1. Num
texto recente, escreveu-se, acerca da “representação em juízo” do condomínio, que,
“carecendo o condomínio de um substrato físico, a sua representação é atribuída
ao administrador (art. 1437.º/1)” (Oliveira
Magalhães, Julgar 23 (2014), 63). Acrescentou-se ainda, com apoio na opinião quiçá
maioritária, o seguinte: “[…] concluímos que no art. 1437.º o legislador não
trata da legitimidade processual, no sentido de legitimidade ad causam, até porque a legitimidade que
consiste no interesse directo em demandar e em contradizer, consoante se trate
de legitimidade activa ou passiva, respectivamente, é um pressuposto processual
que só em concreto pode ser determinado. A norma respeita à legitimatio ad processum, ou seja, à
capacidade processual. Diz-nos apenas que a representação do condomínio em
juízo incumbe ao administrador, como já resultaria do art. 26.º do Código de
Processo Civil” (Oliveira Magalhães,
Julgar 23 (2014), 64 s.).
É duvidoso
que esta conclusão corresponda ao que realmente se dispõe no art. 1437.º CC,
como, aliás, se pode logo suspeitar considerando a epígrafe do preceito: “legitimidade
do administrador” do condomínio.
2. O art.
1437.º CC dispõe o seguinte:
“1 - O administrador tem
legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer
contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado
pela assembleia.
2 - O administrador pode também
ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
3 - Exceptuam-se as acções
relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia
atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador.”
Do
disposto nos n.º 1 e 2 deste preceito resulta o seguinte:
– O
administrador tem legitimidade para demandar qualquer dos condóminos ou um
terceiro na execução das funções que lhe pertencem ou, fora destas funções, quando
tenha sido autorizado pela assembleia de condóminos;
– O
administrador tem legitimidade para ser demandado por qualquer condómino ou por
um terceiro numa acção respeitante às partes comuns do edifício.
Logo a
linguagem do preceito – que fala sempre de legitimidade, e nunca de
representação – permite duvidar de que o mesmo estabeleça qualquer regra de
representação do condomínio pelo administrador. A diferença entre a
legitimidade e a representação reside no seguinte:
– Aquele
que tem legitimidade para demandar ou ser demandado é parte, activa ou passiva,
no processo; é ele o dominus litis, dado que quem tem legitimidade processual actua sempre em nome próprio;
– Aquele
que actua como representante de alguém não é parte no processo: a parte é o
representado (já assim Endemann, Das
deutsche Civilprozeβrecht I (1868), 320); é, aliás, em relação ao representado que
se afere a legitimidade processual, dado que é ele o dominus litis, pelo que quem pode ser parte legítima ou ilegítima é
apenas o representado.
Do estabelecido
no art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC resulta que é o próprio administrador do condomínio que demanda
ou é demandado: isto significa que o administrador actua como parte, e não como
representante do condomínio. Sendo assim, o que se encontra consagrado no art.
1437.º CC é uma hipótese de substituição processual, ou seja, uma hipótese em
que a parte demandante ou demandada não coincide com a titular do direito
defendido em juízo. No caso regulado no art. 1437.º CC, o administrador é a
parte substituta – é ele que demanda, em nome próprio, mas procurando tutelar
os interesses do condomínio, ou é demandado, também em nome próprio, mas
defendendo as partes comuns do edifício – e o condomínio é a parte substituída –
é ele o titular dos interesses que o administrador vai procurar defender em
juízo.
Na parte
final do n.º 1 e no n.º 3 do art. 1437.º CC encontra-se consagrada uma situação
de substituição processual voluntária. Na hipótese de o objecto da acção
exceder o âmbito legal das suas funções ou recair sobre a propriedade ou a
posse de partes comuns, a assembleia de condóminos pode autorizar o
administrador a propor, em nome próprio, a acção. Só com esta
autorização o administrador pode assumir o papel de substituto processual.
3. Na
doutrina alemã é bastante discutida a qualidade assumida em juízo pelo administrador
de um património: Amtstheorie, Vertretertheorie e Organtheorie são as orientações mais comuns (cf., por
exemplo, MünchKommZPO/Lindacher (2013),
Vor §§ 50 ff. 29 ss.; Stein/Jonas/Jacoby
(2014), vor § 50 64 ss.). O disposto no art. 1437.º CC corresponde – na leitura
aqui feita do preceito – à Amtstheorie.
A
consagração da Amtstheorie no art.
