Documento superveniente; simulação processual;
recurso de revisão; legitimidade para recorrer
1. O sumário de RP 13/9/2016 (1871/10.8TBVCD-C.P1) é o seguinte:
I - Criado pelo Código do Processo Civil de 1939, o recurso extraordinário de revisão, hoje previsto no art. 696º, visa a alteração de uma decisão já transitada em julgado apenas em situações limite, taxativamente previstas na lei.
II - Designadamente uma decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando “se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.”
III - Os documentos atendíveis como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos estabelecidos na al. c) do art. 696º terão de preencher, cumulativamente, os requisitos da novidade e da suficiência; este último exige que esses documentos, o seu teor, infirmem, de “per si”, os fundamentos da decisão a rever.
IV - Nos casos em que as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral, a simulação assume a dimensão de uma fraude processual.
V - A alínea g) do art. 696.º permite a revisão de uma sentença transitada em julgado quando se alegue estarmos perante um litígio assente sobre acto simulado das partes.
VI - Sintomaticamente a lei coloca o acento tónico no litígio e não no comportamento das partes. Deste modo, para apurar da verificação liminar deste requisito, importa apurar se foi alegado que o litígio vertido nos articulados – petição, contestação – teria sido assente exclusivamente numa fraude, ou simulação, processual.
VII - Deste modo, ainda que uma das partes desconheça essa eventual simulação mas tenha subscrito uma contestação, conjuntamente com o então marido, a qual corporize esse acto simulado, teremos de concluir que o litígio foi falsamente erigido, estando, assim, “assente sobre acto simulado das partes”.
VIII - O recurso de revisão assente na verificação da alínea g) do art. 696.º do CPC apenas “pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença”.
IX - Fazem parte deste conceito de “terceiro” os herdeiros legitimários, conforme entendimento já consagrado pela doutrina no Código do Processo Civil de 1939 para o então denominado recurso extraordinário de oposição de terceiro de teor mais restrito que o regime actual.
2. Da fundamentação do acórdão extrai-se a seguinte parte:
"[...] o recurso de revisão não pode ser utilizado nomeadamente para reabrir uma discussão dos factos já determinados na decisão transitada em julgado; daí que se exija o requisito da novidade destes documentos em relação aos meios de prova que foram considerados no processo. Do mesmo modo, o documento tem que assumir contornos que legitimem a conclusão segundo a qual a sua junção será suficiente; donde, esse documento não deverá ser tido em conta se o respectivo teor não infirma, por si só, os fundamentos da decisão a rever, subsistindo, perante eles, ainda assim, o motivo em que se sustentou o juízo decisório (neste sentido, por todos e entre vários outros, citando Acórdão do STJ de 17.9.2009, o Acórdão desta Relação de 2 de Dezembro de 2014, disponível em dgsi.pt, processo 536/2002.C1-A).
Os documentos ora juntos pretendem demonstrar que a quantia que entrou no património do casal, os pais das autoras, terá saído logo no dia seguinte para benefício de uma sociedade que hoje tem como único sócio o ora 2º demandado, pai das demandantes.
Deste modo, encontrar-se-ia indiciado que a quantia em apreço nos autos não teria integrado, na verdade, o património comum do casal e que a mulher dela não teria retirado qualquer proveito.
Contrapõe doutamente o tribunal “a quo” que a comunicabilidade da dívida à ré, mãe das demandantes, teria sido apurada pelo tribunal, não por aplicação do disposto no art.1691º, nº1, alíneas c) e d) do Código Civil – relativa ao proveito comum do casal – mas, sim, da alínea a) concernente ao consentimento da cônjuge mulher. E assim é, de facto (leia-se neste sentido o Acórdão da Relação do Porto que confirmou a sentença proferida pela primeira instância, no qual se alerta, justamente, para tal circunstância [...]).
