"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/03/2015

O que significa o disposto no art. 1437.º CC?





1. Num texto recente, escreveu-se, acerca da “representação em juízo” do condomínio, que, “carecendo o condomínio de um substrato físico, a sua representação é atribuída ao administrador (art. 1437.º/1)” (Oliveira Magalhães, Julgar 23 (2014), 63). Acrescentou-se ainda, com apoio na opinião quiçá maioritária, o seguinte: “[…] concluímos que no art. 1437.º o legislador não trata da legitimidade processual, no sentido de legitimidade ad causam, até porque a legitimidade que consiste no interesse directo em demandar e em contradizer, consoante se trate de legitimidade activa ou passiva, respectivamente, é um pressuposto processual que só em concreto pode ser determinado. A norma respeita à legitimatio ad processum, ou seja, à capacidade processual. Diz-nos apenas que a representação do condomínio em juízo incumbe ao administrador, como já resultaria do art. 26.º do Código de Processo Civil” (Oliveira Magalhães, Julgar 23 (2014), 64 s.).

É duvidoso que esta conclusão corresponda ao que realmente se dispõe no art. 1437.º CC, como, aliás, se pode logo suspeitar considerando a epígrafe do preceito: “legitimidade do administrador” do condomínio.

2. O art. 1437.º CC dispõe o seguinte:

“1 - O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
2 - O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
3 - Exceptuam-se as acções relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador.”

Do disposto nos n.º 1 e 2 deste preceito resulta o seguinte:

– O administrador tem legitimidade para demandar qualquer dos condóminos ou um terceiro na execução das funções que lhe pertencem ou, fora destas funções, quando tenha sido autorizado pela assembleia de condóminos;

– O administrador tem legitimidade para ser demandado por qualquer condómino ou por um terceiro numa acção respeitante às partes comuns do edifício.

Logo a linguagem do preceito – que fala sempre de legitimidade, e nunca de representação – permite duvidar de que o mesmo estabeleça qualquer regra de representação do condomínio pelo administrador. A diferença entre a legitimidade e a representação reside no seguinte:

– Aquele que tem legitimidade para demandar ou ser demandado é parte, activa ou passiva, no processo; é ele o dominus litis, dado que quem tem legitimidade processual actua sempre em nome próprio;

– Aquele que actua como representante de alguém não é parte no processo: a parte é o representado (já assim Endemann, Das deutsche Civilprozeβrecht I (1868), 320); é, aliás, em relação ao representado que se afere a legitimidade processual, dado que é ele o dominus litis, pelo que quem pode ser parte legítima ou ilegítima é apenas o representado.

Do estabelecido no art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC resulta que é o próprio administrador do condomínio que demanda ou é demandado: isto significa que o administrador actua como parte, e não como representante do condomínio. Sendo assim, o que se encontra consagrado no art. 1437.º CC é uma hipótese de substituição processual, ou seja, uma hipótese em que a parte demandante ou demandada não coincide com a titular do direito defendido em juízo. No caso regulado no art. 1437.º CC, o administrador é a parte substituta – é ele que demanda, em nome próprio, mas procurando tutelar os interesses do condomínio, ou é demandado, também em nome próprio, mas defendendo as partes comuns do edifício – e o condomínio é a parte substituída – é ele o titular dos interesses que o administrador vai procurar defender em juízo.

Na parte final do n.º 1 e no n.º 3 do art. 1437.º CC encontra-se consagrada uma situação de substituição processual voluntária. Na hipótese de o objecto da acção exceder o âmbito legal das suas funções ou recair sobre a propriedade ou a posse de partes comuns, a assembleia de condóminos pode autorizar o administrador a propor, em nome próprio, a acção. Só com esta autorização o administrador pode assumir o papel de substituto processual.

3. Na doutrina alemã é bastante discutida a qualidade assumida em juízo pelo administrador de um património: Amtstheorie, Vertretertheorie e Organtheorie são as orientações mais comuns (cf., por exemplo, MünchKommZPO/Lindacher (2013), Vor §§ 50 ff. 29 ss.; Stein/Jonas/Jacoby (2014), vor § 50 64 ss.). O disposto no art. 1437.º CC corresponde – na leitura aqui feita do preceito – à Amtstheorie.

