1. A orientação jurisprudencial recente em
Portugal sobre títulos executivos e direito intertemporal
O Blog do
IPPC divulgou recentes decisões do judiciário português
no sentido de considerar aplicável, relativamente ao elenco de títulos
executivos extrajudiciais, a lei vigente na data do aperfeiçoamento do
documento (que naquela oportunidade era, mas no momento do processo deixou de
ser, título executivo). Tratam do tema, pelo menos, as decisões objeto da
“Jurisprudência constitucional (18)”, da “Jurisprudência (58)”, além da
“Jurisprudência (80)”, divulgada hoje (no Brasil, ainda estamos no dia 15).
2. A jurisprudência brasileira sobre
impenhorabilidade e direito intertemporal
No
Brasil, questão análoga foi discutida a partir do início dos anos 1990 – e o
Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça adotaram orientação
oposta à encampada nas decisões portuguesas acima referidas (e, portanto, em
consonância com a crítica formulada pelo Prof. M. Teixeira de Sousa no Blog do IPPC).
A Lei
8.009/1990 consagrou a impenhorabilidade do imóvel residencial familiar único
ou de menor valor do devedor.
Estabeleceu-se
controvérsia sobre a constitucionalidade da expressa determinação do
cancelamento das penhoras preexistentes (o que na lei se chamou, de modo
atécnico, de “cancelamento das execuções”).
Alguns
sustentaram que isso feriria ato perfeito e direito adquirido do credor (CF,
art. 5.º, XXXVI). Prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal (RE 136.753,
13.02.97) e no Superior Tribunal de Justiça (Súmula 205 do STJ), o entendimento
de que inexistiria ofensa àquela garantia constitucional, por que: (I) a
penhora não constitui direito em favor do credor: é apenas a primeira etapa do
ato complexo da expropriação; (II) ato perfeito só se teria depois de encerrada
a expropriação do bem penhorado: a lei, quando reputa um bem impenhorável,
proíbe, em verdade, sua expropriação em processo executivo, de modo que,
enquanto não ocorrer tal evento, a penhora é cancelável sem qualquer afronta
constitucional.
Essa
orientação pressupõe – parece-me, corretamente – a adoção da tese do caráter
processual das regras sobre responsabilidade patrimonial (ainda que isso não
esteja afirmado nos julgados sobre o tema). Afinal, se fossem normas de direito
material, valeriam as do momento da constituição do débito, de forma que, na
execução das dívidas contraídas antes da Lei 8.009/1990, aqueles bens
permaneceriam penhoráveis.
3. A expressa afirmação, pelo STF, da
irrelevância da lei da época do negócio jurídico anterior ao processo
Depois de
já pacificada a questão, o STF tornou a ela para reafirmar, expressamente, a
irrelevância da lei que vigorava no momento da data da celebração do contrato
de mútuo:
RE N. 497.850-SP, DJU 18.05.2007, RELATOR:
MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE - EMENTA: I. Bem de família: impenhorabilidade legal
(L. 8.009/90): aplicação à dívida constituída antes da vigência da L. 8.009/90,
sem ofensa de direito adquirido ou ato jurídico perfeito: precedente (RE
136.753, 13.02.97, Pertence, DJ 25.04.97). 1. A norma que torna impenhorável
determinado bem desconstitui a penhora anteriormente efetivada, sem ofensa de
ato jurídico perfeito ou de direito adquirido do credor. 2. Se desconstitui as
penhoras efetivadas antes da sua vigência, com maior razão a lei que institui
nova hipótese de impenhorabilidade incide sobre a que se pretenda realizar sob
a sua vigência, independentemente da data do negócio subjacente ao crédito exequendo.
II. Recurso extraordinário: descabimento: a caracterização ou não do imóvel
como bem de família é questão de fato, decidida pelas instâncias de mérito à
luz da prova, a cujo reexame não se presta o RE: incidência da Súmula 279. III.
