Proibição de decisões-surpresa; nulidade da decisão-surpresa
I. O sumário de RP 2/3/2015 (39/13.6TBRSD.P1) é o seguinte:
1. Uma decisão judicial, que convida as partes a, querendo, pronunciar-se, para pretensamente evitar a prolação de uma decisão-supresa, tem que identificar minimamente a matéria que é passível de integrar essa “surpresa”, sob pena de grosseira violação do princípio do contraditório.
2. O despacho de aperfeiçoamento não é um instrumento processual para trazer ao processo factos inteiramente novos, mas apenas para permitir que os factos alegados pelas partes sejam expurgados de insuficiências e ou imprecisões ou concretizados, sempre no suposto de que sejam juridicamente relevantes à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito.
3. A primeira parte do n.º 1 do artigo 32.º da CMR não colide com o Direito da União Europeia.
II. De acordo com o relato feito no acórdão, o juiz da 1.ª instância convidou as partes a pronunciarem-se sobre um aspecto de direito, de molde a evitar o proferimento pelo tribunal de uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC); segundo é afirmado no acórdão, esse despacho era demasiado "lacónico", pelo que não assegurava o contraditório das partes sobre esse aspecto; no entanto, a autora não reagiu contra o despacho, não "arguindo a nulidade de tal decisão"; por este motivo, a Relação entendeu que é intempestiva a arguição da nulidade no recurso da decisão final que para ela foi interposto.
O descrito suscita uma observação. Atendendo ao carácter "lacónico" do despacho que convidava as partes a pronunciarem-se sobre uma questão de direito, não é de excluir que não fosse exigível que as partes, enquanto declaratárias normais, devessem ter-se apercebido de que o tribunal pretendia uma pronúncia sobre essa questão. Sendo assim, parece que teria sido necessário que o acórdão se tivesse pronunciado expressamente sobre este problema (talvez implicitamente o tenha feito), nada impedindo que, em função do teor do despacho, se viesse a concluir que, apesar do "laconismo" do mesmo, as partes não podiam ter deixado de apreender o seu real conteúdo.
Certo é que, se efectivamente se viesse a concluir que não era exigível que as partes interpretassem o despacho com o sentido de que o tribunal as convidava a uma pronúncia sobre um regime jurídico não discutido no processo, então haveria que concluir que foi totalmente adequada a reacção contra a sentença que aplicou, para verdadeira surpresa das partes, esse regime jurídico. Afinal, só com a prolação da decisão-supresa se tornou patente o sentido dúbio do anterior despacho. Há que tratar de forma igual a situação em que o tribunal não dirigiu nenhum convite à pronuncia das partes e aquela em que o tribunal proferiu um despacho que não era exigível que as partes interpretassem como contendo um tal convite.
III. Como o acórdão tem a amabilidade de recordar, entendo que a omissão do convite à pronúncia das partes, e, portanto, o proferimento de uma decisão-surpresa, é um vício que afecta esta decisão (e não um vício do procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual). Há (pelo menos) dois argumentos para assim se entender:
-- O primeiro é o de que, até haver o proferimento da decisão-surpresa, não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir; a parte pode suspeitar de que o tribunal vai aplicar um regime não discutido no processo e de que vai proferir uma decisão-surpresa; todavia, é apenas no momento do proferimento desta decisão que o vício se manifesta e se constitui;
-- O segundo argumento é o de que o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria; a decisão padece de um vício de conteúdo e, por isso, é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); estranho seria, aliás, que o vício que afecta a decisão-surpresa, sendo um vício de conteúdo, não tivesse o mesmo tratamento e não originasse as mesmas consequências dos demais vícios de conteúdo que, segundo o disposto no art. 615.º, n.º 1, CPC, conduzem à nulidade da sentença.
MTS