A consagração da Amtstheorie no art. 1437.º CC não pode fazer esquecer que o administrador do condomínio actua na defesa dos interesses e na qualidade de órgão do condomínio. Como, aliás, já foi salientado na doutrina alemã, a Amtstheorie não é incompatível com as demais teorias acima referidas, já que estas se situam num plano diferente: enquanto a Amtstheorie procura enquadrar a posição do administrador em juízo, a Vertretertheorie e a Organtheorie procuram salientar a imputação dos actos deste administrador ao próprio património administrado, in casu ao condomínio (cf. Stürner, ZZP 94 (1981), 286 ss.).

4. Assente a interpretação do disposto no art. 1437.º CC, o passo seguinte consiste em harmonizar o regime que resulta deste preceito com o estabelecido no art. 12.º, al. e), CPC quanto à atribuição de personalidade judiciária ao “condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente a acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.

Uma primeira nota é a de que a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio não contende com a substituição processual estabelecida no art. 1437.º CC. Se se verifica uma situação de substituição processual, há uma parte substituta (que está presente em juízo como parte activa ou passiva) e uma parte substituída (que é a titular do direito que constitui o objecto do processo). Não só nada impede que esta parte substituída tenha personalidade judiciária, como é essa precisamente a regra: o normal é que a parte substituída tenha personalidade judiciária (nomeadamente, porque tem personalidade jurídica: cf. art. 11.º, n.º 2, CPC).

Num plano puramente doutrinário, até se poderia argumentar que a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio é um pressuposto necessário da substituição processual estabelecida no art. 1437.º CC. Só podendo haver substituição processual se houver parte substituída, pode argumentar-se que a substituição processual que se encontra no art. 1437.º CC exige que o condomínio tenha personalidade judiciária (isto é, possa ser realmente uma parte substituída). Nesta leitura, seria a situação de substituição processual do art. 1437.º CC a requerer a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio.

Abstraindo desta última observação, o problema que importa resolver é o da utilidade de concessão de personalidade judiciária ao condomínio. Se o art. 1437.º CC atribui legitimidade processual ao administrador para intentar acções ou ser demandado em acções relativas ao condomínio, qual a vantagem de conceder personalidade judiciária ao condomínio, ou seja, qual a utilidade que decorre de também se permitir que o condomínio possa demandar e ser demandado?

Novamente abstraindo da referida observação doutrinária, a resposta àquela questão não é evidente. A única coisa que se pode fazer é reconhecer que o regime legal admite duas vias quanto a acções relativas ao condomínio:

– A propositura da acção pelo ou contra o administrador, no regime de substituição processual: é o que se encontra estabelecido no art. 1437.º CC;

– A propositura da acção pelo ou contra o condomínio: é o que se pode retirar do disposto no art. 12.º, al. e), CPC.

Dado que o condomínio necessita de ser representado em juízo, esta última possibilidade coloca o problema de saber quem vai representar esse condomínio quando este é a parte activa ou passiva. A resposta pode ser encontrada no art. 26.º CPC: o condomínio é representado em juízo pelo seu administrador. Como resulta do acima exposto sobre o art. 1437.º CC e sobre a substituição processual que este preceito consagra, não é correcto entender que a representação do condomínio pelo administrador decorre do disposto no art. 1437.º CC ou que o estabelecido neste preceito duplica o que resulta do art. 26.º CPC. O que vale para a legitimidade processual do administrador como parte substituta não pode valer para a representação do condomínio por esse administrador.

Esta conclusão tem uma consequência prática. No caso de o condomínio demandar ou ser demandado e de ser representado pelo administrador nos termos do art. 26.º CPC, este administrador não necessita de nenhuma das autorizações previstas no art. 1437.º CC (diferentemente, mas em coerência com a aplicação deste preceito à representação do condomínio pelo administrador, Oliveira Magalhães, Julgar 23 (2014), 65 s.). A solução legal é facilmente compreensível: se pode ter alguma justificação que o administrador necessite da autorização da assembleia de condóminos para intentar uma acção na qualidade de substituto processual do condomínio (e, portanto, de parte), não tem nenhuma justificação que esse administrador necessite dessa autorização quando a acção seja proposta pelo condomínio e o administrador assuma apenas uma função de representação desta parte. É, aliás, incoerente que o condomínio decida instaurar, como parte, uma acção com um certo objecto e possa excluir o seu administrador -- que é o seu único representante -- de o representar nessa acção.


MTS