"1. A fixação do sentido do contrato não pode ser procurada meramente no plano linguístico, devendo apelar-se a uma perspectiva integrada da autonomia privada através de uma articulação com outros princípios do direito dos contratos, como o da justiça (ou equilíbrio do contrato), o da protecção da confiança ou o da conduta segundo a boa fé.
2. A figura da cláusula penal não tem um recorte unitário, no que concerne à sua qualificação e regime, devendo distinguir-se três tipos de cláusulas penais consoante a função visada pelas partes: as cláusulas destinadas a fixar antecipadamente o montante indemnizatório pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato, as cláusulas penais em sentido estrito e as cláusulas penais exclusivamente compulsórias.
3. A incompatibilidade de pedidos, enquanto vício gerador de ineptidão da petição inicial, só justifica colher a relevância de determinar a anulação de todo o processo, quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir, por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto, não relevando, para o efeito, o antagonismo que ocorra no plano legal ou do enquadramento jurídico."
II. a. O acórdão suscita várias questões interessantes, sendo que a mais importante delas não é nele discutida: trata-se do problema respeitante à admissibilidade do recurso de revista para o STJ. Para melhor compreensão do problema convém ter presente os seguintes dados:
-- A acção foi proposta -- segundo se crê -- em 2012, portanto, na vigência do aCPC;
-- O tribunal de 1.ª instância absolveu a ré da instância, por ineptidão da petição inicial, tendo considerado que o pedido de cumprimento do contrato era incompatível com o accionamento de uma cláusula penal de carácter indemnizatório;
-- A acção foi proposta -- segundo se crê -- em 2012, portanto, na vigência do aCPC;
-- O tribunal de 1.ª instância absolveu a ré da instância, por ineptidão da petição inicial, tendo considerado que o pedido de cumprimento do contrato era incompatível com o accionamento de uma cláusula penal de carácter indemnizatório;
-- Desta decisão foi interposto recurso de apelação para a RP, que decidiu o seguinte: "[...] acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, não julgando inepta a petição inicial por contradição de pedidos, revoga-se a sentença recorrida, determinando-se, consequentemente, o prosseguimento dos autos de acordo com a ritologia legalmente prevista"; noutros termos: a RP entendeu que a cláusula penal fixada no contrato tem natureza compulsória, pelo que o pedido do seu pagamento pode ser cumulado com o pedido do cumprimento do acordado pelas partes;
-- Deste acórdão da RP foi interposto recurso de revista para o STJ.
-- Deste acórdão da RP foi interposto recurso de revista para o STJ.
Esta descrição -- que, aparentemente, corresponde à situação real -- levanta o problema de saber como justificar a admissibilidade do recurso de revista para o STJ. Os dados legais que originam o problema são os seguintes:
-- No momento da propositura da acção, era aplicável à admissibilidade do recurso de revista o disposto no art. 721.º, n.º 1, aCPC; de acordo com a remissão deste preceito para o art. 691.º aCPC, a revista era admissível quando o acórdão da Relação tivesse recaído sobre uma decisão da 1.ª instância que tivesse posto termo ao processo ou sobre um despacho saneador que, apesar de não ter posto termo ao processo, tivesse decidido do mérito da causa (consagrava-se o regime do "efeito à distância" da decisão de 1.ª instância); portanto, in casu, a revista devia ser admitida, dado que a RP se pronunciou sobre um despacho saneador que absolveu a ré da instância;
-- No momento da interposição do recurso de revista (que se supõe ser posterior a 1/9/2013), já se encontrava em vigor o art. 671.º, n.º 1, nCPC: segundo este preceito, cabe revista para o STJ do acórdão da Relação, proferido sobre decisão de 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo; de acordo com o referido preceito, a revista interposta na acção não poderia ter sido admitida, dado que a mesma foi interposta de um acórdão da RP que não conheceu do mérito da causa, nem absolveu da instância, antes mandou que o processo continuasse os seus trâmites na 1.ª instância.
Aproveita-se para esclarecer um ponto. A redacção do art. 671.º, n.º 1, nCPC é a seguinte: "Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos". Os requisitos para a admissibilidade da revista são dois:
-- É necessário que o acórdão da Relação tenha sido proferido sobre uma decisão da 1.ª instância (não, por exemplo, numa acção em que a Relação seja o tribunal de 1.ª instância);
-- Além disso, o acórdão da Relação tem de conhecer do mérito da causa ou pôr termo ao processo.