Alegações improcedentes de negativa de prestação jurisdicional e inexistência
de motivação do acórdão recorrido.)
4. A relevância da lei do momento do processo
Esse
entendimento sempre me pareceu o adequado (o texto do tópico 2, acima, foi
essencialmente extraído do Curso que escrevo com Luiz R. Wambier – vol. 2, item
2.3.3.3). Portanto, concordo com a crítica, externada pelo Prof. M. Teixeira de
Sousa, à solução de direito intertemporal adotada pela recente jurisprudência
portuguesa relativamente à alteração legislativa do rol de títulos executivos
(aliás, no Curso, adotamos expressamente o mesmo entendimento também no que
tange aos títulos executivos: “as normas
que instituem títulos executivos são de direito processual – regulam requisito
para a instauração da execução, fixam condição da ação executiva. E, para o
direito processual, vale a lei vigente no momento da prática do ato processual.
Assim, se a ação de execução vai ser proposta agora, o relevante é que, agora,
aqueles atos sejam título executivo, pouco importando que antes não fossem. Do
mesmo modo, caso a lei elimine alguma hipótese de título executivo, todos os
atos que nela se enquadravam, mesmo os formados antes da alteração legislativa,
não possibilitarão mais pedido de execução” – vol. 2, item 4.6, c).
5. A preocupação com as expectativas e
planejamentos pré-processuais
Mas não
deixo de entender – e reputar ponderosos – os fundamentos da orientação oposta.
Na essência, quem afirma a aplicabilidade da lei vigente na época da celebração
do ato (que já não é agora mais titulo executivo extrajudicial) ou da concessão
do mútuo (por cujo inadimplemento respondiam bens que agora não mais respondem)
está preocupado com a surpresa que a alteração legislativa impõe ao
jurisdicionado que pautou condutas pré-processuais suas à luz das regras de
processo que então vigoravam. Isso está claro, por exemplo, na ementa do
julgado que é objeto da “Jurisprudência (58)” do blog do IPPC (“o trabalhador formou a legítima expectativa
fundada na lei então vigente...”).
Aqui se
poderia cogitar da ideia (e isso não está afirmado nas decisões em pauta; é uma
elucubração minha) de que, embora certos institutos e mecanismos tenham
natureza processual (o que faria com que se lhes aplicasse a norma vigente no
momento do processo), as partes pautam suas condutas no âmbito material à luz
da disciplina processual que, naquele momento, é aplicável àqueles institutos e
mecanismos processuais.
Outro
campo em que isso pode ter muita relevância é o probatório (e aqui me refiro às
normas sobre provas propriamente ditas – e não às normas sobre forma dos atos
jurídicos, essas sim claramente de direito material). Imagine-se que as partes
dispensam a instrumentalização escrita do contrato, por conta da relativa
facilidade da prova testemunhal em um eventual litígio futuro, e depois são
surpreendidas por lei nova que proíbe prova meramente oral para comprovação de
fato constitutivo de crédito acima de determinado valor (que o crédito entre
elas contratado excede). Essa foi sempre uma das razões que levou a doutrina
italiana a muito discutir a natureza das regras sobre prova, se materiais ou
processuais.
6. Conclusões provisórias
6.1. Impossibilidade de inversão dos
parâmetros tradicionais
Mas não
parece que a solução esteja em “materializar” as normas que tratam desses
“pontos de estrangulamento” (expressão usada por Cândido Dinamarco para
referir-se a institutos processuais que estão próximos à fronteira com o
direito material), para assim alterar-lhes os parâmetros de direito
intertemporal.
Tampouco
parece razoável pura e simplesmente alterar a norma geral de que se aplicam aos
atos e direitos processuais as normas vigentes no momento do processo (e, em
muitos casos, vigentes no momento da prática do específico ato processual).
