"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/12/2016

Venda executiva e credores graduados antes do exequente: a solução legal é a melhor?


1. A história do direito e o direito comparado -- dois dos mais relevantes indutores de "dúvidas metódicas" -- mostram que algumas soluções jurídicas tidas por indubitáveis afinal não tem nada nem de imutável, nem de indiscutível.

Vem isto a propósito da leitura de um livro sobre a venda executiva (Bartels, Dogmatik und Effizienz im Recht der Zwangsversteigerung (2010)) e da oposição dogmática que nele é analisada entre dois princípios que podem orientar essa venda: o "princípio da oferta mínima irrestrita" (Prinzip des unlimitierten Mindestgebots) e o "princípio da cobertura" (Deckungsprinzip) (p. 245 ss.). O interesse da exposição realizada na obra reside principalmente no enquadramento histórico-dogmático e histórico-legal que é fornecido sobre a temática.

Antes de avançar, convém situar o problema em análise. O problema reside em saber como tratar o credor que é titular de uma garantia que lhe assegura uma melhor graduação que a do credor exequente. Suponha-se, por exemplo, que a execução é instaurada por um credor que é titular de uma segunda hipoteca; o que se procura saber é qual a protecção de que deve beneficiar o titular da primeira hipoteca na venda do bem sobre o qual recai a sua garantia.

Como é claro, o problema pressupõe que é possível a um credor menos graduado instaurar uma acção executiva e impor nela a venda de um bem sobre o qual um outro credor tem uma melhor garantia. Tem-se hoje como evidente que um credor menos graduado pode instaurar uma acção executiva: se o credor com melhor garantia quiser acautelar os seus interesses, terá que reclamar o seu crédito na execução. No entanto, a história mostra que a referida evidência só se firmou no século XIX. Durante a época do processo comum, a venda executiva não podia ser promovida contra os interesses de um credor com uma melhor graduação, pelo que, em termos práticos, apenas o credor graduado em primeiro lugar podia instaurar o processo executivo.

2. Adquirido que é possível a um credor com uma graduação inferior instaurar uma acção executiva e impor nela a venda do bem sobre o qual um outro credor tem uma melhor garantia, coloca-se a seguinte questão: é suficiente que a este credor esteja assegurada a preferência no pagamento pelo produto da venda do bem penhorado ou justifica-se instituir um regime que proteja de forma mais forte os interesses desse credor?

É na resposta a esta questão que relevam os princípios acima referidos: o "princípio da oferta mínima irrestrita" e o "princípio da cobertura". Vai-se tentar explicar em que sentido.

3. Segundo o "princípio da oferta mínima irrestrita", o proponente pode oferecer, na venda executiva, qualquer preço pelo bem à venda, sem qualquer preocupação com a satisfação do crédito do credor melhor graduado. Dito de outra forma: o proponente pode oferecer pelo bem à venda um valor inferior ao necessário para assegurar a satisfação do crédito do credor mais graduado. Se assim suceder, o credor com uma graduação mais alta é parcialmente pago pelo produto da venda, nada sobrando para o credor exequente com uma graduação mais baixa.  

"princípio da oferta mínima irrestrita" conduz à aplicação de um outro princípio: o "princípio da extinção" (Löschungsprinzip) das garantias do credor que beneficia de uma graduação mais alta. Quer dizer: depois da satisfação, ainda que parcial do credor graduado antes do credor exequente, extingue-se o direito de garantia que ele possuía sobre o bem vendido, que é adquirido pelo adquirente livre dessa garantia.

Como se facilmente se pode concluir, o que acaba de se descrever corresponde, no essencial, ao actual direito português. O proponente não tem de apresentar uma proposta de preço que cubra os créditos dos credores graduados antes do credor exequente, dado que o que conta é o valor base dos bens a vender (cf. art. 812.º, n.º 2, al, b), e 3, CPC), e a venda do bem penhorado, seja por que preço for, determina a extinção da garantia real daqueles credores (cf. art. 824.º, n.º 2, CC).

4. O direito alemão seguiu, a partir do último quartel do século XIX, uma orientação baseada no ´"princípio da cobertura". Segundo este princípio, o proponente tem de apresentar uma proposta de preço do bem em venda que cubra os créditos graduados antes do crédito do exequente. Por exemplo: o credor exequente tem um crédito de € 5.000 e o credor graduado em primeiro lugar tem um crédito de € 10.000; a oferta nima tem de cobrir este crédito e as custas do processo; se o crédito do exequente for graduado antes do crédito reclamado, a oferta mínima tem de cobrir ambos os créditos e as custas do processo.

Note-se que o "principio da cobertura" exige que a oferta mínima cubra os créditos de credores graduados antes do credor exequente, mas, de molde a evitar a aquisição de bens valiosos por valores baixos ou mesmo irrisórios, a lei também estabelece critérios para determinar qual é a oferta mínima que pode ser realizada para a aquisição de um certo bem.

Depois de adquirido o "princípio da cobertura", verificou-se alguma hesitação quer doutrinária, quer legislativa (nomeadamente, ao nível das legislações dos vários reinos e principados alemães) sobre se esse princípio devia ser conjugado com o "princípio da extinção" (Löschungsprinzip) dos créditos dos credores graduados antes do exequente ou com o "princípio da assunção" (Übernahmeprinzip") das dívidas do executado perante aqueles credores pelo adquirente do bem. Prevaleceu esta última orientação, sendo que, para além de quaisquer aspectos doutrinários, foram, acima de tudo, razões práticas que conduziram a essa solução.

Segundo o referido "princípio da assunção", o adquirente do bem vendido assume as dívidas que o executado tem perante credores graduados antes do credor exequente Esta solução -- que corresponde ao actual direito alemão (cf. Gaul/Schilken/Becker-Eberhard, Zwangsvollstreckungsrecht (2010), 1123 ss.).-- tem uma dupla vantagem prática: 

-- Não extingue as garantias reais dos credores graduados antes do exequente; os créditos e as garantias desses credores valem agora contra o adquirente do bem;

-- Isenta o adquirente de ter de pagar, no momento da aquisição do bem, os créditos dos credores graduados, dado que ele assume as dívidas que pertenciam ao executado.

Numa apreciação geral, pode concluir-se que a conjugação do "princípio da cobertura" com o "princípio da assunção" protege os credores graduados antes do credor exequente, porque não perdem nem o seus direitos, nem as suas garantias, e, ao limitar o esforço financeiro que é exigido ao eventual adquirente, fomenta a competição na apresentação de propostas de aquisição do bem em venda.

5. Não é este o momento adequado para uma comparação exaustiva entre o regime português e o regime alemão da venda executiva, embora pareça relativamente evidente que, até sob uma perspectiva de análise económica, o regime alemão apresenta algumas vantagens, principalmente porque protege de forma mais eficiente os credores graduados antes do credor exequente, dado que esses credores não ficam sujeitos à extinção das suas garantias como consequência de uma execução que não instauraram. Dito de outra forma: a principal vantagem do regime alemão é assentar no princípio de que o credor exequente não pode afectar os direitos de credores graduados antes dele e de que, portanto, estes credores não correm o risco de verem atingidos esses direitos numa execução que não propuseram (e que, eventualmente, não desejaram).

Qualquer que seja a valoração que se faça da comparação do regime alemão com o regime português, o objectivo deste post está alcançado: demonstrar que uma solução legal que pode parecer uma evidência não é, afinal, o único sistema possível (nem talvez o melhor).

MTS