"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/02/2015

Sanação da ilegitimidade singular por acordo das partes



1. A circunstância de a ZPO alemã de 1877 conter uma regulamentação muito esparsa sobre a modificação subjectiva da instância rapidamente levou a jurisprudência, confrontada com essa insuficiência legal, a admitir uma modificação convencionada das partes da causa, seja na modalidade de substituição de uma parte por outra parte (Parteiwechsel), seja na modalidade de intervenção de uma parte num processo pendente (Parteibeitritt, correspondente, na terminologia portuguesa, à intervenção de terceiros).

O panorama português é, em alguma medida, algo distinto. Não existe na legislação processual uma regulamentação específica sobre a substituição de uma parte por outra parte (isto é, sobre a Parteiwechsel) fora dos casos de habilitação (cf. art. 351.º a 357.º CPC), mas há uma regulamentação exaustiva sobre a intervenção de terceiros num processo pendente (ou seja, sobre a Parteibeitritt; cf. art. 311.º a 350.º CPC).

Esta regulamentação portuguesa também pode ser considerada exaustiva no sentido de que as modalidades de intervenção de terceiros nela admitidas esgotam todas as possibilidades teoricamente admissíveis: intervenção, espontânea ou provocada, de uma parte principal que se associa ou que se opõe a uma parte inicial e intervenção, também espontânea ou provocada, de uma parte acessória. Uma das modalidades da intervenção de terceiros – em concreto, a intervenção principal – pode ser utilizada para sanar a ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário (cf. art. 311.º e 316.º, n.º 1, CPC), mesmo depois do proferimento da decisão de absolvição da instância com base nessa ilegitimidade (cf. art. 261.º CPC).

Comum a ambas as regulamentações é a ausência de qualquer regime sobre a sanação da ilegitimidade singular através da substituição de uma parte (ilegítima) por uma outra parte (legítima). O regime processual civil português determina que, perante a excepção dilatória de ilegitimidade singular, o réu deve ser absolvido da instância (cf. art. 577.º, al. e), 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. d), CPC), não se admitindo a sanação desta excepção dilatória.

2. Perante a referida insuficiência de regulamentação, a jurisprudência alemã cedo aceitou a substituição de uma parte ilegítima por uma parte legítima quando houvesse acordo de todas as partes: parte inicial, parte interveniente e contraparte. Assim nasceu – e se manteve até hoje – a chamada gewillkürte Parteiwechsel ou Parteiänderung, destinada a permitir que, perante a verificação de que alguma das partes não é legítima, se possa proceder à sua substituição pela parte legítima.

Esta substituição convencionada de uma parte por outra parte é admitida nos casos em que, apesar da intervenção da nova parte, o objecto do processo permanece o mesmo e em que, essa nova parte, já antes da sua intervenção tinha tido uma qualquer intervenção na acção (cf. Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht, 17.ª ed. (2010), 208). Em concreto, aquela substituição é admitida, por exemplo, quando uma acção é proposta por um membro de uma pessoa colectiva (ou de uma sociedade) quando o devia ter sido pela própria pessoa colectiva (ou pela sociedade), quando uma acção é instaurada por um representante em nome do representado e se verifica que o representante é que deve ser a parte demandante ou ainda quando uma acção é proposta contra um município, alegado proprietário de um hospital, quando devia ter sido instaurada contra o próprio hospital.

Pode afirmar-se que este regime não é transponível para a ordem jurídica portuguesa, dado que, depois da citação do réu, o chamado princípio da estabilidade da instância apenas permite que aquela se modifique nos casos previstos na lei (art. 260.º CPC). Daqui poderia retirar-se que, após a citação do réu, a instância só se pode alterar nos casos e dentro dos limites estabelecidos na lei. Parece claro, todavia, que se pode concluir que o sentido daquele princípio é o de impor as condições em que, segundo a lei, pode ocorrer a modificação da instância, não o de excluir que se possa verificar uma modificação por acordo das partes. Assim entendido, aquele princípio não obsta à sanação, depois da citação do réu, de uma ilegitimidade singular através de uma substituição convencionada da parte ilegítima pela parte legítima.

