"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/02/2015

Jurisprudência (82)


Meios de prova; videovigilância; prova lícita

1. O sumário de RE 6/2/2015 (359/13.0TTFIG-A.C1) é o seguinte:

I – O artº 20º, nº 1, do Código do Trabalho proíbe a utilização de meios de vigilância à distância para controlar de forma dedicada e permanente o desempenho profissional do trabalhador.

II – A utilização desses meios de vigilância no local de trabalho é, no entanto, lícita se cumprir os requisitos de fim e publicidade previstos nos nºs 2 e 3 do mesmo artº 20º e for obtida a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados.

III – Estando em causa uma das finalidades legalmente previstas no nº 2 desse artigo, concretamente a protecção e segurança de pessoas e bens, as actuações ilícitas do trabalhador lesivas de pessoas e bens podem ser licitamente verificadas, tanto quanto o podem ser idênticas condutas de terceiros, como uma consequência fortuita ou incidental da utilização dos meios de vigilância à distância, podendo os dados obtidos servir de meio de prova em procedimento disciplinar e no controlo jurisdicional da licitude da decisão disciplinar
.

2. Da fundamentação do acórdão consta a seguinte passagem:

[...] a questão que importa dilucidar e resolver, o objecto do recurso, é a de saber se podem ser apresentadas, como meio de prova, as imagens obtidas por equipamento de videovigilância instalado pela ré nas suas instalações onde o autor prestava a sua actividade. [...]

No caso, verifica-se que a ré foi autorizada pela referida CNPD, pela autorização n.º 207/06 [...], na recolha de dados por videovigilância, para protecção de pessoas e bens, na fiscalização de salas de jogos e acessos.

Assim, [...] a ré podia utilizar meios de vigilância à distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, tendo por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens. Nenhuma dúvida se pode suscitar aqui, sendo certo que não é invocado no recurso ou nos autos que não tivesse sido dada informação do autor nos termos estabelecidos no n.º 3 do art. 20.º do Código do Trabalho.

A questão está apenas em saber se a utilização das imagens obtidas por esse equipamento pode ser feita como meio de prova no processo sancionatório que conduz à aplicação de medida disciplinar laboral, nomeadamente a do despedimento.

O disposto no art. 20.º do Código do Trabalho destina-se a proteger direitos de personalidade do trabalhador (está inclusivamente inserido numa subsecção do Código que tem como título o de “Direitos de personalidade”), em que se inclui o seu direito à reserva da vida privada. Na verdade, o trabalhador sujeito a permanente vigilância no seu desempenho por meios de controlo à distância, estaria sujeito a uma permanente intrusão na sua liberdade de comportamento pessoal, prática tanto mais invasiva e condicionadora quanto nunca ele saberia exactamente quem o estava ou estará a observar.

O art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa [...] assegura a todos o direito fundamental “
à reserva da intimidade da vida privada e familiar” e igual protecção é garantida pelo art. 80.º do Código Civil.

Existe, todavia, um ponto de equilíbrio ou de concordância prática de direitos que, na afirmação, garantia ou defesa dos direitos fundamentais, tem de ser sempre encontrada. Na verdade, se em causa estão direitos fundamentais de trabalhador, não menos certo é que o empregador tem direitos de natureza fundamental, também com expressão constitucional, como o direito à propriedade e à constituição de empresa (arts. 61.º e 62.º da CRP) que podem colidir com aqueles, no campo da sua afirmação com a necessária consistência efectiva.

Como conciliar um direito à reserva ou não ingerência na esfera privada por meios de vigilância à distância com o direito de perseguição a quem viola ilicitamente o direito de propriedade (com conduta criminalmente punível), mediante a utilização como meio de prova das imagens obtidas fortuitamente por aqueles meios de vigilância?

A ponderação da espessura dos direitos e dos interesses na sua efectivação prática deve ser a medida da restrição de cada um ou da sua concordância, ideia que é juridicamente sustentada desde logo pelo art. 335.º do Código Civil (“Colisão de direitos”).

Se bem analisarmos, o art. 20.º, n.º 1, do Código do Trabalho apenas proíbe o controlo dedicado e permanente das acções do trabalhador, mediante os meios de vigilância à distância. Mas o seu n.º 2 já permite (“é lícita”) a utilização desse equipamento quando o tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens.

Ou seja, a nosso ver, é a própria norma que sugere a concordância prática e proporcionada dos direitos em questão. Quando esteja em causa a protecção e segurança de pessoas e bens, já é possível, ainda que de forma fortuita ou incidental, verificar uma conduta lesiva e ilícita dos próprios trabalhadores. E verificada esta, não pode sustentadamente defender-se que as imagens ou os dados obtidos não podem servir como meio de prova num despedimento ou sancionamento disciplinar. Na verdade, se assim sucedesse estaria a maior parte das vezes enfraquecida ou anulada a finalidade da vigilância lícita e que é a de garantir a protecção e segurança de pessoas e bens – numa via a protecção e segurança seriam aparentemente concedidas, noutra via seriam real e contraditoriamente retiradas. [...]

A jurisprudência mais recente -- e consistente, a nosso ver – vai-se desenvolvendo em torno da argumentação que sustentamos – caso dos Acórdãos da Relação de Évora de 09/11/2010, proc. n.º 292/09.0TTSTB.E1, da Relação de Lisboa de 16/11/2011, proc. n.º 17/10.7TTBRR.L1-4, de 06/06/2012, proc. n.º 18/09.8TTALM.L1-4, de 8/10/2014, proc. n.º 149/14.2TTCSC.L1-4, e da Relação do Porto de 04-02-2013, proc. n.º 229/11.6TTLMG.P1 (todos in www.dgsi.pt).