"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/12/2016

Jurisprudência (498)



Função jurisdicional; responsabilidade civil do Estado;
revogação prévia; pedido de decisão prejudicial


1. O sumário de RP 7/7/2016 (2872/15.5T8PNF.P1) é o seguinte:
 
I - Na apreciação da responsabilidade civil do Estado por acto da função jurisdicional, quando está em causa a violação do direito comunitário, deve ter-se por definitivamente afastada a regra contida no art.º 13.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2007, de 31/12, não devendo exigir-se a prévia revisão ou revogação da decisão danosa, tal como vem decidindo o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

II - O Tribunal nacional que decide em última instância é obrigado a cumprir o dever de reenvio sempre que seja suscitada uma questão de direito comunitário, salvo quando for impertinente, quando a disposição em causa já foi objecto de interpretação pelo TJUE ou quando, pela sua evidência, não dá lugar a qualquer dúvida interpretativa razoável.
 
III - Para saber se a questão é clara e inequívoca e se o STJ violou o seu dever de reenvio, importa apurar previamente se houve violação do direito comunitário, designadamente, como no caso, dos art.ºs 3.º da 2.ª Directiva e 1.º da 3.ª Directiva.
 
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"[...] Para que seja apreciada a responsabilidade civil do Estado é necessário que a decisão danosa seja revogada?

O regime da responsabilidade civil do estado encontra-se regulamentado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, a qual aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, (RRCEE).

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 56/X podemos ler “…Avança-se, por outro lado, no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, fazendo, para o efeito, uma opção arrojada: a de estender ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam directamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave, pelo que não se lhes aplica o regime de responsabilidade solidária que vale para os titulares de órgãos, funcionários e agentes administrativos, incluindo os que prestam serviço na administração da justiça”.

No que concerne à responsabilidade civil do Estado por erro judiciário o n.º 1 do artigo 13.º do RRCEE (Lei 67/2007, de 31/12) dispõe que: «Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto».

Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que «O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

Com base neste normativo a decisão recorrida entendeu que decorre do citado preceito a exigência «que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. 

Trata-se de opção do legislador derivada da necessidade [...] de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado. 

Assim, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização. 

Não pode, pois, "atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto" (…). 

Constituiria, na verdade, evidente ilogismo institucional, como acima se referiu, que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente "desautorizada" por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie mas de grau inferior».

E prossegue posteriormente «Podemos, pois, concluir que, "se não se fizer a prova, no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder. Se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria em causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil" (…)”. 

Em sentido idêntico ao que fica exposto cfr. acórdão do STJ de 3/12/09, in www.dgsi.pt, processo n.º 9180/07.3TBBRG.G1.S1».

Com base nestes pressupostos concluiu a decisão recorrida que, não tendo o Autor alegado que a decisão do STJ, na qual o eventual erro judiciário terá sido cometido, tenha sido revogada, antes pelo contrário se tornou definitiva e consolidada na ordem jurídica, então ocorre «falta de verificação do pressuposto legalmente exigido para fundar o direito de indemnização, ou seja, a falta de prévia revogação da decisão danosa», pelo que se impunha «concluir pela manifesta improcedência da acção».

É contra esta argumentação que se manifesta o Recorrente defendendo que deste modo se está a coarctar os direitos dos cidadãos à justa reparação em caso de violação de um direito pelos órgãos jurisdicionais.
 
Acresce que o princípio da responsabilidade do Estado «inerente à ordem jurídica da União exige o ressarcimento pelo dano causado ao cidadão, mas não a revisão da decisão judicial que o causou, não podendo o princípio da segurança jurídica pôr em causa aquele princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito da União».
 
Temos assim que enquanto a decisão recorrida defende a exigência de prévia revogação da decisão danosa – e que deveria ter sido efectuada no próprio processo – o recorrente tem entendimento diverso. [...]

É importante realçar a posição do nosso mais alto Tribunal [...], uma vez que recentemente o TJUE, no Acórdão de 9 de Setembro de 2015, proc. C-160/14 (Acórdão Ferreira da Silva e Brito) veio decidir em sentido contrário.

Como afirma Alessandra Silveira, Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional) pág. 2, «resulta cabalmente do acórdão a incompatibilidade da regra constante do artigo 13º, n.º 2, RRCEE com os princípios descortinados pelo TJUE em sede de responsabilidade dos Estados-Membros por violação do direito da União».
 
Apreciando a compatibilidade da exigência prevista no artigo 13 n.º 2 da Lei n.º 62/2007, de 31-12 com os princípios densificados em sede de responsabilidade dos Estados-Membros por violação do direito da União, o TJUE, nos considerandos 51 a 60, «claramente concluiu que contraria o princípio da efectividade: “uma regra de direito nacional como a que figura no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União em causa” – pois, como foi apurado nas fases escrita e oral do processo, “as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça são extremamente limitadas”. Acresce que tal obstáculo não pode ser justificado por outros princípios gerais do direito da União como os da autoridade do caso julgado ou da segurança jurídica.
 
A resposta do TJUE é, assim, clara e incisiva: “o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação está, na prática, excluída.” A regra do art. 13.º, n.º 2, do RRCEE não se aplica, pois, aos casos de violação do direito da União imputáveis ao Estado no exercício da função jurisdicional, por força do princípio do primado do direito da União», in Alessandra Silveira, op. Cit. Pág. 7.
 
Analisando outras decisões do TJUE, também Heloísa Oliveira, afirma que aquela norma não é compatível com a jurisprudência do TJUE pois que «efectivamente, tanto no Acórdão Kobler, como no Acórdão Traghetti, a decisão violadora de direito comunitário tinha sido proferida por um Tribunal Supremo, insusceptível de recurso, e portanto insusceptível de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», in Jurisprudência Comunitária e Regime Jurídico da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas - Influência, omissão e desconformidade, in estudos em Homenagem ao Sr. Prof. Doutor Sérvulo Correia.
 
De seguida a Autora cita Carlos Cadilha, segundo o qual em casos de violação do direito da União «não é aplicável, para efeitos da efectivação do direito de indemnização, o requisito do artigo 13, n.º 2 da presente Lei, que impõe a prévia revogação da decisão danosa; isso porque o incumprimento é directamente imputável a um tribunal que decidia em última instância, ao qual se exigia que suscitasse o reenvio prejudicial»
 
Nas conclusões 12 e 13 afirma Heloísa Oliveira que «O artigo 13.º, n.º 2, do RJRCEE revela-se em oposição á jurisprudência do TJUE, porquanto exige que haja prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, o que será manifestamente impossível no caso de a decisão ser proferida pelo último grau de jurisdição. Esta exigência carece de qualquer sentido nos casos de violação de direito comunitário, porquanto uma das situações mais frequentes, e admitidas pelo TJUE, de responsabilidade do Estado-Juiz será, porventura, a não colocação de uma questão prejudicial que se revela (normalmente) obrigatória quando se trata de um Tribunal no último grau de jurisdição»
 
Assim, podemos, deste modo concluir que o TJUE afirma, de forma clara que quando está em questão a violação do direito comunitário deve ter-se por definitivamente afastada a regra contida no artigo 13º, n.º 2 da Lei n.º 62/2007, de 31-12, ou seja não deve ser exigida a prévia revisão ou revogação da decisão danosa."
 
 
MTS