1. A
circunstância de a ZPO alemã de 1877 conter uma regulamentação muito esparsa
sobre a modificação subjectiva da instância rapidamente levou a jurisprudência,
confrontada com essa insuficiência legal, a admitir uma modificação
convencionada das partes da causa, seja na modalidade de substituição de uma
parte por outra parte (Parteiwechsel), seja na modalidade de intervenção de uma parte
num processo pendente (Parteibeitritt, correspondente, na terminologia portuguesa, à
intervenção de terceiros).
O panorama
português é, em alguma medida, algo distinto. Não existe na legislação
processual uma regulamentação específica sobre a substituição de uma parte por
outra parte (isto é, sobre a Parteiwechsel) fora dos casos de habilitação (cf. art. 351.º a
357.º CPC), mas há uma regulamentação exaustiva sobre a intervenção de
terceiros num processo pendente (ou seja, sobre a Parteibeitritt; cf. art. 311.º a 350.º CPC).
Esta
regulamentação portuguesa também pode ser considerada exaustiva no sentido de
que as modalidades de intervenção de terceiros nela admitidas esgotam todas as
possibilidades teoricamente admissíveis: intervenção, espontânea ou provocada,
de uma parte principal que se associa ou que se opõe a uma parte inicial e
intervenção, também espontânea ou provocada, de uma parte acessória. Uma das
modalidades da intervenção de terceiros – em concreto, a intervenção principal
– pode ser utilizada para sanar a ilegitimidade por preterição de
litisconsórcio necessário (cf. art. 311.º e 316.º, n.º 1, CPC), mesmo depois do
proferimento da decisão de absolvição da instância com base nessa ilegitimidade
(cf. art. 261.º CPC).
Comum a
ambas as regulamentações é a ausência de qualquer regime sobre a sanação da
ilegitimidade singular através da substituição de uma parte (ilegítima) por uma
outra parte (legítima). O regime processual civil português determina que,
perante a excepção dilatória de ilegitimidade singular, o réu deve ser
absolvido da instância (cf. art. 577.º, al. e), 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. d), CPC),
não se admitindo a sanação desta excepção dilatória.
2. Perante
a referida insuficiência de regulamentação, a jurisprudência alemã cedo aceitou
a substituição de uma parte ilegítima por uma parte legítima quando houvesse
acordo de todas as partes: parte inicial, parte interveniente e contraparte. Assim
nasceu – e se manteve até hoje – a chamada gewillkürte
Parteiwechsel ou Parteiänderung,
destinada a permitir que, perante a verificação de que alguma das partes não é legítima,
se possa proceder à sua substituição pela parte legítima.
Esta
substituição convencionada de uma parte por outra parte é admitida nos casos em
que, apesar da intervenção da nova parte, o objecto do processo permanece o
mesmo e em que, essa nova parte, já antes da sua intervenção tinha tido uma
qualquer intervenção na acção (cf. Rosenberg/Schwab/Gottwald,
Zivilprozessrecht, 17.ª ed. (2010), 208). Em concreto, aquela substituição é
admitida, por exemplo, quando uma acção é proposta por um membro de uma pessoa
colectiva (ou de uma sociedade) quando o devia ter sido pela própria pessoa
colectiva (ou pela sociedade), quando uma acção é instaurada por um
representante em nome do representado e se verifica que o representante é que
deve ser a parte demandante ou ainda quando uma acção é proposta contra um
município, alegado proprietário de um hospital, quando devia ter sido
instaurada contra o próprio hospital.
Pode
afirmar-se que este regime não é transponível para a ordem jurídica portuguesa,
dado que, depois da citação do réu, o chamado princípio da estabilidade da
instância apenas permite que aquela se modifique nos casos previstos na lei
(art. 260.º CPC). Daqui poderia retirar-se que, após a citação do réu, a
instância só se pode alterar nos casos e dentro dos limites estabelecidos na
lei. Parece claro, todavia, que se pode concluir que o sentido daquele
princípio é o de impor as condições em que, segundo a lei, pode ocorrer a
modificação da instância, não o de excluir que se possa verificar uma
modificação por acordo das partes. Assim entendido, aquele princípio não obsta
à sanação, depois da citação do réu, de uma ilegitimidade singular através de
uma substituição convencionada da parte ilegítima pela parte legítima.