É claro que há um aspecto a considerar: a necessidade do acordo de todos os interessados – portanto, também da contraparte – exige que os interesses do réu numa imediata extinção da instância não prevaleçam sobre os interesses em evitar a propositura de uma outra acção com o mesmo objecto, mas agora com a parte legítima como autora ou como demandada. O réu tem de interiorizar que é do seu interesse manter a acção que se encontra pendente, em vez de ser demandado duas vezes em acções com o mesmo objecto.

3. A substituição de uma parte por uma outra parte é vista pela doutrina alemã como implicando uma desistência da instância pelo autor inicial que é substituído ou por aquele autor em relação ao réu que é substituído. Embora o regime português não seja o mesmo que o regime alemão, aquela solução implicaria, em termos de direito português, a aplicação do disposto no art. 286.º, n.º 1, CPC: qualquer substituição de qualquer parte exige o assentimento do réu inicial, se for requerida (pelo autor inicial ou pelo autor interveniente) depois da apresentação da contestação por aquele demandado.

Todavia, no direito português, há que considerar o já referido princípio da estabilidade da instância (cf. art. 260.º CPC), pelo que, depois da citação do réu (e não depois da apresentação da contestação), não pode haver nenhuma substituição de uma parte inicial sem o acordo do demandado. A este propósito tem interesse voltar à realidade alemã (porque extremamente elucidativa da conduta que se considera que é exigível às partes), referindo que a doutrina e a jurisprudência consideram que a recusa de consentimento do réu é irrelevante se a mesma puder ser considerada abusiva.

Embora a jurisprudência e a doutrina alemãs também aceitem a substituição convencionada da parte na 2.ª instância (nomeadamente, quando os factos nela alegados imponham essa substituição), a diferente fisionomia dos recursos no processo civil português parece constituir um obstáculo a essa substituição. Isto significa que, no direito português, a possível valia prática da sanação da ilegitimidade singular por acordo das partes só pode ser aferida quanto à 1.ª instância.

O poder de gestão processual (cf. art. 6.º, n.º 1, CPC) e o correspondente instrumento – que é a faculdade de adequação formal (cf. art. 547.º CPC) – podem ser utilizados para implementar no processo qualquer adaptação que seja imposta pela substituição da parte inicial. Não existe, pois, nenhum obstáculo intransponível à aceitação da sanação da ilegitimidade singular por acordo das partes no processo civil português.

4. Depois da obra de Kisch, Parteiänderung im Zivilprozess (1912), a natureza jurídica da gewillkürte Parteiänderung tornou-se bastante discutida na doutrina alemã (cf. Nagel, Der nicht (ausdrücklich) geregelte gewillkürte Parteiwechsel im Zivilprozess (2005), 29 ss. e 127 ss.), sendo hoje maioritária, na sequência da obra de de Boor, Zur Lehre vom Parteiwechsel und vom Parteibegriff (1941), a orientação segundo a qual a substituição convencionada de uma parte constitui um instituto próprio e autónomo (cf. Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht, 17.ª ed. (2010), 209; MünchKommZPO/Becker-Eberhard (2013), § 263 67). Na jurisprudência é ainda prevalecente a orientação segundo a qual a gewillkürte Parteiänderung deve ser tratada, embora com adaptações, como uma modificação da acção (Klageänderung), embora isso não se traduza em resultados muito diferentes daqueles que são propostos pela doutrina maioritária (cf. MünchKommZPO/Becker-Eberhard (2013), § 263 67).

5. Uma observação final. Ao contrário do que se poderia pensar, o reforço do papel do juiz consagrado no nCPC não significa uma diminuição do espaço para a actuação concertada das partes em processo. O processo civil é um instrumento de que o Estado se serve para a administração da justiça, pelo que não é compreensível um juiz indiferente ao resultado do processo. Mas o processo civil não deixa de ser um processo no qual as partes têm uma ampla autonomia, pelo que as mesmas, isoladamente ou em conjunto, possuem amplos poderes de conformação do processo em tudo o que não contenda com interesses de terceiros ou com os poderes do juiz. Aliás, é da conjugação da actuação consensual das partes com o exercício pelo juiz dos seus poderes que se pode esperar um impulso decisivo para o aggiornamento da prática processual civil portuguesa.

MTS