"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/03/2015

Jurisprudência (92)


Dever de cooperação do tribunal; omissão de convite ao aperfeiçoamento 
de articulado na 1.ª instância; decisão da Relação

 
1. O sumário de RP 26/2/2015 (5807/13.6TBMTS.P1) é o seguinte: 

I - Se o réu, numa reconvenção, alega os factos necessários à identificação da causa de pedir, mas de forma insuficiente à procedência da pretensão, deve ser convidado a aperfeiçoar o seu articulado.

II - Se a conclusão da insuficiência só for tirada pelo tribunal da relação, que por isso revoga a condenação do autor, a relação deve, mesmo oficiosamente, fazer esse convite, em vez de absolver o autor do pedido, porque caso contrário ocorreria uma nulidade processual (ou, noutra perspectiva, o acórdão seria nulo)
.

2. O acórdão é, de entre os publicados, o primeiro que segue a orientação que se defendeu, primeiramente, neste Blog e, depois, numa intervenção oral realizada no Porto no passado mês de Janeiro quanto ao dever de a Relação, em vez de julgar improcedente o pedido da parte por insuficiência da matéria de facto, convidar (ou providenciar pelo convite a) essa mesma parte a alegar os factos complementares que são indispensáveis para a eventual procedência do pedido.

Salienta-se -- e agradece-se -- a atenção que a referida orientação mereceu da RP, bem como o diálogo que o acórdão estabelece com outras posições que têm vindo a ser defendidas neste Blog.

3.  É muito feliz a afirmação constante do acórdão de que, de acordo com a orientação que defendo quanto à delimitação da causa petendi, "não há causas de pedir insuficientes, mas sim articulados deficientes". Na verdade, uma causa de pedir insuficiente é uma causa de pedir inexistente: se dela não constam todos os factos que são necessários para individualizar uma certa pretensão material, então não há nenhuma causa de pedir. O que pode existir são articulados deficientes: articulados que não são ineptos pela falta da causa de pedir, mas que são deficientes pela falta de algum facto complementar. 

O acórdão prefere continuar a seguir a orientação mais tradicionalista sobre a causa de pedir, entendendo que os factos complementares também a integram. No caso sub iudice, esta opção não é problemática, dado que o dever de a Relação convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado deficiente não depende de uma prévia escolha por uma das orientações em confronto (isto é, por aquela que integra os factos complementares na causa de pedir ou por aquela que -- como prefiro -- entende que os factos complementares não participam da causa de pedir, porque a omissão da sua alegação não origina a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), CPC)). O acórdão demonstra que uma delimitação mais ampla da causa de pedir -- como é aquela que adopta -- não colide com o dever de a Relação convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado (ou, na perspectiva do acórdão, a completar a causa de pedir) através da alegação dos factos complementares.

Em todo o caso, deve ter-se presente que nem sempre a opção por uma ou por outra das referidas orientações é indiferente (aliás, se os resultados fossem os mesmos, o problema seria de mera construção e não teria nenhum interesse discuti-lo). Dois exemplos bastam para ilustrar aquela afirmação:

-- O princípio da causalidade em matéria de competência internacional é aquele segundo o qual os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram (art. 62.º. al. b), CPC); quem entenda que os factos complementares participam da causa de pedir tem igualmente que admitir que basta que um desses factos tenha ocorrido em território português para que esteja preenchida a conexão estabelecida através do princípio da causalidade; esta posição tem, além do mais, um custo: pela falta de uma conexão suficientemente forte com a ordem jurídica portuguesa estabelecida por um facto complementar, aumentam, ainda mais, as hipóteses de a competência reconhecida aos tribunais portugueses pelo princípio da causalidade ser exorbitante;

-- A alteração unilateral da causa de pedir só é admissível em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor (cf. art. 265.º, n.º 1, CPC); se os factos complementares integram a causa de pedir, então esta não é a mesma com e sem esses factos; assim, a alegação posterior de qualquer facto complementar representa necessariamente uma alteração da causa de pedir e tem de estar submetida à condição estabelecida naquele preceito (uma consequência que, muito provavelmente, os adeptos da delimitação ampla da causa de pedir não estão dispostos a aceitar, mas que não podem rejeitar sem, ao mesmo tempo, abandonarem a delimitação da causa de pedir que preconizam).

O que complementa não pode pertencer à essência do que é complementado, pois que então não seria complemento, mas elemento integrante. Os factos complementares são -- apenas -- isso mesmo: factos que complementam uma causa de pedir e que, por isso, não a podem integrar.

4. O acórdão da RP é um "acórdão histórico". É histórico porque representa uma importante e marcante mudança jurisprudencial. É também histórico porque exemplifica quão profícuo pode ser o diálogo entre a jurisprudência e a doutrina.

MTS