Isto significa que a oração relativa "que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos" se refere ao conteúdo do acórdão da Relação que se pretende impugnar, e não ao conteúdo da decisão da 1.ª instância sobre a qual recaiu esse acórdão. O que se pretendeu com a nova redacção do art. 671.º, n.º 1, nCPC foi precisamente terminar com o "efeito à distância" provocado pelo conteúdo da decisão de 1.ª instância sobre a admissibilidade da revista.
b. Voltando à análise do problema da admissibilidade da revista no caso em apreciação, pode, em conclusão, afirmar-se o seguinte: a revista era admissível segundo o art. 721.º, n.º 1, aCPC, mas não o é de acordo com o actual art. 671.º, n.º 1, nCPC. Assim, dada a sucessão de regimes no tempo, coloca-se o problema de saber qual deles deveria ter sido aplicado no caso concreto.
A L 41/2013, de 26/6, contém somente, quanto à sucessão de leis no tempo em matéria de recursos, um preceito: o art. 7.º, n.º 1. Este preceito destina-se apenas, no entanto, a resolver o problema da admissibilidade da revista nas acções em que, no momento da sua propositura, ainda não vigorava o (discutível) regime da dupla conforme. É por isso que, dentro da perspectiva de não piorar a situação das partes quanto à interposição do recurso de revista, o preceito determina que às revistas interpostas nessas acções se aplica o novo regime legal (isto é, o nCPC), com excepção do sistema da dupla conforme (cf. art. 671.º, n.º 3, nCPC).
Isto significa que, tendo a presente acção sido proposta num momento em que já vigorava na ordem jurídica o sistema da dupla conforme, não se lhe aplica o regime especial que consta do art. 7.º, n.º 1, nCPC. Noutros termos: qualquer recurso de revista interposto na acção fica sujeito ao sistema da dupla conforme.
Continua a subsistir, no entanto, o problema de saber qual é a lei aplicável à admissibilidade do recurso de revista. A sucessão de leis em matéria de admissibilidade deste recurso deve ser analisada segundo o regime geral do art. 5.º, n.º 1, L 41/2013, preceito que estabelece a aplicação imediata do novo regime legal às acções declarativas que se encontravam pendentes em 1/9/2013.
A aplicação imediata do novo regime sobre a admissibilidade da revista -- isto é, a aplicação imediata do disposto no art. 671.º, n.º 1, nCPC -- torna inadmissível uma revista que era admissível segundo o estabelecido no art. 721.º, n.º 1, aCPC, dado que o acórdão da RP não conheceu do mérito e também não absolveu a ré da instância. Esta circunstância coloca, segundo a jurisprudência constante e pacífica do TC, a questão da constitucionalidade dessa aplicação imediata, dado que aquela aplicação se traduz em retirar às partes um recurso de revista que era admissível no momento da propositura da acção.
Como se referiu, o acórdão não trata deste problema, ignorando-se se -- o que, aliás, não é provável -- o mesmo foi objecto de alguma análise autónoma. Seja como for, mais importante é a conclusão de que a aplicação imediata do disposto no art. 671.º, n.º 1, nCPC por força do estabelecido no art. 5.º, n.º 1, L 41/2013 é susceptível de suscitar um problema de constitucionalidade se dessa aplicação resultar a inadmissibilidade de uma revista cuja interposição era admissível no momento da propositura da acção (nomeadamente, segundo o art. 721.º, n.º 1, aCPC).
Fica em aberto saber se o problema de constitucionalidade é susceptível de se colocar perante o disposto no art. 7.º, n.º 1, L 41/2013, em concreto perante a parte que neste preceito determina a aplicação imediata do novo regime legal aos recursos interpostos de decisões proferidas em acções propostas antes de 1/1/2008. Para responder será necessário comparar o regime dos recursos de revista e de agravo em 2.ª instância antes da entrada em vigor do DL 303/2007, de 24/8, com o actual regime do recurso de revista e verificar se, com a aplicação deste último, as partes perdem alguma possibilidade de impugnação.