No mais
das vezes, a consideração da regra processual vigente no momento da prática dos
atos materiais não gera senão simples expectativa. Não há então direito
adquirido ou ato perfeito que justifique a manutenção da incidência, no
subsequente processo, da regra processual já revogada. Em outras palavras, o
credor não pode pura e simplesmente fiar-se nas regras atuais de processo: se
ele quer assegurar-se da melhor possibilidade de comprovação futura do
contrato, que o celebre por escrito; se ele pretende futuramente encontrar
patrimônio penhorável, que obtenha garantias reais – e assim por diante.
6.2. Boa-fé
Em muitos
casos, não há sequer o mínimo cabimento de o jurisdicionado pretender invocar
em seu favor uma expectativa gerada pela lei processual então vigente. Por
exemplo, violaria inclusive a boa-fé o devedor afirmar que pautou sua conduta
na perspectiva de que o documento, por ele formalizado em conjunto com o
credor, não era e continuaria não sendo título executivo extrajudicial – de
modo que agora ele estaria sendo surpreendido pela atribuição de força
executiva àquele documento...
O exemplo
pode parecer bizarro, mas situação similar – ainda que sem a apresentação
caricata aqui feita – já foi posta em discussão na jurisprudência brasileira.
Antes da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), a cláusula arbitral (cláusula
compromissória) não ensejava execução específica. Se uma das partes se
recusasse a ir à arbitragem, a outra não teria como fazer valer a convenção
arbitral. Tal eficácia plena era apenas atribuída ao compromisso arbitral
(celebrado, portanto, à luz de um litígio já estabelecido). A Lei 9.307 alterou
esse panorama: se a cláusula arbitral é “cheia”, já contendo diretamente ou
mediante remissão todos os elementos para instaurar a arbitragem, vai-se
diretamente para a arbitragem, ainda que contra a vontade de uma das partes; se
a cláusula é “vazia” e uma das partes recusa-se a completá-la em compromisso
arbitral, pode-se promover ação judicial destinada a suprir esse ato. Houve
quem pretendesse afirmar que a cláusula arbitral veiculada em contratos
celebrados antes da Lei 9.307 não seria apta a produzir esses efeitos
(processuais) que a lei passou a assegurar. Nessa ordem de ideias, a parte
teria à época celebrado uma convenção arbitral “inatendível” (i.e., que ela
poderia ignorar pura e simplesmente), uma vez que o dever dali extraível era
então carente de tutela específica – e a mudança da lei, instauradora dessa
tutela, representar-lhe-ia uma surpresa... O Superior Tribunal de Justiça
rejeitou essa (não de todo explicitada) tese: a Lei 9.307 aplica-se às cláusulas
arbitrais celebradas antes de sua vigência, pois “as normas processuais têm
aplicação imediata” (REsp 934771; REsp 933.371).
6.3. Excepcional ponderação de valores
Mas é
impossível descartar situações em que a alteração da lei processual gere grave
sacrifício a jurisdicionado que, atuando diligentemente e de boa-fé, considerou
o panorama normativo vigente no momento da prática do ato jurídico anterior ao
processo. O caso do credor que aceita celebrar transação tomando em conta
inclusive a circunstância de que o ato será instrumentalizado em documento que
constitui título executivo extrajudicial talvez seja um dos exemplos mais
apropriados. O credor nesse momento adota todas as cautelas de que poderia
cercar-se. Conta com a lei processual para fazer valer seus direitos na
hipótese de futuro inadimplemento (e não para subtrair-se do cumprimento de
seus deveres) – e é surpreendido pela lei que retira do rol de títulos aquele
ato-documento.
Nesses
casos, põe-se relevante conflito entre princípios fundamentais (de um lado, a
legalidade e a segurança formal expressadas na taxatividade legal dos títulos
executivos, o devido processo executivo...; do outro lado, a boa-fé, a vedação
à surpresa...). Parece-me que a solução dependerá da ponderação de valores no
caso concreto, cabendo inclusive a investigação do quanto o panorama processual
então vigente foi de fato relevante como parâmetro de conduta para as partes.
Eduardo
Talamini
(Professor
da Universidade Federal do Paraná (Curitiba))