1. O sumário de RE 29/1/2015 (1816/14.6TBPTM-A.E2 ) é o seguinte:
"No que respeita à citação por via postal de cidadãos residentes no espaço comunitário, rege o disposto no Regulamento (CE) 1393/2007, de 13 de Novembro, que se aplica a Portugal e à República da Irlanda (ver quanto a este país o disposto no § 28 do Preâmbulo do Regulamento), em conformidade com art.º 288,º do TFUE, directa e obrigatoriamente, em obediência ao princípio da primazia do Direito da União sobre o Direito Interno".
2. O sumário do acórdão é correcto (apenas é mais comum falar de considerandos, e não de preâmbulos, dos regulamentos europeus), mas não reflecte completamente a questão apreciada e decidida no acórdão. O que estava em causa era o seguinte: um Banco requereu uma providência cautelar em Portugal contra um requerido com domicílio na Irlanda; o requerido foi citado por via postal neste Estado; o requerido não contestou o procedimento cautelar; o tribunal decretou a providência cautelar; o requerido interpôs recurso, alegando a nulidade da sua citação.
Porque a citação do requerido devia ser realizada num Estado-membro do Reg. 1393/2007 (isto é, no "estrangeiro-UE"), essa citação é regulada por este regulamento europeu. O Reg. 1393/2007 prevê duas modalidade de citação:
-- A chamada citação directa, realizada pela entidade requerida do Estado do citando (art. 4.º a 11.º Reg. 1393/2007) ou por oficial de justiça ou funcionário do Estado requerido (art. 15.º Reg. 1393/2007);
-- A designada citação indirecta, efectuada por via diplomática ou consular (art. 12.º Reg. 1393/2007), por agentes diplomáticos ou consulares (art. 13.º Reg. 1393/2007) ou pelos serviços postais (art. 14.º Reg. 1393/2007).
Na hipótese de a citação ser realizada por via indirecta, o consid. (12), § 3.º, Reg. 1393/2007 esclarece que as regras sobre a recusa da recepção do acto devem aplicar-se igualmente, entre outras situações, à citação ou notificação efectuada pelos serviços postais. Isto significa que o citando ou notificando deve ser avisado, mediante o formulário constante do anexo II do Reg. 1393/2007, de que pode recusar a recepção do acto se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução numa língua que o destinatário compreenda ou na língua oficial do Estado requerido (art. 8.º, n.º 1, Reg. 1393/2007).
3. No caso concreto, verificou-se que a citação do requerido não foi acompanhada de qualquer tradução, nem do formulário constante do anexo II do Reg. 1393/2007. A RE entendeu que esta circunstância configura um caso de nulidade da citação (art. 191.º, n.º 1, CPC), mas acrescentou, nas suas considerações, o seguinte: "[...] não foi cumprida formalidade essencial, que poderia gerar nulidade da notificação (art. 191.º, n.º 1, do NCPC), não fosse o requerido ter demonstrado, através da interposição do competente recurso, que foi notificado da sentença e para se pronunciar sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal, o que conduz à sanação da nulidade (art. 191.º, n.º 4, do NCPC)".
Segundo parece, a RE entendeu que, sendo indiscutível que o requerido teve conhecimento da sentença que decretou a providência cautelar e não tendo reagido nesse momento contra a nulidade da sua citação, esta nulidade se encontra sanada, pelo que o recurso interposto não pode deixar de ser julgado improcedente. Esta orientação da RE merece dois breves comentários.
Um primeiro comentário incide sobre o seguinte aspecto: não é claro como se pode justificar que a notificação da sentença final e o conhecimento pelo requerido desta sentença possam ser entendidos como conduzindo à sanação da nulidade da citação desse requerido. Neste contexto, também não é claro o sentido da invocação do disposto no art. 191.º, n.º 4, CPC: o preceito determina que a arguição da nulidade da citação só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado; a circunstância de o requerido ter tido conhecimento da sentença não significa que esse requerido não tenha sido prejudicado pela nulidade da sua citação.
Um outro comentário que o acórdão suscita é o seguinte: atendendo a que o objecto do recurso era a nulidade da citação do requerido e que, segundo parece, a RE entende que o requerido, em vez de ter interposto o recurso, devia ter arguido a nulidade da citação depois de ter sido notificado da sentença que decretou a providência cautelar, verifica-se um erro no meio processual utilizado pelo requerido. O meio processual escolhido pelo requerido para invocar a nulidade da sua citação não é o adequado: devia ter sido a reclamação contra a nulidade, não a apelação interposta. Mas se assim é, então o que a RE deveria ter feito era analisar a aplicação ao caso sub iudice do (novo) art. 193.º, n.º 3, CPC: "o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados".
Perante este preceito, a RE (como, aliás, o tribunal a quo, no momento de se pronunciar sobre a admissibilidade da apelação) poderia vir a tomar uma das seguintes decisões:
-- Considerar que, como o recurso foi (muito provavelmente) interposto depois de passados os 10 dias para a arguição da nulidade da citação após a notificação da sentença final (cf. art. 149.º, n.º 1, CPC), a convolação permitida pelo art. 193.º, n.º 3, CPC não era admissível; a decisão não seria indiscutível, mas poderia colher algum apoio legal;
-- Admitir, ainda assim (isto é, mesmo que o prazo para a arguição da nulidade da citação já se encontrasse esgotado), a aplicação do art. 193.º, n.º 3, CPC e aceitar a convolação do recurso interposto numa reclamação da nulidade da citação; esta opção, de acordo com uma certa perspectiva de prevalência do fundo (a invocação da nulidade) sobre a forma (o erro no meio processual), também era defensável.
4. O caso concreto demonstra que há que estar atento à aplicação pela jurisprudência do disposto no art. 193.º, n.º 3, CPC, nomeadamente no que se refere à admissibilidade da convolação quando, no momento da realização do acto convolado, já não seria possível a prática do acto adequado. No fundo, há que escolher entre a preclusão e a convolação. Seria desejável que a jurisprudência adoptasse uma orientação não formalista e se orientasse no sentido da prevalência da convolação sobre a preclusão.
Perante este preceito, a RE (como, aliás, o tribunal a quo, no momento de se pronunciar sobre a admissibilidade da apelação) poderia vir a tomar uma das seguintes decisões:
-- Considerar que, como o recurso foi (muito provavelmente) interposto depois de passados os 10 dias para a arguição da nulidade da citação após a notificação da sentença final (cf. art. 149.º, n.º 1, CPC), a convolação permitida pelo art. 193.º, n.º 3, CPC não era admissível; a decisão não seria indiscutível, mas poderia colher algum apoio legal;
-- Admitir, ainda assim (isto é, mesmo que o prazo para a arguição da nulidade da citação já se encontrasse esgotado), a aplicação do art. 193.º, n.º 3, CPC e aceitar a convolação do recurso interposto numa reclamação da nulidade da citação; esta opção, de acordo com uma certa perspectiva de prevalência do fundo (a invocação da nulidade) sobre a forma (o erro no meio processual), também era defensável.
4. O caso concreto demonstra que há que estar atento à aplicação pela jurisprudência do disposto no art. 193.º, n.º 3, CPC, nomeadamente no que se refere à admissibilidade da convolação quando, no momento da realização do acto convolado, já não seria possível a prática do acto adequado. No fundo, há que escolher entre a preclusão e a convolação. Seria desejável que a jurisprudência adoptasse uma orientação não formalista e se orientasse no sentido da prevalência da convolação sobre a preclusão.