III. O acórdão levanta ainda outras questões. Como acima se referiu, a RP concedeu provimento ao recurso, entendendo que a petição não é inepta pela cumulação de pedidos incompatíveis (cf. art. 186.º, n.º 2, al. c), nCPC). O STJ determinou "o prosseguimento dos autos para averiguação dos factos alegados pelas partes relativos ao invocado incumprimento e para a qualificação da natureza jurídica da cláusula penal, se for caso disso", concluindo-se na parte dispositiva do acórdão da seguinte forma: "Pelo exposto, decide-se [...] confirmar o acórdão recorrido, ainda que com um diferente fundamento".
A verdade é que o STJ não confirmou que a petição não seja inepta, antes determinou que as instâncias apreciem a natureza (compulsória ou indemnizatória) da cláusula penal, deixando em aberto a possibilidade de, dependendo desta natureza, a petição ser realmente inepta pela cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis. É discutível que, nestas circunstâncias, se possa falar de uma confirmação do acórdão recorrido, mesmo que com diferentes fundamentos.
-- No momento da propositura da acção, era aplicável à admissibilidade do recurso de revista o disposto no art. 721.º, n.º 1, aCPC; de acordo com a remissão deste preceito para o art. 691.º aCPC, a revista era admissível quando o acórdão da Relação tivesse recaído sobre uma decisão da 1.ª instância que tivesse posto termo ao processo ou sobre um despacho saneador que, apesar de não ter posto termo ao processo, tivesse decidido do mérito da causa (consagrava-se o regime do "efeito à distância" da decisão de 1.ª instância); portanto, in casu, a revista devia ser admitida, dado que a RP se pronunciou sobre um despacho saneador que absolveu a ré da instância;
-- No momento da interposição do recurso de revista (que se supõe ser posterior a 1/9/2013), já se encontrava em vigor o art. 671.º, n.º 1, nCPC: segundo este preceito, cabe revista para o STJ do acórdão da Relação, proferido sobre decisão de 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo; de acordo com o referido preceito, a revista interposta na acção não poderia ter sido admitida, dado que a mesma foi interposta de um acórdão da RP que não conheceu do mérito da causa, nem absolveu da instância, antes mandou que o processo continuasse os seus trâmites na 1.ª instância.
Aproveita-se para esclarecer um ponto. A redacção do art. 671.º, n.º 1, nCPC é a seguinte: "Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos". Os requisitos para a admissibilidade da revista são dois:
-- É necessário que o acórdão da Relação tenha sido proferido sobre uma decisão da 1.ª instância (não, por exemplo, numa acção em que a Relação seja o tribunal de 1.ª instância);
-- Além disso, o acórdão da Relação tem de conhecer do mérito da causa ou pôr termo ao processo.
Isto significa que a oração relativa "que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos" se refere ao conteúdo do acórdão da Relação que se pretende impugnar, e não ao conteúdo da decisão da 1.ª instância sobre a qual recaiu esse acórdão. O que se pretendeu com a nova redacção do art. 671.º, n.º 1, nCPC foi precisamente terminar com o "efeito à distância" provocado pelo conteúdo da decisão de 1.ª instância sobre a admissibilidade da revista.
b. Voltando à análise do problema da admissibilidade da revista no caso em apreciação, pode, em conclusão, afirmar-se o seguinte: a revista era admissível segundo o art. 721.º, n.º 1, aCPC, mas não o é de acordo com o actual art. 671.º, n.º 1, nCPC. Assim, dada a sucessão de regimes no tempo, coloca-se o problema de saber qual deles deveria ter sido aplicado no caso concreto.
A L 41/2013, de 26/6, contém somente, quanto à sucessão de leis no tempo em matéria de recursos, um preceito: o art. 7.º, n.º 1. Este preceito destina-se apenas, no entanto, a resolver o problema da admissibilidade da revista nas acções em que, no momento da sua propositura, ainda não vigorava o (discutível) regime da dupla conforme. É por isso que, dentro da perspectiva de não piorar a situação das partes quanto à interposição do recurso de revista, o preceito determina que às revistas interpostas nessas acções se aplica o novo regime legal (isto é, o nCPC), com excepção do sistema da dupla conforme (cf. art. 671.º, n.º 3, nCPC).
Isto significa que, tendo a presente acção sido proposta num momento em que já vigorava na ordem jurídica o sistema da dupla conforme, não se lhe aplica o regime especial que consta do art. 7.º, n.º 1, nCPC. Noutros termos: qualquer recurso de revista interposto na acção fica sujeito ao sistema da dupla conforme.
