"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/01/2015

Jurisprudência (62)


Dupla conforme; omissão de pronúncia; matéria de facto; poderes do STJ

1. O sumário de STJ 8/1/2015 (129/11.0TCGMR.G1.S1) é o seguinte:

I - A verificação da dupla conformidade prevista no n.º 3 do art. 671.º do NCPC (2013) tem, ademais, como óbice o emprego, pela 2.ª instância, de “fundamentação essencialmente diferente” na manutenção do decidido na 1.ª Instância, expressão que enquadra os casos em que a confirmação da sentença na 2.ª Instância assenta num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na decisão da 1.ª Instância, o que equivale por dizer que irrelevam uma eventual modificação da decisão de facto efectuada nesta última sede, dissensões secundárias, a não aceitação de um dos caminhos percorridos, ou a mera adição de fundamentos.

II - Tendo o aresto recorrido sido lavrado sem voto de vencido e [tendo-]se movido dentro do mesmo quadro jurídico em que se moveu a sentença de 1.ª Instância para alcançar, no que toca aos pedidos contidos na petição inicial, um resultado idêntico àquele que se obtivera na 1.ª Instância e limitando-se a rejeitar uma das vias ali seguidas é de concluir que, na Relação, não se adoptou uma fundamentação que deva ser tida como essencialmente diferente, o que impede o conhecimento do objecto do recurso, no segmento em que versa sobre esse aspecto, independentemente de não ter sido admitido o recurso interposto pela recorrente da decisão de 1.ª Instância. 

III - Como as questões em sentido técnico não podem ser confundidas com factos, a falta de consideração de um facto tido pela recorrente como demonstrado ou um suposto erro na apreciação da prova, não integra a nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC (2013), o mesmo se podendo afirmar relativamente a argumentos ou invocações que não integram os fundamentos da causa de pedir (da acção ou da reconvenção) ou de excepções. 

IV - Tendo o Autor impetrado o cancelamento dos registos lavrados a favor dos intervenientes e arguido a nulidade dos negócios a eles subjacentes, o acórdão recorrido não incorreu na nulidade decorrente do excesso de pronúncia se o determinou com base nessa arguição. 

V - Do n.º 3 do art. 674.º e n.º 2 do art. 682.º, ambos do NCPC (2013) evola que o STJ, enquanto tribunal de revista, só pode conhecer da matéria de facto quando ocorra ofensa expressa de lei que exija prova vinculada ou estabeleça o valor de determinado meio probatório, sem prejuízo de, com as devidas cautelas, poder sindicar o uso, pela Relação, dos poderes que lhe são conferidos pelo n.º 2 do artigo 662.º do mesmo diploma. 

VI - O facto de o recurso de apelação interposto pela recorrente não ter sido admitido não faculta a esta, à luz de qualquer norma vigente no nosso ordenamento jurídico ou de qualquer princípio, a possibilidade de impetrar a este Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da matéria de facto com base na valoração de segmentos de depoimentos testemunhais, tanto mais que estamos perante meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador. 

VII - O art. 1.º da Lei n.º 54, de 16-07-1913, está em vigor, é aplicável ao instituto da usucapião quando este verse sobre bens afectos ao domínio privado de institutos públicos integrados na administração indirecta do Estado e não enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade. 

VIII - Não se tendo alegado que a aquisição efectuada pela recorrente aos Réus visava a revenda do prédio em causa nos autos, a mesma não se pode ter como comercial, pelo que, demonstrando-se que esse bem pertencia ao recorrido, estamos em presença de uma transacção nula por falta de legitimidade daqueles para a transmissão, o mesmo se concluindo relativamente à venda daquele bem aos demais recorrentes. 

IX - Sendo as alienações posteriores do imóvel somente inoponíveis ao recorrido, os recorrentes não se podem prevalecer do disposto no art. 291.º do CC, o qual tem o seu campo de aplicação cingido à nulidade e à anulabilidade. 

X - Ainda que fosse aplicável tal preceito, o certo é que, sendo os negócios referidos em VIII os únicos afectados pelo vício, a circunstância de terem sido concluídos menos de três anos antes da propositura e registo da presente acção sempre obviaria a que se reconhecessem os direitos dos recorrentes sobre o imóvel transaccionado."

2. Da fundamentação do acórdão consta, quanto ao problema da verificação da dupla conforme, a seguinte passagem:

"[...] o acórdão recorrido manteve a sentença de que foi interposto recurso de apelação pelos Réus, apenas alterando aquela decisão no que tange ao pedido formulado pelo Autor na primeira réplica apresentada por este.

Tal aresto foi lavrado sem qualquer voto de vencido.

Assim, tendo as instâncias apenas dissentido entre si no que respeita a essoutro pedido, resta apenas determinar - para aquilatar a existência da dita dupla conforme - se a Relação, ao confirmar a sentença recorrida no que toca aos demais pedidos formulados pelo Autor, empregou fundamentação substancialmente distinta.

Na 1.ª instância, observou-se que não se demonstrara que MM [um dos réus] invertera o título da posse ou sequer que actuara sobre o prédio em causa com a convicção de que dele era dona. Mais se argumentou que o Réu não podia invocar a transmissão da posse em seu benefício ou a inversão do título da posse e, bem assim, que este não demonstrara o elemento subjectivo da posse.

Defendeu-se ainda que, mesmo que assim não fosse, haveria que ter em consideração que [...] não havia ainda decorrido o prazo legalmente exigível para a verificação da aquisição da propriedade do imóvel por usucapião [...], o que conduziu ao sucesso das pretensões deduzidas na petição inicial pelo Autor.

Na segunda instância, sustentou-se, ex adverso, que se deveria presumir a existência de posse por parte de quem detinha a coisa, i.e., os Réus, o que dispensava o recurso à figura da inversão do título da posse. Considerou-se, porém e ainda assim, a falta de compleição do prazo previsto que facultava aos Réus a aquisição por usucapião [...], o que, a acrescer ao demais aí ponderado, conduziu ao soçobrar da pretensão recursiva por estes apresentada perante o tribunal recorrido.

Aqui chegados, impõe-se a conclusão de que o aresto recorrido se moveu dentro do mesmo quadro jurídico em que se moveu a sentença de 1.ª Instância, i.e., a aquisição da propriedade por usucapião e os respectivos pressupostos.

E, para alcançar um resultado idêntico [...] àquele que se obtivera na 1.ª Instância, o tribunal a quo limitou-se a rejeitar uma das vias ali seguidas – a inexistência de inversão do título da posse e a falta de comprovação do elemento subjectivo desta figura jurídica –, mas perfilhou idêntico entendimento quanto à outra – a falta de decurso do prazo tido como exigível -.

Assim, é de concluir que, na Relação, não se adoptou uma fundamentação que deva ser tida como essencialmente diferente.

Conjugando todos estes elementos, crê-se ser apodíctico que se verifica a dupla conformidade entre as duas decisões no que respeita ao supra identificado segmento do objecto da causa."