"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/02/2015

Jurisprudência (78)


Execução hipotecária; legitimidade passiva; intervenção de terceiros;
relevância da diligência da parte

1. É o seguinte o sumário de STJ 28/1/2015 (482/12.9TBSTR-A.E1.S1):

"I - Na revista excepcional o objecto único de conhecimento é a questão suscitada que justificou esse regime de excepção, a sua admissibilidade, não se podendo conhecer de outras questões, pois se assim não fosse estar-se-ia a violar a regra da dupla conformidade e o seu regime de excepção.

II - No domínio da acção executiva, a determinação da legitimidade activa e passiva exige uma relação de coincidência entre aqueles que constam do requerimento inicial executivo e no título executivo (art. 53.º, n.º 1, do NCPC (2013)), mas, no que respeita ao lado passivo da instância, aquele que aqui nos interessa, casos há em que a legitimidade passiva não coincide com a pessoa designada no título executivo, em que um terceiro pode ser parte legítima.

III - O credor hipotecário tem o direito de ser pago pelo produto dos bens hipotecados, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art. 686.º, n.º 1, do CC), pelo que a acção executiva, sob pena de ilegitimidade, tem de ser proposta necessariamente contra o proprietário do bem (art. 735.º, n.º 2, e 818.º do CC), como resulta do art. 54.º, n.ºs 2 e 3, do NCPC.

IV - Permite este normativo que o exequente que queira fazer valer a garantia real, quando os bens dados em garantia pertençam a terceiro, possa optar entre propor desde logo a execução contra terceiro e o devedor, numa óbvia situação de litisconsórcio voluntário, ou ser mais expectante intentando a execução apenas contra terceiro, para, posteriormente se os bens se revelarem insuficientes, chamar o devedor para alcançar a completa satisfação do crédito exequendo.

V - Não tendo o exequente/credor hipotecário demandado inicialmente os garantes, pode ainda fazê-lo na pendência da execução primitivamente instaurada apenas contra os executados outorgantes do contrato de mútuo garantido por hipoteca, através do incidente de intervenção principal provocada, de modo a que o bem hipotecado, propriedade daqueles terceiros cujo direito de propriedade foi adquirido posteriormente à data da constituição da hipoteca mas antes da dedução da acção executiva, possa responder pela dívida provida de garantia real."

2. A principal questão que o acórdão resolveu prende-se com a admissibilidade da intervenção principal na acção executiva. A verdade é que não há nenhum motivo para recusar, em princípio, a aplicação do instituto (geral) da intervenção principal na acção executiva (cf., com soluções nem sempre convergentes, Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular (1998), 153 s.; Lebre de Freitas, A Ação Executiva À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed. (2014), 160 ss.). Como se defendeu na fundamentação do acórdão, "[...] se a execução podia ter sido instaurada, ab initio, também contra o terceiro (n.º 2 do art. 54.º [do CPC]), muito embora as normas processuais referentes aos incidentes de intervenção de terceiros estejam estruturadas em função da acção declarativa, não se descortina fundamento para que ele não possa ser chamado no decurso da execução, sabido que a admissibilidade, em geral, da intervenção principal provocada é aceite quanto a pessoas com legitimidade para a acção executiva."

Efectivamente, o art. 54.º, n.º 2, CPC determina que, na execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, deve ser demandado este terceiro, sem prejuízo de, desde logo, também poder ser demandado o devedor. O preceito impõe uma constante -- a demanda do terceiro -- e permite uma variável -- a demanda, ab initio ou subsequente, do devedor. Talvez tenha sido esta circunstância que tenha levado as instâncias a recusar a intervenção do terceiro proprietário do bem hipotecado, porque, no caso concreto, foi primeiro demandado o devedor e, só depois, foi requerida a intervenção do terceiro proprietário do imóvel. No entanto, parece que ambas as situações devem ter o mesmo tratamento, até porque se pode dizer que, na hipótese de o exequente começar por demandar o devedor, a intervenção do terceiro é necessária para sanar a ilegitimidade deste devedor ou, pelo menos, é indispensável para evitar a oposição do terceiro à penhora do imóvel de que é proprietário.

3. O exequente alega que, só na pendência da execução, se apercebeu de que o devedor tinha transmitido o bem hipotecado para um terceiro. Embora o nCPC continue a não utilizar o parâmetro da diligência da parte para avaliar a aplicação ou não aplicação de regimes legais, aquela circunstância também não pode deixar de ser considerada na discussão sobre a admissibilidade da intervenção principal provocada (pelo exequente) do terceiro proprietário. Se, realmente, não era exigível que o credor exequente se devesse ter apercebido de que o imóvel hipotecado tinha sido transmitido pelo devedor para um terceiro, então também o regime processual não deve ser interpretado e aplicado no sentido de sancionar esse credor com a sujeição a uma desvantagem processual (in casu, com a necessidade de intentar uma nova acção executiva contra o terceiro proprietário).

Dando continuidade a regimes passados, o nCPC sanciona com a litigância de má fé a conduta gravemente negligente ou mesmo dolosa da parte (cf. art. 542.º, n.º 1 e 2, nCPC), mas, na apreciação das consequências da omissão de um acto processual (nomeadamente, para efeitos de preclusão), não dá nenhuma relevância nem à observância da diligência devida, nem à negligência desculpável da parte. Ainda que a parte tenha agido com a diligência devida ou mesmo que a sua negligência seja desculpável, isso não releva a omissão do acto e não impede a preclusão do acto omitido. 

Apesar de este ser (pelo menos, por enquanto) o regime legal, isso não deve obstar a que a jurisprudência possa utilizar, sempre que se mostre adequado, a diligência devida ou a negligência desculpável da parte como standard de interpretação e de aplicação dos regimes processuais. Uma coisa é o jus positum, outra bem distinta são os parâmetros da sua interpretação e aplicação pelos tribunais: aquele vincula os tribunais, estes, respeitados os limites impostos pelo art. 9.º CC, podem (mais até: devem) ser construídos pela jurisprudência.

MTS