"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/02/2015

Atos anteriores ao processo e direito processual intertemporal




1. A orientação jurisprudencial recente em Portugal sobre títulos executivos e direito intertemporal

O Blog do IPPC divulgou recentes decisões do judiciário português no sentido de considerar aplicável, relativamente ao elenco de títulos executivos extrajudiciais, a lei vigente na data do aperfeiçoamento do documento (que naquela oportunidade era, mas no momento do processo deixou de ser, título executivo). Tratam do tema, pelo menos, as decisões objeto da “Jurisprudência constitucional (18)”, da “Jurisprudência (58)”, além da “Jurisprudência (80)”, divulgada hoje (no Brasil, ainda estamos no dia 15).

2. A jurisprudência brasileira sobre impenhorabilidade e direito intertemporal

No Brasil, questão análoga foi discutida a partir do início dos anos 1990 – e o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça adotaram orientação oposta à encampada nas decisões portuguesas acima referidas (e, portanto, em consonância com a crítica formulada pelo Prof. M. Teixeira de Sousa no Blog do IPPC).

A Lei 8.009/1990 consagrou a impenhorabilidade do imóvel residencial familiar único ou de menor valor do devedor.

Estabeleceu-se controvérsia sobre a constitucionalidade da expressa determinação do cancelamento das penhoras preexistentes (o que na lei se chamou, de modo atécnico, de “cancelamento das execuções”).

Alguns sustentaram que isso feriria ato perfeito e direito adquirido do credor (CF, art. 5.º, XXXVI). Prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal (RE 136.753, 13.02.97) e no Superior Tribunal de Justiça (Súmula 205 do STJ), o entendimento de que inexistiria ofensa àquela garantia constitucional, por que: (I) a penhora não constitui direito em favor do credor: é apenas a primeira etapa do ato complexo da expropriação; (II) ato perfeito só se teria depois de encerrada a expropriação do bem penhorado: a lei, quando reputa um bem impenhorável, proíbe, em verdade, sua expropriação em processo executivo, de modo que, enquanto não ocorrer tal evento, a penhora é cancelável sem qualquer afronta constitucional. 

Essa orientação pressupõe – parece-me, corretamente – a adoção da tese do caráter processual das regras sobre responsabilidade patrimonial (ainda que isso não esteja afirmado nos julgados sobre o tema). Afinal, se fossem normas de direito material, valeriam as do momento da constituição do débito, de forma que, na execução das dívidas contraídas antes da Lei 8.009/1990, aqueles bens permaneceriam penhoráveis.

3. A expressa afirmação, pelo STF, da irrelevância da lei da época do negócio jurídico anterior ao processo

Depois de já pacificada a questão, o STF tornou a ela para reafirmar, expressamente, a irrelevância da lei que vigorava no momento da data da celebração do contrato de mútuo:

RE N. 497.850-SP, DJU 18.05.2007, RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE - EMENTA: I. Bem de família: impenhorabilidade legal (L. 8.009/90): aplicação à dívida constituída antes da vigência da L. 8.009/90, sem ofensa de direito adquirido ou ato jurídico perfeito: precedente (RE 136.753, 13.02.97, Pertence, DJ 25.04.97). 1. A norma que torna impenhorável determinado bem desconstitui a penhora anteriormente efetivada, sem ofensa de ato jurídico perfeito ou de direito adquirido do credor. 2. Se desconstitui as penhoras efetivadas antes da sua vigência, com maior razão a lei que institui nova hipótese de impenhorabilidade incide sobre a que se pretenda realizar sob a sua vigência, independentemente da data do negócio subjacente ao crédito exequendo. II. Recurso extraordinário: descabimento: a caracterização ou não do imóvel como bem de família é questão de fato, decidida pelas instâncias de mérito à luz da prova, a cujo reexame não se presta o RE: incidência da Súmula 279. III. Alegações improcedentes de negativa de prestação jurisdicional e inexistência de motivação do acórdão recorrido.) 

4. A relevância da lei do momento do processo 

Esse entendimento sempre me pareceu o adequado (o texto do tópico 2, acima, foi essencialmente extraído do Curso que escrevo com Luiz R. Wambier – vol. 2, item 2.3.3.3). Portanto, concordo com a crítica, externada pelo Prof. M. Teixeira de Sousa, à solução de direito intertemporal adotada pela recente jurisprudência portuguesa relativamente à alteração legislativa do rol de títulos executivos (aliás, no Curso, adotamos expressamente o mesmo entendimento também no que tange aos títulos executivos: “as normas que instituem títulos executivos são de direito processual – regulam requisito para a instauração da execução, fixam condição da ação executiva. E, para o direito processual, vale a lei vigente no momento da prática do ato processual. Assim, se a ação de execução vai ser proposta agora, o relevante é que, agora, aqueles atos sejam título executivo, pouco importando que antes não fossem. Do mesmo modo, caso a lei elimine alguma hipótese de título executivo, todos os atos que nela se enquadravam, mesmo os formados antes da alteração legislativa, não possibilitarão mais pedido de execução” – vol. 2, item 4.6, c).

5. A preocupação com as expectativas e planejamentos pré-processuais

Mas não deixo de entender – e reputar ponderosos – os fundamentos da orientação oposta. Na essência, quem afirma a aplicabilidade da lei vigente na época da celebração do ato (que já não é agora mais titulo executivo extrajudicial) ou da concessão do mútuo (por cujo inadimplemento respondiam bens que agora não mais respondem) está preocupado com a surpresa que a alteração legislativa impõe ao jurisdicionado que pautou condutas pré-processuais suas à luz das regras de processo que então vigoravam. Isso está claro, por exemplo, na ementa do julgado que é objeto da “Jurisprudência (58)” do blog do IPPC (“o trabalhador formou a legítima expectativa fundada na lei então vigente...”). 

