Competência em função da matéria; tribunais de família e menores
1. O sumário de RP 5/2/2015 (13857/14.9T8PRT.P1) é o seguinte:
I - As “outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família” da competência material dos tribunais de família e menores [cf. art. 122.º, n.º 1, al. g), LOSJ] são aquelas que correspondem às condições ou qualidades pessoais e que têm como fonte as relações jurídicas familiares, de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal e familiar.
II - Os tribunais ou as secções de família e menores não são competentes, em razão da matéria, para conhecer das acções de alimentos movidas pelos progenitores contra os seus descendentes.
III - A competência em razão da matéria dos tribunais e agora das suas secções para a preparação e julgamento de uma acção deve ser aferida em concreto, tendo em atenção o respectivo regime legal, e a natureza da relação substancial em causa, a partir dos seus sujeitos, causa de pedir e pedido.
2. Da fundamentação do acórdão constam os seguintes trechos:
[...] para determinar o conteúdo e sentido do segmento normativo sobre “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”, iremos recorrer à leitura que a jurisprudência tem efetuado sobre esses conceitos jurídicos. A propósito o então designado assento do STJ n.º 1/92 (DR n.º 134, de 11/jun./1996), seguindo uma posição aí expendida pelo Ministério Público, considera que “o estado das pessoas restringe-se ao complexo jurídico determinado por qualidades ou atributos inerentes à pessoa”, precisando ser aquelas que se projetam sobre o seu estado civil, como sucede, por exemplo, com o divórcio, a separação de pessoas e bens, a investigação da paternidade, a impugnação dos impedimentos para o casamento, a autorização para o casamento, aquisição ou perda de nacionalidade, ratificação do casamento in articulo mortis, retificação de registos de atos relativos ao estado civil da pessoa, declaração de objetor de consciência e aí por diante. Mais recentemente e através do Ac. do STJ de 13/nov./2012 (Cons. João Camilo) considerou-se que “a referência na parte final à palavra família se tem de entender como referida às acções sobre o estado civil das pessoas, ou seja, fazendo qualificar o conceito de estado civil no seu uso restrito”.
[...] o legislador terá certamente pretendido abranger o caráter fluído e flexível que hoje carateriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe ao laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável, e sabido que as relações familiares não acabam com o divórcio dos progenitores. Até pode inexistir quaisquer laços sanguíneos entre as pessoas maiores e os menores que estão a seu cargo ou haver a necessidade destes últimos preservarem os laços familiares para além daquele núcleo central, como sucede com os seus avós ou tios. Ainda se podem colocar novas questões como as decorrentes da maternidade de substituição quando esta é reconhecida em países estrangeiros e não no país de que os “pais não biológicos” são nacionais, como sucede em Portugal (Lei 32/2006, de 26/jul., artigo 8.º). Estamos assim perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8.º da CEDH (Ac. TEDH Marckx v. Bélgica, 13/jun./1979; Jolie & Lebrun v. Bélgica, 14/mai./1986; Johnston v. Irlanda de 18/dez./1986; Berrehab v. Holanda de 21/jun./1988; Boyle v. Reino Unido, 9/fev./1993; Keegan v. Irlanda, 26/mai./1994; Kroon e Outros v. Holanda, de 27/out./1994; Boughanemi v. França 24/abr./1996; X, Y & Z v. Reino Unido, 22/abr./1997; Söderbäck v. Suécia, 28/out./1998; Wagner v. Luxemburgo, 28/jun./2007). Daí que a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (1576.º Código Civil; Lei 23/2010, de 30/ago. e as alterações legislativas daí decorrentes, com destaque para a Lei 7/2001, de 11/mai.), de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que atualmente tem a família.
Por sua vez, a prestação de alimentos entre pessoas maiores visa essencialmente possibilitar a subsistência do alimentado (2004.º, n.º 2, Código Civil), tendo neste caso uma fonte legal, que é centrada nas relações familiares no seu sentido mais lato (2009.º Código Civil), mas pode também advir de uma relação contratual, sem quaisquer raízes familiares (2014.º, Código Civil). Tais direitos têm uma vocação de permanência (2013.º [C+odigo Civil]), ao contrário da natureza provisória dos alimentos prestados pelos progenitores aos seus filhos, sejam estes menores ou então maiores ou emancipados a necessitarem de formação profissional e enquanto esta se complete (122.º, 130.º, 132.º, 1877.º e 1880.º Código Civil). Tanto uma como outra são uma manifestação do dever de solidariedade, seja legalmente imposto, seja contratualmente assumido, visando-se a preservação da dignidade da pessoa humana (1.º Const.). E esta gera igualmente a obrigação de prestações sociais por parte do Estado, na sua vertente de um direito fundamental a um mínimo vital de subsistência, mormente quando se está numa posição de vulnerabilidade (1.º, 2.º, 63.º, n.º 1 e 3 da Const.; Ac. TC 232/91 (atualização pensões de trabalho), 349/91, 411/93, 130/95, 318/99, 62/02, 177/02 (impenhorabilidade de certas prestações sociais); 509/02 (restrição ao rendimento mínimo garantido), todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Como podemos constatar o direito a alimentos, muito embora tenha essencialmente uma génese legal e familiar, não retrata qualquer questão que possa ser enquadrada com o “estado civil das pessoas e família”.