"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/02/2015

Jurisprudência (75)


Deserção da instância; princípio da cooperação do tribunal; dever de prevenção

1. O sumário de RP 2/2/2015 (4178/12.2TBGDM.P1) é o seguinte:

"I.- O regime da Lei 41/2013, de 26/06, além de ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, concedido à parte para impulsionar os autos, sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou também a figura da interrupção da instância, ou seja, a instância fica deserta logo que o processo esteja sem impulso processual da parte durante mais de seis meses sem passar pelo patamar intermédio da interrupção da instância.

II - Por assim ser, na actual lei adjectiva a deserção da instância não é automática pelo simples decurso do prazo, como acontecia na lei anterior, pois que, para além da falta de impulso processual há mais de seis meses é também necessário que essa falta se fique a dever à negligência das partes em promover o seu andamento (artigo 281.º, n.º 1, do CPCivil).

III - E, não sendo automática a referida a deserção, o tribunal, antes de proferir o despacho a que se refere o n.º 4 do artigo 281.º do CPCivil, deve ouvir as partes por forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é, efectivamente, imputável a comportamento negligente das partes.

IV - Durante o primeiro ano de vigência do novo CPCivil o legislador previu, no artigo 3.º da Lei 41/2013, face à natureza profunda das alterações que se verificaram na lei processual, a intervenção oficiosa do juiz com uma função correctiva quer quanto à aplicação das normas transitórias, quer quanto aos possíveis erros sobre o conteúdo do regime processual aplicável que resultassem evidentes de leitura dos articulados, requerimentos ou demais peças processuais.

V - Daí que, numa situação de suspensão da instância por falecimento de uma das partes se deva fazer uma interpretação extensiva por argumento de identidade de razão daquela norma e, concatenando-a com o com o principio da cooperação (artigo 7.º do CPCivil), se aplique igualmente a estes casos, tendo aqui o juiz, não uma função correctiva, mas de cooperação com as partes, alertando-as da instituição de um regime mais severo para a deserção da instância, antes de proferir o despacho a julgá-la extinta, por terem decorrido mais de seis meses sobre a suspensão da instância sem impulso dos autos imputável às partes."

2. Cabe salientar a exemplar aplicação do princípio da cooperação do tribunal com as partes feita pela RP (cf. art. 7.º, n.º 1, CPC). Interpretando extensivamente o disposto no art. 3.º L 41/2013, de 26/6 -- que, em certos casos, impõe, no primeiro ano de vigência do nCPC, um dever de correcção e de prevenção do juiz do processo --, entendeu a RP que, antes de dar (por despacho) a instância como deserta (cf. art. 281.º, n.º 4, CPC), há que alertar as partes para a extinção da instância. Ou seja: a RP decidiu que, numa hipótese não prevista no art. 3.º L 41/2013, também há que observar o dever de prevenção.

A RP compreendeu perfeitamente o espírito (mais do que a letra) do dever de cooperação do tribunal imposto pelo art. 3.º L 41/2013 e decidiu bem. Embora não conste da fundamentação do acórdão, importa salientar que, como, aliás, é referido pelo recorrente, uma solução próxima daquela que nele veio a ser adoptada é preconizada por Ramos de Faria/A. L. Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil I (2013), 250.

3. A RP entende que o dever de prevenção para o risco de deserção da instância "apenas valerá, em princípio, para o primeiro ano de vigência da lei" (isto é, do nCPC). Apesar de a falta de impulso poder ser, ela mesma, sinónima de negligência da parte e de, portanto, não justificar nenhum dever de prevenção da parte, a formulação utilizada pela RP não exclui que este dever de prevenção possa subsistir após o primeiro ano de vigência do nCPC. 

Efectivamente, como a deserção da instância exige que a falta de impulso decorra da negligência das partes (cf. art. 281.º, n.º 1, CPC), haverá que avaliar, caso a caso, se se justifica o cumprimento pelo tribunal do dever de prevenção. Procurando exemplificar, poderá haver razões para o cumprimento desse dever se a parte à qual cabe o impulso não estiver representada por advogado ou se esta mesma parte tiver demonstrado, pelo seu anterior comportamento processual, que está interessada na continuação do processo e se, por isso, for surpreendente a falta de impulso processual.

MTS