Continua a subsistir, no entanto, o problema de saber qual é a lei aplicável à admissibilidade do recurso de revista. A sucessão de leis em matéria de admissibilidade deste recurso deve ser analisada segundo o regime geral do art. 5.º, n.º 1, L 41/2013, preceito que estabelece a aplicação imediata do novo regime legal às acções declarativas que se encontravam pendentes em 1/9/2013.
A aplicação imediata do novo regime sobre a admissibilidade da revista -- isto é, a aplicação imediata do disposto no art. 671.º, n.º 1, nCPC -- torna inadmissível uma revista que era admissível segundo o estabelecido no art. 721.º, n.º 1, aCPC, dado que o acórdão da RP não conheceu do mérito e também não absolveu a ré da instância. Esta circunstância coloca, segundo a jurisprudência constante e pacífica do TC, a questão da constitucionalidade dessa aplicação imediata, dado que aquela aplicação se traduz em retirar às partes um recurso de revista que era admissível no momento da propositura da acção.
Como se referiu, o acórdão não trata deste problema, ignorando-se se -- o que, aliás, não é provável -- o mesmo foi objecto de alguma análise autónoma. Seja como for, mais importante é a conclusão de que a aplicação imediata do disposto no art. 671.º, n.º 1, nCPC por força do estabelecido no art. 5.º, n.º 1, L 41/2013 é susceptível de suscitar um problema de constitucionalidade se dessa aplicação resultar a inadmissibilidade de uma revista cuja interposição era admissível no momento da propositura da acção (nomeadamente, segundo o art. 721.º, n.º 1, aCPC).
Fica em aberto saber se o problema de constitucionalidade é susceptível de se colocar perante o disposto no art. 7.º, n.º 1, L 41/2013, em concreto perante a parte que neste preceito determina a aplicação imediata do novo regime legal aos recursos interpostos de decisões proferidas em acções propostas antes de 1/1/2008. Para responder será necessário comparar o regime dos recursos de revista e de agravo em 2.ª instância antes da entrada em vigor do DL 303/2007, de 24/8, com o actual regime do recurso de revista e verificar se, com a aplicação deste último, as partes perdem alguma possibilidade de impugnação.
III. O acórdão levanta ainda outras questões. Como acima se referiu, a RP concedeu provimento ao recurso, entendendo que a petição não é inepta pela cumulação de pedidos incompatíveis (cf. art. 186.º, n.º 2, al. c), nCPC). O STJ determinou "o prosseguimento dos autos para averiguação dos factos alegados pelas partes relativos ao invocado incumprimento e para a qualificação da natureza jurídica da cláusula penal, se for caso disso", concluindo-se na parte dispositiva do acórdão da seguinte forma: "Pelo exposto, decide-se [...] confirmar o acórdão recorrido, ainda que com um diferente fundamento".
A verdade é que o STJ não confirmou que a petição não seja inepta, antes determinou que as instâncias apreciem a natureza (compulsória ou indemnizatória) da cláusula penal, deixando em aberto a possibilidade de, dependendo desta natureza, a petição ser realmente inepta pela cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis. É discutível que, nestas circunstâncias, se possa falar de uma confirmação do acórdão recorrido, mesmo que com diferentes fundamentos.
IV. Na hipótese de as instâncias concluírem que a cláusula penal tem natureza indemnizatória (e não meramente compulsória), será que a petição inicial da acção é inepta por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis (cf. art. 186.º, n.º 2, al. c), nCPC)? A resposta é positiva, dado que o tribunal só pode considerar procedente um dos pedidos formulados pela autora, mas, como é claro, não lhe cabe escolher qual deles deve apreciar e, eventualmente, julgar procedente. Essa escolha caberia exclusivamente à autora, que poderia ter apresentado os pedidos como alternativos (cf. art. 553.º, n.º 1, nCPC).
Com o pedido da apreciação conjunta de dois pedidos incompatíveis (porque só um deles pode ser procedente), a demandante coloca o tribunal na posição de ter de decidir simultaneamente pedidos que são contraditórios entre si (e que, por isso mesmo, não são cumuláveis). É precisamente isto que caracteriza a ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
Com o pedido da apreciação conjunta de dois pedidos incompatíveis (porque só um deles pode ser procedente), a demandante coloca o tribunal na posição de ter de decidir simultaneamente pedidos que são contraditórios entre si (e que, por isso mesmo, não são cumuláveis). É precisamente isto que caracteriza a ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
MTS