"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/12/2016

Jurisprudência (515)


Processo de insolvência; contrato-promessa; resolução;
direito de retenção


1. O sumário de STJ 29/7/2016 (6193/13.0TBBRG-H.G1.S1) é o seguinte:

I - O segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014 refere-se a situações em que o credor não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, ficando de fora os contratos que já estivessem integralmente cumpridos, resolvidos ou entrado na fase do incumprimento definitivo, à data da declaração de insolvência.

II - Tratam-se
[sic], aqueles, de contratos em curso ou em fase de execução, que fica suspensa e cujo cumprimento, ainda exigível ao devedor insolvente, o administrador pode recusar, quer por via da resolução, quer de uma reconfiguração contratual (arts. 102.º e 106.º do CIRE).

III - Se o contrato-promessa de compra e venda de um lote de terreno, em que houve
traditio, em causa nos autos, tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, entrado na fase de incumprimento definitivo, não se aplica o AUJ n.º 4/2014, devendo, aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil contidos nos arts. 755.º, n.º 1, al. f), e 442.º.

IV - A aplicação do art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica uma interpretação restritiva, já que o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes.

V - Qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção.

VI - Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência – art. 97.º do CIRE.

VII - Caso o contrato-promessa não tenha sido resolvido ou entrado na fase de incumprimento definitivo, deve aplicar-se o AUJ n.º 4/2014, negando-se, porém, ao credor, o direito de retenção, por não poder ser considerado consumidor.

VIII - O consumidor contrapõe-se ao profissional: quem compra um edifício para nele instalar máquinas que vai utilizar na sua actividade produtiva – conforme se provou – não age como consumidor, mas sim na sua qualidade profissional, mesmo que não tenha intenção de comprar o prédio para revenda, até porque o conceito de profissão é muito mais lato do que a compra para revenda.

IX - Anulando-se o acórdão recorrido, deve o processo baixar ao tribunal da Relação para ampliação da matéria de facto atinente à existência ou não de uma resolução do contrato-promessa, mesmo que ilícita, anterior à declaração de insolvência, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, que, no caso afirmativo, se define como referido em III a VI e, no caso negativo, como mencionado em VII e VIII.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão colocada no presente recurso é a da qualificação de um credor como consumidor para efeitos da eventual aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, em cujo segmento uniformizador se pode ler que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil”.

Importa, no entanto, indagar uma questão prévia – e “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (artigo 5.º n.º 3 do CPC) – que se situa a montante, a saber, qual o âmbito de aplicação do referido segmento uniformizador.

Ora, este refere-se a situações em que o credor não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência.

Ficam, assim, de fora, claramente contratos que já estivessem integralmente cumpridos à data da declaração de insolvência.

Mas importa ir mais longe e questionar quais são estes contratos que o administrador da insolvência não cumpre.

A resposta é dada pelo artigo 102.º do CIRE. Ainda que este não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato-promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime ai estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual.

E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação. [...]

Ora, nos autos (f. 42), há um documento particular – cuja veracidade não foi impugnada – com data de 31 de Março de 2010, em que o promitente-vendedor, antes da data da declaração da insolvência, vem resolver o contrato, invocando fundamentos que não logrou provar.

Dir-se-á, no entanto, que essa resolução parece ter sido infundada, tendo o promitente-comprador manifestado, em resposta (f. 43), que considerava que o contrato permaneceria em vigor por a resolução ser infundada pelo prazo de cinco dias, sob pena de se verificar o incumprimento do contrato-promessa.

Mas a resolução ainda que infundada faz cessar o contrato. Como a este respeito afirma PEDRO ROMANO MARTINEZ “a declaração de resolução, ainda que fora dos parâmetros em que é admitida, não é inválida, pelo que, mesmo que injustificada, produz efeitos; ou seja, determina a cessação do vínculo”, acrescentando que “a resolução ilícita não é inválida: representa o incumprimento do contrato”.

É certo quer este entendimento não é unânime na doutrina, havendo importantes vozes dissonantes [Sobre o “estado da arte” na matéria cfr. JOANA FARRAJOTA, A Resolução do Contrato sem Fundamento, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 50 e ss].

No entanto, mesmo que se entenda que a resolução infundada não é eficaz sempre se poderia considerar que uma declaração de resolução equivale a uma declaração antecipada de incumprimento do contrato, como tem sido, de resto, afirmado pela nossa jurisprudência. Sirvam de exemplos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/12/2011 (HENRIQUE ANTUNES) [...] e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/05/2013 (PINTO DE ALMEIDA).[...]

Se o contrato-promessa tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, tiver entrado na fase do incumprimento definitivo não há, pois, que aplicar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artigos 755.º n.º 1 alínea f) e 442.º do Código Civil. A aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor.

Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE.

Caso o contrato-promessa não tenha sido resolvido ou entrado na fase do incumprimento definitivo antes da declaração de insolvência, então haverá que aplicar o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014 e colocar-se-á a questão de saber se o credor no caso presente pode ser considerado consumidor. A resposta é negativa: independentemente de se discutir se o consumidor tem, entre nós, que ser uma pessoa física ou poderá ser uma pessoa coletiva e também do facto de que não parece existir sequer uma noção unitária de consumidor, o consumidor contrapõe-se ao profissional. Ora, quem compra um edifício para nele instalar máquinas que vai utilizar na sua actividade produtiva – recorde-se que na própria reclamação de créditos se afirma que “o reclamante teve obrigatoriamente que realizar obras no pavilhão para que este reunisse as condições necessárias para iniciar a sua atividade profissional” (n.º 13) – não age como consumidor, mas sim na sua qualidade profissional, mesmo que não tenha a intenção de comprar o prédio para revenda até porque o conceito de profissão é muito mais lato do que a compra para revenda."
[MTS]