É claro
que há um aspecto a considerar: a necessidade do acordo de todos os
interessados – portanto, também da contraparte – exige que os interesses do réu
numa imediata extinção da instância não prevaleçam sobre os interesses em
evitar a propositura de uma outra acção com o mesmo objecto, mas agora com a parte
legítima como autora ou como demandada. O réu tem de interiorizar que é do seu
interesse manter a acção que se encontra pendente, em vez de ser demandado duas
vezes em acções com o mesmo objecto.
3. A
substituição de uma parte por uma outra parte é vista pela doutrina alemã como
implicando uma desistência da instância pelo autor inicial que é substituído ou
por aquele autor em relação ao réu que é substituído. Embora o regime português
não seja o mesmo que o regime alemão, aquela solução implicaria, em termos de
direito português, a aplicação do disposto no art. 286.º, n.º 1, CPC: qualquer
substituição de qualquer parte exige o assentimento do réu inicial, se for
requerida (pelo autor inicial ou pelo autor interveniente) depois da
apresentação da contestação por aquele demandado.
Todavia, no
direito português, há que considerar o já referido princípio da estabilidade da
instância (cf. art. 260.º CPC), pelo que, depois da citação do réu (e não
depois da apresentação da contestação), não pode haver nenhuma substituição de
uma parte inicial sem o acordo do demandado. A este propósito tem interesse voltar
à realidade alemã (porque extremamente elucidativa da conduta que se considera
que é exigível às partes), referindo que a doutrina e a jurisprudência consideram
que a recusa de consentimento do réu é irrelevante se a mesma puder ser
considerada abusiva.
Embora a
jurisprudência e a doutrina alemãs também aceitem a substituição convencionada da
parte na 2.ª instância (nomeadamente, quando os factos nela alegados imponham
essa substituição), a diferente fisionomia dos recursos no processo civil
português parece constituir um obstáculo a essa substituição. Isto significa que,
no direito português, a possível valia prática da sanação da ilegitimidade
singular por acordo das partes só pode ser aferida quanto à 1.ª instância.
O poder de
gestão processual (cf. art. 6.º, n.º 1, CPC) e o correspondente instrumento –
que é a faculdade de adequação formal (cf. art. 547.º CPC) – podem ser utilizados
para implementar no processo qualquer adaptação que seja imposta pela
substituição da parte inicial. Não
existe, pois, nenhum obstáculo intransponível à aceitação da sanação da
ilegitimidade singular por acordo das partes no processo civil português.
4. Depois
da obra de Kisch, Parteiänderung im
Zivilprozess (1912), a natureza jurídica da
gewillkürte
Parteiänderung tornou-se bastante discutida
na doutrina alemã (cf. Nagel, Der
nicht (ausdrücklich) geregelte gewillkürte Parteiwechsel im Zivilprozess (2005),
29 ss. e 127 ss.), sendo hoje maioritária, na sequência da obra de de Boor, Zur Lehre vom Parteiwechsel
und vom Parteibegriff (1941), a
orientação segundo a qual a substituição convencionada de uma parte constitui
um instituto próprio e autónomo (cf. Rosenberg/Schwab/Gottwald,
Zivilprozessrecht, 17.ª ed. (2010), 209; MünchKommZPO/Becker-Eberhard (2013), § 263 67). Na jurisprudência é ainda prevalecente
a orientação segundo a qual a gewillkürte
Parteiänderung deve ser tratada, embora com adaptações, como uma
modificação da acção (Klageänderung),
embora isso não se traduza em resultados muito diferentes daqueles que são
propostos pela doutrina maioritária (cf. MünchKommZPO/Becker-Eberhard (2013), § 263 67).
5. Uma
observação final. Ao contrário do que se poderia pensar, o reforço do papel do
juiz consagrado no nCPC não significa uma diminuição do espaço para a actuação
concertada das partes em processo. O processo civil é um instrumento de que o
Estado se serve para a administração da justiça, pelo que não é compreensível
um juiz indiferente ao resultado do processo. Mas o processo civil não deixa de
ser um processo no qual as partes têm uma ampla autonomia, pelo que as mesmas,
isoladamente ou em conjunto, possuem amplos poderes de conformação do processo
em tudo o que não contenda com interesses de terceiros ou com os poderes do juiz. Aliás,
é da conjugação da actuação consensual das partes com o exercício pelo juiz dos seus poderes que se
pode esperar um impulso decisivo para o aggiornamento da prática processual civil portuguesa.
MTS