"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/02/2015

Âmbito de aplicação da execução para entrega de imóvel arrendado




A questão pode enunciar-se da seguinte forma: pode o senhorio instaurar execução para entrega de imóvel arrendado fundada em título extrajudicial ou esta execução apenas pode ter por fundamento a decisão judicial condenatória proferida no âmbito de uma ação de despejo? É a esta pergunta que se vai procurar responder. 

Com o início de vigência da Lei n.º 31/2012, de 14/8, em 12/11/2012 (cfr. art. 15.º deste diploma) –, procedeu-se à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano e alterou-se a Lei n.º 6/2006, de 27/2. Todos os títulos executivos extrajudiciais criados pela Lei n.º 6/2006 como fundamento da ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada e que constavam das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 15.º do NRAU foram transpostos para o regime jurídico do procedimento especial de despejo, constando hoje aqueles títulos do n.º 2 do artigo 15.º do NRAU (redação da Lei n.º 31/2012).

Com vista à entrega de coisa imóvel arrendada, não foi autonomizado um título de natureza extrajudicial, diversamente do que sucedeu quanto à execução para pagamento de quantia certa. Na verdade, o legislador estabeleceu, como alternativa ao procedimento especial de despejo, uma execução com a finalidade de pagamento de rendas, encargos e despesas da responsabilidade do arrendatário (arts. 14.º-A e 15.º, n.º 5, in fine, do NRAU, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012) e baseada num título de formação complexa, dado que é integrado pelo contrato escrito de arrendamento e pela comprovação da comunicação ao arrendatário, efetuada pelo senhorio, dos valores em dívida. A razão parece radicar na circunstância de o pedido de pagamento de rendas, encargos e despesas não ser o pedido principal no procedimento especial de despejo, pois que, no âmbito deste procedimento, aquele pedido é apenas concebido como um pedido acessório. O pedido principal que pode ser formulado nesse procedimento é o pedido de desocupação do locado (cfr. arts. 15.º, n.ºs 1, 5 e 6, e 15.º-G, n.º 3, do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012).

Assim, no que se refere à desocupação do locado com fundamento na falta de pagamento de rendas, parece-nos que a única alternativa que é concedida pela lei é aquela que se verifica entre o procedimento especial de despejo e a ação de despejo, e não já entre o procedimento especial de despejo e a ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada, prevista e regulada no artigo 862.º do CPC. Todas as alíneas do n.º 1 do revogado artigo 15.º do NRAU – que previam títulos com vista à desocupação do arrendado – transitaram para o regime jurídico do procedimento especial de despejo (cfr. art. 15.º, n.º 2, do NRAU), sendo que com aquela finalidade de desocupação do imóvel não existe hoje uma norma semelhante à do artigo 14.º-A do NRAU.

Igualmente nos parece que não é de equacionar a hipótese de o senhorio poder recorrer à execução para entrega de coisa imóvel arrendada quando esta não tenha sido precedida da ação de despejo e o senhorio não possa recorrer ao procedimento especial de despejo. Após a instalação do Balcão Nacional do Arrendamento (que ocorreu em 8/1/2013: cfr. art. 27.º do Dec.-Lei n.º 1/2013, de 7/1), o senhorio deixou de estar munido de um título executivo extrajudicial que permita a realização coerciva da prestação de entrega do imóvel arrendado.

Poderia chamar-se à colação o escrito particular de revogação do contrato de arrendamento previsto no n.º 2 do artigo 1082.º do CC, quando não exista revogação real, mas, para que aquele documento tivesse força executiva, teria o mesmo de constar do NRAU, designadamente de um artigo semelhante ao referido artigo 14.º-A NRAU ou, constando de outro diploma legal (como, por exemplo, o Código Civil), teria de ser qualificado expressamente como tal pelo legislador (cfr. art. 703.º, n.º 1, al. d), CPC): é o que é imposto pelo princípio da taxatividade dos títulos executivos, que obsta a que as normas que os preveem sejam suscetíveis de interpretações extensivas. Apenas se poderá admitir a força executiva daquele escrito quanto à desocupação do imóvel, se o acordo constar de documento autêntico ou autenticado, assinado pelo arrendatário, no qual conste o reconhecimento por este da obrigação de entregar o locado ao senhorio, ou de outra convenção firmada entre as partes, nos termos gerais previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC. 

José Henrique Delgado de Carvalho
(Juiz de Direito)