Os documentos juntos nada permitem inferir quanto ao consentimento, ou não, da F… relativamente à situação descrita; como bem admitem as próprias recorrentes nas suas alegações, o apuramento, ou não, desse consentimento “apenas seria legítimo extrair-se após a produção da prova dos factos que as recorrentes invocaram como causa de pedir complexa do recurso de revisão”.
Simplesmente, [...] não é esta a previsão normativa da alínea c) do art. 696.º do CPC que exige que os documentos fossem suficientes, de “per si”, para extrair essa conclusão de ausência de consentimento.
Ora, como parecem implicitamente as próprias recorrentes reconhecer, essa asserção imporia reabrir a discussão e apurar novamente dos factos e das provas analisados no processo já transitado em julgado justamente o que a lei quis vedar ao impor este requisito relativo à admissibilidade do recurso de revisão.
Comungamos, portanto, do entendimento do tribunal apelado segundo o qual os documentos apresentados não são suficientes para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Resta a apreciação da alínea g) do art. 696.º quanto à demonstração de que estaremos perante um litígio assente sobre acto simulado das partes.
Segundo o tribunal de primeira instância, na própria versão das recorrentes, a alegada simulação não terá existido pelas partes, na medida em que a mãe destas, ora demandada, não agiu simuladamente. Por sua vez, contrapõem as apelantes que, por ter sido a acção contestada em conjunto e num só articulado pelos seus pais, se verifica, por força dessa posição processual conjunta, uma verdadeira e efectiva simulação processual.
Nas palavras de Lebre de Freitas (C. Proc. Civil Anotado, Vol. II, 2ª Ed. p. 695 e 696) “Tem lugar a simulação processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si. Tem lugar a fraude processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral”.
No caso concreto, teríamos uma eventual fraude processual: a sociedade por quotas, primeira demandada, ter-se-ia conluiado com o demandado G… para alegar um mútuo inexistente em ordem a obter uma sentença que apurasse uma dívida igualmente inexistente do património comum do casal, G… e F….
De todo modo, citando o mesmo Lebre de Freitas, “a simulação do litígio, comum a ambas as figuras, passa quase sempre, mediante prévio acordo das partes, entre si conluiadas, pela alegação pelo A., não contraditada ou ficticiamente contraditada pelo R., duma versão fáctica não correspondente à realidade”.
Ora, a nosso ver, processualmente foi justamente essa a arquitectura processual que se verificou nos articulados.
Uma versão alegadamente simulada construída a partir de factos falsos alegados no petitório pela sociedade autora e uma contestação também ela falsa e artificialmente construída pelo réu G…o de modo a conseguir um resultado danoso para o património do casal. É certo que a F… não terá participado dessa simulação que desconhecia; mas igualmente nada fez para dela se desmarcar; deste modo, em termos processuais, a simulação, salvo melhor opinião, subsiste incólume na justa medida em que a única contestação junta aos autos, subscrita também pela F…, colaborou activamente nessa “verdade forjada” e não se demarcou dessa versão dos factos, por exemplo por via da apresentação de uma contestação autónoma ou, no mínimo, pela não subscrição da versão alegadamente forjada dos factos.
Parece-nos, portanto, em rigor, que se verificou - em termos de mera alegação conducente ao prosseguimento do presente recurso de revisão - por acção directa de todos os envolvidos, um litígio totalmente assente sobre acto simulado das partes.
Reforce-se que a lei põe o acento tónico na litígio em si mesmo e não no comportamento das partes, individualmente consideradas.
Ou seja, o litígio vertido nos articulados – petição, contestação – teria assentado exclusivamente numa fraude processual; uma das partes desconheceria essa aventada simulação mas, ao subscrever uma contestação conjunta com o então marido, acabou por colaborar activamente no erigir desse falso litígio. A contestação dela foi conjunta à do marido e é, objectivamente, pelo teor desta que teremos de qualificar o litígio; assim sendo, concluímos que foi “o litígio assente sobre acto simulado das partes”.
Tem, pois, fundamento bastante o recurso de revisão deduzido."
[MTS]