"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/01/2015

Jurisprudência (68)


Incompetência absoluta; momento do conhecimento

I. O sumário de RL 20/1/2015 (375014/09.5YIPRT) é o seguinte:

"1. A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão. Mas, se a questão da competência em razão da matéria respeitar apenas a dois tribunais judiciais, só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não tendo este lugar, até ao início da audiência final.
 
2. Não se forma caso julgado quanto à competência do tribunal em razão da matéria quando a questão se suscitar entre dois tribunais de diferente jurisdição, ainda que no despacho saneador tenha sido decidido tabularmente que o tribunal da causa é competente para o julgamento. 
 
3. Em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 212º, da Constituição da República Portuguesa, os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos que, excepcionalmente, venham a ser atribuídos por lei especial a outra jurisdição. 
 
4. Tendo em consideração que os tribunais administrativos são os competentes para dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, importa essencialmente apurar em cada caso o que se entende por “relação jurídica administrativa”.
 
5. A relação jurídica administrativo poderá ser entendida com “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.
 
6. Assim, no fundo, há que averiguar se a invocada relação jurídica é uma relação de direito privado ou de direito público, pois é essa averiguação que irá determinar qual o tribunal competente para o julgamento da causa.
 
7. O direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes públicos, mas actuando estes despidos do «ius imperii», pelo que se a relação jurídica controvertida não se apresentar com estas características, estaremos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários.
 
8. Consequentemente, se no âmbito de uma relação contratual ambos os contraentes forem entidades particulares, e actuando apenas nessa qualidade, não estará em causa uma relação jurídica tutelada pelo direito público.
 
9. O facto de o Contrato de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial ter sido celebrado pela autora na qualidade de Concessionária, não significa necessariamente que se trate de um contrato de direito público, até porque o próprio Estado, em certos casos, actua como se de um simples particular se tratasse (despido do ius imperii), pelo que também a cessionária, por maioria de razão, pode celebrar contratos de natureza privada.
 
10. A causa de pedir nesta acção assenta no alegado incumprimento pelo Réu do “Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial”, no que diz respeito à falta de pagamento das taxas de manutenção mensalmente facturadas pela autora nos termos acordados, tendo a autora, embora concessionária, actuado desprovida de poderes de autoridade.
 
11. A obrigação contratual de pagamento mensal de uma determinada quantia, que foi designada de “taxa”, não reveste, ela própria, uma qualquer natureza ou regulamentação administrativa e/ou de direito público.
 

12. Este vocábulo não está empregue em sentido técnico jurídico (nomeadamente fiscal), ou seja, no sentido de importância cobrada aos utentes de um serviço público como contrapartida pela prestação desse mesmo serviço, tratando-se antes de quantias pagas a título de “manutenção e demais serviços prestados”, designadamente de vigilância, limpeza e promoção global, não estando em causa serviços de ordem e/ou interesse público".

II. Discute-se no acórdão se, para a apreciação da acção, são competentes os tribunais judiciais (no qual a acção foi proposta) ou os tribunais administrativos. No despacho saneador, o tribunal judicial a quo considerou-se, em termos genéricos ou "tabulares", competente para apreciar a acção, mas, na sentença final, declarou-se incompetente para essa apreciação, absolvendo o réu da instância.

Estando em causa saber se a competência (material) pertence aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos, aplica-se, quanto ao momento da arguição e do conhecimento da incompetência absoluta, o disposto no art. 97.º, n.º 1, CPC: essa incompetência pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal até ao trânsito em julgado da decisão proferida sobre o fundo da causa (portanto, teoricamente, mesmo depois do proferimento dessa decisão). O acórdão da RL é totalmente correcto quanto à aplicação daquele preceito.

O que a RL tinha a decidir era se a afirmação genérica e "tabular" no despacho saneador da competência do tribunal impedia que, na sentença final, esse mesmo tribunal viesse a considerar-se incompetente. Apesar de a RL não a referir, a solução para este problema encontra-se na lei: segundo o disposto no art. 595.º, n.º 3, CPC, quando o tribunal se pronuncia no despacho saneador sobre uma excepção dilatória ou uma nulidade processual, esse despacho só constitui caso julgado formal se houver uma apreciação concreta da excepção ou da nulidade, ou seja, se o tribunal analisar e discutir essa excepção ou essa nulidade. Sendo assim, tendo o tribunal a quo apreciado genericamente a sua competência absoluta no despacho saneador, não se formou caso julgado quanto a essa apreciação, pelo que, de acordo com o disposto no art. 97.º, n.º 1, CPC, não estava precludida a apreciação, mediante arguição das partes ou por iniciativa oficiosa, dessa incompetência na sentença final.

Atendendo ao disposto no art. 595.º, n.º 3, CPC, é discutível que se verifique a oposição jurisprudencial reconhecida pela RL na fundamentação do acórdão, dado que, em alguns dos acórdãos referidos, se fala da apreciação genérica da competência do tribunal do despacho saneador e, num outro, da apreciação concreta dessa competência. Seja como for e apesar de não ter referido o art. 595.º, n.º 3, CPC, a RL decidiu bem quanto a não considerar precludida a possibilidade de, na sentença final, o tribunal a quo se considerar materialmente incompetente, isto depois de, no despacho saneador, se ter considerado, em termos genéricos ou "tabulares", competente para a acção.

III. A latere do presente acórdão da RL, pode perguntar-se como se conjuga o disposto no art. 97.º, n.º 2, CPC (que só permite a arguição ou o conhecimento da incompetência absoluta até ao despacho saneador) com o estabelecido no art. 595.º, n.º 3, CPC, no caso de ter havido apenas uma apreciação genérica ou "tabular" da competência absoluta no despacho saneador

A resposta não levanta dificuldades. Se o despacho saneador omitir qualquer referência à incompetência absoluta, é claro que opera a preclusão imposta pelo art. 97.º, n.º 2, CPC; a solução não pode deixar de ser a mesma, se o despacho saneador se pronunciar em termos genéricos ou "tabulares" sobre essa mesma incompetência. Este despacho não constitui caso julgado sobre a competência absoluta, mas, por força do art. 97.º., n.º 2, CPC, encontra-se precludida a apreciação desta competência em momento posterior. A solução demonstra que, como é bem conhecido, a preclusão é mais ampla que o caso julgado, ou seja, nem toda a preclusão decorre do caso julgado.


MTS