Aqui se poderia cogitar da ideia (e isso não está afirmado nas decisões em pauta; é uma elucubração minha) de que, embora certos institutos e mecanismos tenham natureza processual (o que faria com que se lhes aplicasse a norma vigente no momento do processo), as partes pautam suas condutas no âmbito material à luz da disciplina processual que, naquele momento, é aplicável àqueles institutos e mecanismos processuais.

Outro campo em que isso pode ter muita relevância é o probatório (e aqui me refiro às normas sobre provas propriamente ditas – e não às normas sobre forma dos atos jurídicos, essas sim claramente de direito material). Imagine-se que as partes dispensam a instrumentalização escrita do contrato, por conta da relativa facilidade da prova testemunhal em um eventual litígio futuro, e depois são surpreendidas por lei nova que proíbe prova meramente oral para comprovação de fato constitutivo de crédito acima de determinado valor (que o crédito entre elas contratado excede). Essa foi sempre uma das razões que levou a doutrina italiana a muito discutir a natureza das regras sobre prova, se materiais ou processuais.

6. Conclusões provisórias
6.1. Impossibilidade de inversão dos parâmetros tradicionais

Mas não parece que a solução esteja em “materializar” as normas que tratam desses “pontos de estrangulamento” (expressão usada por Cândido Dinamarco para referir-se a institutos processuais que estão próximos à fronteira com o direito material), para assim alterar-lhes os parâmetros de direito intertemporal.

Tampouco parece razoável pura e simplesmente alterar a norma geral de que se aplicam aos atos e direitos processuais as normas vigentes no momento do processo (e, em muitos casos, vigentes no momento da prática do específico ato processual).

No mais das vezes, a consideração da regra processual vigente no momento da prática dos atos materiais não gera senão simples expectativa. Não há então direito adquirido ou ato perfeito que justifique a manutenção da incidência, no subsequente processo, da regra processual já revogada. Em outras palavras, o credor não pode pura e simplesmente fiar-se nas regras atuais de processo: se ele quer assegurar-se da melhor possibilidade de comprovação futura do contrato, que o celebre por escrito; se ele pretende futuramente encontrar patrimônio penhorável, que obtenha garantias reais – e assim por diante.

6.2. Boa-fé
Em muitos casos, não há sequer o mínimo cabimento de o jurisdicionado pretender invocar em seu favor uma expectativa gerada pela lei processual então vigente. Por exemplo, violaria inclusive a boa-fé o devedor afirmar que pautou sua conduta na perspectiva de que o documento, por ele formalizado em conjunto com o credor, não era e continuaria não sendo título executivo extrajudicial – de modo que agora ele estaria sendo surpreendido pela atribuição de força executiva àquele documento...

O exemplo pode parecer bizarro, mas situação similar – ainda que sem a apresentação caricata aqui feita – já foi posta em discussão na jurisprudência brasileira. Antes da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), a cláusula arbitral (cláusula compromissória) não ensejava execução específica. Se uma das partes se recusasse a ir à arbitragem, a outra não teria como fazer valer a convenção arbitral. Tal eficácia plena era apenas atribuída ao compromisso arbitral (celebrado, portanto, à luz de um litígio já estabelecido). A Lei 9.307 alterou esse panorama: se a cláusula arbitral é “cheia”, já contendo diretamente ou mediante remissão todos os elementos para instaurar a arbitragem, vai-se diretamente para a arbitragem, ainda que contra a vontade de uma das partes; se a cláusula é “vazia” e uma das partes recusa-se a completá-la em compromisso arbitral, pode-se promover ação judicial destinada a suprir esse ato. Houve quem pretendesse afirmar que a cláusula arbitral veiculada em contratos celebrados antes da Lei 9.307 não seria apta a produzir esses efeitos (processuais) que a lei passou a assegurar. Nessa ordem de ideias, a parte teria à época celebrado uma convenção arbitral “inatendível” (i.e., que ela poderia ignorar pura e simplesmente), uma vez que o dever dali extraível era então carente de tutela específica – e a mudança da lei, instauradora dessa tutela, representar-lhe-ia uma surpresa... O Superior Tribunal de Justiça rejeitou essa (não de todo explicitada) tese: a Lei 9.307 aplica-se às cláusulas arbitrais celebradas antes de sua vigência, pois “as normas processuais têm aplicação imediata” (REsp 934771; REsp 933.371).

6.3. Excepcional ponderação de valores
Mas é impossível descartar situações em que a alteração da lei processual gere grave sacrifício a jurisdicionado que, atuando diligentemente e de boa-fé, considerou o panorama normativo vigente no momento da prática do ato jurídico anterior ao processo. O caso do credor que aceita celebrar transação tomando em conta inclusive a circunstância de que o ato será instrumentalizado em documento que constitui título executivo extrajudicial talvez seja um dos exemplos mais apropriados. O credor nesse momento adota todas as cautelas de que poderia cercar-se. Conta com a lei processual para fazer valer seus direitos na hipótese de futuro inadimplemento (e não para subtrair-se do cumprimento de seus deveres) – e é surpreendido pela lei que retira do rol de títulos aquele ato-documento.

Nesses casos, põe-se relevante conflito entre princípios fundamentais (de um lado, a legalidade e a segurança formal expressadas na taxatividade legal dos títulos executivos, o devido processo executivo...; do outro lado, a boa-fé, a vedação à surpresa...). Parece-me que a solução dependerá da ponderação de valores no caso concreto, cabendo inclusive a investigação do quanto o panorama processual então vigente foi de fato relevante como parâmetro de conduta para as partes.

Eduardo Talamini
(Professor da Universidade Federal do Paraná (Curitiba))