"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/03/2015

O direito à reserva da intimidade da vida privada e a divulgação de listas de devedores

O direito à reserva da intimidade da vida privada é um direito constitucionalmente consagrado no artigo 26.º da Lei Fundamental, a qual, no n.º 1 daquele normativo, reconhece a todos «os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação». Hoje em dia é pacífico que a informação relativa à situação económica, financeira e contributiva das pessoas integra o conceito de intimidade da vida privada e, como tal, está constitucionalmente protegida.

Sucede que, por vezes, perante o confronto entre vários interesses que merecem a tutela do direito, o legislador estabelece restrições a alguns deles. No entanto, o artigo 18.º da CRP determina que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

Foi o que aconteceu em 2006 quando o legislador habilitou a Administração Fiscal e a Segurança Social a procederem à divulgação de listas de devedores por escalões, tendo esta possibilidade sido precedida de autorização pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (autorização n.º 676/2006, de 19 de junho).

Atualmente, nos termos do artigo 64.º, n.º 5, alínea a), da  Lei Geral Tributária, a Administração Fiscal e a Segurança Social podem divulgar «listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada, designadamente listas hierarquizadas em função do montante em dívida, desde que já tenha decorrido qualquer dos prazos legalmente previstos para a prestação de garantia ou tenha sido decidida a sua dispensa».

A divulgação destas listas de devedores visa claramente combater a fraude e a evasão fiscais, reforçando a ideia de que todos os cidadãos devem contribuir para a satisfação das necessidades financeiras do Estado, e cria um efeito dissuasor sobre atuais e eventuais novos devedores, contribuindo para uma maior justiça contributiva entre quem cumpre e quem incumpre. Assim, não se suscitam dúvidas em torno dos requisitos previstos no artigo 18.º da CRP, atenta a proporcionalidade presente e o fim que se pretende alcançar.

O mesmo já não podemos defender a propósito das listas públicas de devedores. De harmonia com o artigo 15.º da Lei n.º 32/2014, de 30 de maio -- que aprovou o Procedimento Extrajudicial Pré-Executivo (PEPEX) --, decorridos 30 dias sobre a data da notificação do requerido sem que este pague a dívida, celebre acordo de pagamento com o requerente, indique bens penhoráveis ou deduza oposição ao procedimento, o agente de execução procede à inclusão do devedor na lista pública de devedores.

Com efeito, qualquer pessoa pode consultar o portal Citius e aceder à lista de todas as execuções cíveis cuja extinção foi determinada pela insuficiência ou inexistência de bens, bastando selecionar a primeira letra do nome do executado para obter a lista de todas as execuções, com indicação do nome do executado, o valor em dívida, a data de extinção do processo e o respetivo motivo.

Não obstante a utilidade destas listas no que respeita à gestão que os credores possam fazer das mesmas, evitando futuras ações judiciais desnecessárias, bem como identificando os devedores sem capacidade económica e financeira para fazerem face às suas obrigações, a verdade é que os dados constantes de tais listagens inserem-se no conceito de intimidade da vida privada. Perante os interesses em confronto, temos sérias dúvidas de que a divulgação das listas em apreço respeite os requisitos previstos no artigo 18.º da CRP: merecerão os direitos de crédito privados uma tutela especial que justifique restringir o direito à reserva da intimidade da vida privada, expondo publicamente a situação financeira e patrimonial das pessoas?


Sandra Martins Mendeiros
Jurista, atualmente a exercer funções dirigentes no IGFSS, IP-SPE Lisboa 3-Grandes Devedores
O conteúdo do texto não vincula o IGFSS