1437.º CC não pode fazer esquecer que o administrador do condomínio actua na
defesa dos interesses e na qualidade de órgão do condomínio. Como, aliás, já
foi salientado na doutrina alemã, a Amtstheorie
não é incompatível com as demais teorias acima referidas, já que estas se
situam num plano diferente: enquanto a Amtstheorie procura
enquadrar a posição do administrador em juízo, a Vertretertheorie e a Organtheorie procuram
salientar a imputação dos actos deste administrador ao próprio património
administrado, in casu ao condomínio (cf.
Stürner, ZZP 94 (1981), 286 ss.).
4. Assente
a interpretação do disposto no art. 1437.º CC, o passo seguinte consiste em
harmonizar o regime que resulta deste preceito com o estabelecido no art. 12.º,
al. e), CPC quanto à atribuição de personalidade judiciária ao “condomínio
resultante da propriedade horizontal, relativamente a acções que se inserem no
âmbito dos poderes do administrador”.
Uma primeira
nota é a de que a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio não
contende com a substituição processual estabelecida no art. 1437.º CC. Se se
verifica uma situação de substituição processual, há uma parte substituta (que
está presente em juízo como parte activa ou passiva) e uma parte substituída
(que é a titular do direito que constitui o objecto do processo). Não só nada
impede que esta parte substituída tenha personalidade judiciária, como é essa
precisamente a regra: o normal é que a parte substituída tenha personalidade
judiciária (nomeadamente, porque tem personalidade jurídica: cf. art. 11.º, n.º
2, CPC).
Num plano
puramente doutrinário, até se poderia argumentar que a atribuição de
personalidade judiciária ao condomínio é um pressuposto necessário da
substituição processual estabelecida no art. 1437.º CC. Só podendo haver substituição
processual se houver parte substituída, pode argumentar-se que a substituição
processual que se encontra no art. 1437.º CC exige que o condomínio tenha
personalidade judiciária (isto é, possa ser realmente uma parte substituída). Nesta leitura, seria a situação de substituição processual do art. 1437.º CC a requerer a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio.
Abstraindo
desta última observação, o problema que importa resolver é o da utilidade de
concessão de personalidade judiciária ao condomínio. Se o art. 1437.º CC
atribui legitimidade processual ao administrador para intentar acções ou ser demandado
em acções relativas ao condomínio, qual a vantagem de conceder personalidade
judiciária ao condomínio, ou seja, qual a utilidade que decorre de também se
permitir que o condomínio possa demandar e ser demandado?
Novamente abstraindo
da referida observação doutrinária, a resposta àquela questão não é evidente. A
única coisa que se pode fazer é reconhecer que o regime legal admite duas vias
quanto a acções relativas ao condomínio:
– A
propositura da acção pelo ou contra o administrador, no regime de substituição
processual: é o que se encontra estabelecido no art. 1437.º CC;
– A
propositura da acção pelo ou contra o condomínio: é o que se pode retirar do
disposto no art. 12.º, al. e), CPC.
Dado que o
condomínio necessita de ser representado em juízo, esta última possibilidade
coloca o problema de saber quem vai representar esse condomínio quando este é a
parte activa ou passiva. A resposta pode ser encontrada no art. 26.º CPC: o
condomínio é representado em juízo pelo seu administrador. Como resulta do acima
exposto sobre o art. 1437.º CC e sobre a substituição processual que este
preceito consagra, não é correcto entender que a representação do condomínio
pelo administrador decorre do disposto no art. 1437.º CC ou que o estabelecido neste preceito
duplica o que resulta do art. 26.º CPC. O que vale para a legitimidade
processual do administrador como parte substituta não pode valer para a
representação do condomínio por esse administrador.
Esta
conclusão tem uma consequência prática. No caso de o condomínio demandar ou ser
demandado e de ser representado pelo administrador nos termos do art. 26.º CPC,
este administrador não necessita de nenhuma das autorizações previstas no art.
1437.º CC (diferentemente, mas
em coerência com a aplicação deste preceito à representação do condomínio pelo
administrador, Oliveira Magalhães,
Julgar 23 (2014), 65 s.). A solução legal é facilmente compreensível: se pode ter alguma justificação
que o administrador necessite da autorização da assembleia de condóminos para
intentar uma acção na qualidade de substituto processual do condomínio (e, portanto, de parte), não tem
nenhuma justificação que esse administrador necessite dessa autorização quando
a acção seja proposta pelo condomínio e o administrador assuma apenas uma
função de representação desta parte. É, aliás, incoerente que o condomínio decida instaurar, como parte, uma acção com um certo objecto e possa excluir o seu administrador -- que é o seu único representante -- de o representar nessa acção.
MTS