencial; ainda assim, mantém-se adquirido para o processo o correspondente facto essencial, mesmo na hipótese de não ter sido provado nenhum outro facto instrumental do qual se possa inferir a sua verdade.

Um outro argumento contra aquela solução é retirado da possibilidade da aquisição de factos instrumentais durante a instrução incompatíveis com o facto essencial (art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC). Este preceito permite que o juiz considere os factos instrumentais que resultem da instrução da causa: esses factos instrumentais são certamente os factos que provam algum dos factos essenciais alegados pelas partes; mas, segundo parece, nada impede que o juiz também possa considerar factos instrumentais que provem a não veracidade de um facto essencial invocado pela parte e não impugnado pela contraparte.

4. Do exposto decorre que a primeira e a segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC devem ser conjugadas no sentido de que a prova da não veracidade do facto instrumental é admissível tanto quando o correspondente facto essencial tenha sido impugnado, como quando este facto não tenha sido impugnado; dito de outro modo: o art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC é aplicável qualquer que tenha sido a posição da parte quanto ao facto essencial alegado pela outra parte, isto é, mesmo que, nos termos no art. 574.º, n.º 2 1.ª parte, CPC, esse facto essencial deva considerar-se admitido por acordo por falta de impugnação.

Além disso, do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC resulta a possibilidade da aquisição de factos instrumentais contrários a factos essenciais alegados pelas partes. Não há nenhum motivo para se entender que os factos instrumentais que podem ser adquiridos durante a instrução da causa só possam ser aqueles que confirmem factos essenciais alegados pelas partes; também estão sujeitos à mesma regra de aquisição factos que contrariam esses factos essenciais.

Assim, em função da prova realizada, o juiz pode considerar, por exemplo:

-- A prova do rastro de travagem, apesar de este não ter sido alegado pelo autor; em concreto, o juiz pode dar como provada a velocidade excessiva do veículo alegada por aquela parte com base neste facto adquirido durante a instrução da causa;

-- A prova de uma deficiência mecânica no veículo, apesar de este facto não ter sido alegado pelo réu; com base nesta prova, o juiz pode dar como não provada a negligência do condutor, mesmo no caso de o réu não ter impugnado este facto essencial.

Se assim é, pode então concluir-se que os factos instrumentais adquiridos durante a instrução da causa permitem tanto uma prova positiva ou confirmatória de um facto essencial alegado, como uma prova negativa ou infirmatória de um facto essencial invocado e não impugnado (e, portanto, admitido por acordo). O actual processo civil português permite que se considere não provado um facto essencial não impugnado e, portanto, admitido por acordo: isso é o que sucede quando, apesar de o facto essencial não ter sido impugnado, for dado como provado um facto instrumental incompatível com aquele facto essencial.

5. Até agora considerou-se apenas o caso em que o réu não impugna nem o facto essencial, nem o facto instrumental alegado pelo autor. Os resultados adquiridos também valem, no entanto, para duas outras hipóteses:

– Aquela em que o autor alegou o facto essencial e o facto instrumental, mas o réu impugnou apenas este facto (situação correspondente à segunda hipótese referida no n.º 2); se for provado um facto instrumental incompatível com o facto essencial não impugnado, há que considerar este facto como não provado;

– Aquela em que o autor só alegou o facto essencial e em que o réu não o impugnou; também nesta situação, a não impugnação do facto essencial e a correspondente admissão por acordo não impedem que este venha a ser considerado não provado se for demonstrado um facto instrumental incompatível com a sua verdade.

MTS