"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/12/2016

Jurisprudência (503)



Desconsideração da personalidade jurídica;
frustração da prova; inversão do ónus da prova

1. O sumário de RP 7/7/2016 (113/15.4T8MCN.P1) é o seguinte:

I - Numa acção instaurada pelo credor para obter do sócio-gerente da sociedade devedora o pagamento de uma dívida social, com fundamento na figura da desconsideração da personalidade jurídica baseada na mistura dos patrimónios social e pessoal, em proveito do sócio e detrimento dos credores sociais, cabe ao autor o ónus da prova dos factos que revelem a mistura de patrimónios alegada.
 
II - A inversão do ónus da prova prevista no art. 344.º, n.º 2, do CC tem aplicação nos casos em que a parte sobre quem recai o ónus é impedida de fazer a prova dos factos que lhe competem por a parte contrária ter culposamente destruído, feito desaparecer ou impedido a produção de determinado meio de prova imprescindível ou de especial relevância para a prova dos factos.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O artigo 342.º do Código Civil estabelece que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direitoalegado. Alegando que o direito de crédito de que é titular tem como sujeito jurídico do lado passivo da obrigação (devedor) a sociedade comercial da qual o réu é (era) sócio-gerente, a autora coloca-se na posição de necessitar de um específico fundamento jurídico para transferir para o réu essa sujeição jurídica.

Ao invocar a inversão do ónus da prova (num sinal de que sem a inversão lhe caberia a si o ónus), a própria recorrente acaba por acolher que para poder obter a condenação do réu a fazer o pagamento que era da responsabilidade de outra pessoa jurídica (a sociedade), necessitava de fazer a prova dos factos constitutivos já não do direito de crédito sobre o réu, mas da responsabilidade do réu pelo pagamento de dívidas da sociedade.

Admitindo que a figura doutrinária da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas possa ser a fonte dessa responsabilidade, a forma jurídica de imputar aos gerentes ou administradores ou titulares do capital social das sociedades comerciais a responsabilidade por obrigações sociais ou pelas consequências do incumprimento pela sociedade de obrigações sociais, a autora necessitava assim de fazer a prova dos factos jurídicos concretos necessários para preencher a aludida figura, nalguma das suas concretizações teóricas [...], sendo que no caso a aventada pela autora era a da mistura de patrimónios ou confusão entre o património social e o património pessoal do gerente, administrador ou titular do capital social.

A inversão do ónus da prova prevista no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil tem lugar, na expressão da norma, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado. A situação tratada na norma é a de a parte contrária ter destruído, feito desaparecer ou impedido a produção de um meio de prova e dessa forma ter tornado impossível à parte onerada fazer a prova dos factos que lhe compete demonstrar.

É o caso, por exemplo, da destruição de um documento, do encobrimento de uma coisa [...] ou do impedimento da realização de um exame pericial quando tais meios de prova sejam imprescindíveis para a demonstração do facto, designadamente por serem os únicosmeios de prova possíveis para demonstração do facto, ou, ao menos, tenham especial relevância para esse efeito, designadamente em função do valor probatório particular que lhes seria atribuído e do menor valor probatório dos remanescentes meios probatórios possíveis.

A situação abordada no referido preceito e que justifica a inversão do ónus da prova nada tem a ver com a situação dos autos. Com efeito, a autora não sustenta não é que os réus a tenham impedido de fazer uso de qualquer meio de prova específico determinante ou especialmente relevante para a demonstração dos factos constitutivos da mistura de patrimónios. O que a autora reclama é que devem ser os réus a provar que não houve qualquer mistura de patrimónios. Nessa medida, do que se trata não é de operar a inversão do ónus da prova com fundamento no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil, mas de definir as regras do ónus da prova válidas para as acções instauradas contra os sócios com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica das sociedades obrigadas, sendo certo que, como vimos, ao pretender beneficiar da aludida inversão, a autora aceita que ab initio o ónus da prova é seu, como de facto é.

Como escreveu Rui Rangel, in O ónus da prova no processo civil, Almedina 3.ª edição, pág. 198, «por regra, a maior ou menor dificuldade de produção da prova não deve, só por si, justificar a inversão do ónus da prova», desde logo porque na elaboração das regras do ónus da prova o legislador não podia deixar de ter presente essa dificuldade, sendo aliás ela que se vislumbra por detrás de algumas das regras estabelecidas, mas entendeu não a estabelecer como regra geral, eliminando mesmo as dúvidas com recurso à fórmula do artigo 342.º, n.º 3, do Código Civil. Daí que, segundo o autor, «a simples verosimilhança dum facto ou a natural dificuldade da sua prova não alteram a repartição do ónus da prova, podendo, quando muito, tornar aconselhável, com as adaptações necessárias, a máxima “iis quae difficillioris sunt probatoris leviores probationes admittuntur”».

[MTS]