"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/03/2015

Jurisprudência (104)


Interesse em agir; substituição processual; depoimento da parte substituída;
apreciação da matéria de facto pela Relação

1. O sumário de RP 2/3/2015 (
5513/10.3TBVFR.P1) é o seguinte:

I- O interesse em agir pressupõe a necessidade e a adequação do meio de tutela de que se lança mão, ou seja, exige que para a solução do conflito o autor deve socorrer-se inevitavelmente da actuação judicial (a necessidade), e ainda que o meio processual usado deve ser aquele apto a reparar uma efectiva lesão do direito do autor (a adequação), tal como este a representa.

II- No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso (artigo 263.º, n.º 1, do CPCivil), aquele interesse no prosseguimento da lide, que aqui se compagina com a questão da legitimidade, continua a existir na pessoa do transmitente.

III- Este normativo cria uma situação de legitimidade
ad hoc extraordinária, sendo fundamentalmente os interesses da parte estranha à transmissão que justificam a permanência do transmitente enquanto parte legítima na acção que só cessará com a eventual habilitação do transmissário.

IV- Desde que a pessoa, posto que tenha interesse directo na causa, não ocupa nela a posição que permita o seu depoimento como parte (artigo 452.º do CPCivil), pode depor como testemunha, podendo, como é evidente, tal depoimento ser apreciado tendo em conta aquele interesse.

V- Na reapreciação da prova, a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.

VI- O direito de primazia concedido ao empreiteiro ou ao vendedor relativo à eliminação dos defeitos não é absoluto. Nos casos de urgência na reparação ou nos casos em que volvido um prazo razoável não realizar de forma definitiva e de modo útil a prestação a que está vinculado, o princípio da boa fé e o equilíbrio das prestações contratuais, determina que seja permitido ao dono da obra executar por si ou por terceiro, a eliminação dos defeitos à custa do empreiteiro.

VII- Neste particular contexto, quer a acção directa (artigo 336.° CC) como o estado de necessidade (artigo 339.º CC), justificam o afastamento do procedimento previsto nos artigos 1221.° e 1222.° do Código Civil, sendo legitimo que o dono da obra ou o comprador a realize por sua conta, com a possibilidade de ser reembolsado pelo empreiteiro ou pelo vendedor das despesas efectuadas.
 

 2. O interesse em agir é um pressuposto processual cujo preenchimento só pode ser aferido em concreto, pois que esta aferição requer uma comparação entre a situação da parte antes de recorrer aos tribunais e aquela em que ela se encontrará se vier a obter o que pede em juízo: se a parte não retirar nenhuma vantagem da tutela que requer, então essa parte não tem interesse em agir. É por isso que -- como, aliás, se reconhece no acórdão -- o interesse processual exige que a parte tenha necessidade da tutela jurídica, ou seja, que a concessão desta tutela a beneficie em relação à situação em que ela se encontraria se não obtivesse essa tutela; além disso, exige-se ainda que o meio escolhido pela parte seja o adequado, em termos de uma relação custo/benefício, para a tutela dos seus interesses.

A melhor perspectiva para analisar o interesse processual não é a de considerar que este pressuposto processual serve para confirmar o óbvio -- por exemplo, para confirmar que o titular de um crédito vencido tem interesse processual para instaurar uma acção condenatória do devedor --, mas antes a de considerar que esse interesse serve para justificar o que não é evidente -- por exemplo, para justificar que o credor de um crédito não vencido possa instaurar uma acção de condenação in futurum (cf. art. 557.º CC). Neste aspecto, o interesse em agir tem algo em comum com a legitimidade processual: ambos servem para justificar o extraordinário (que, no caso da legitimidade, é o reconhecimento de legitimidade a quem não é o alegado titular do direito), não para confirmar o ordinário (que, quanto à legitimidade, é o reconhecimento de que o titular do direito possui legitimidade processual).
  
No caso decidido no acórdão, o autor da acção tinha, obviamente, interesse processual: como titular do imóvel no qual se verificam os alegados defeitos de construção, essa parte tinha necessidade da tutela que solicitou e tinha escolhido o meio processual adequado para essa tutela. Durante a pendência da acção, o autor transmitiu o imóvel onde se verificam os alegados defeitos, transmitindo também o direito à sua reparação.  Esta transmissão implicou uma alteração na legitimidade desse autor, dado que, por força do disposto no art. 263.º, n.º 1, CPC, a legitimidade dessa parte deixou de ser uma legitimidade directa e passou a ser uma legitimidade indirecta (substituição processual). O que importa averiguar é se esta modificação também implicou alguma alteração no interesse processual.

O que, quanto a este aspecto, parece poder dizer-se é o seguinte: dado que o transmitente deixou de ser o titular do imóvel, esta parte deixou também de necessitar da tutela requerida (a não ser que se tenha responsabilizado pela reparação dos defeitos perante o adquirente); mas o interesse processual não deixou de estar preenchido na acção: o que se verificou foi que ele agora pertence à parte substituída, isto é, ao adquirente do imóvel.

A RP entendeu que, como o autor transmitente continuou na acção (agora como substituto processual do adquirente), aquela parte continuava a ter interesse processual. Nesta base, a RP considerou que a omissão de pronúncia da 1.ª instância sobre a falta de interesse processual  do autor não implicou a nulidade da decisão dessa instância. Esta justificação é discutível, principalmente porque ela infere a subsistência do interesse processual do autor da legitimidade processual desta parte (embora, agora, numa nova qualidade). No entanto, é também o interesse processual que permite encontrar a solução correcta para o problema.

O que agora importa considerar não é o interesse em agir como pressuposto processual, mas antes o interesse em agir como pressuposto de actos processuais. Apesar de ser muito menos conhecida, o interesse processual também comporta esta dimensão. É, aliás, esta dimensão do interesse processual como pressuposto de actos processuais que aflora na proibição da prática de actos inúteis no processo (cf. art. 130.º CPC), dado que o que é inútil não deve ser requerido e, se for requerido, não tem de ser decidido.

Aplicando ao caso concreto: o réu alegou que, após a transmissão do imóvel, o autor tinha perdido o interesse processual; isto é verdade, mas o que se verificou foi apenas uma transmissão desse interesse em agir do transmitente para o adquirente do prédio, pelo que a acção não passou a padecer de qualquer falta de interesse processual; a única mudança foi uma modificação da parte em relação à qual se afere o interesse em agir. Sendo assim, há que concluir que não se reveste de qualquer utilidade apreciar uma nulidade decorrente de uma omissão de pronúncia sobre o interesse processual, dado que na sanação dessa nulidade haveria sempre que concluir-se que o interesse processual continua a estar preenchido na acção.

MTS