"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/12/2016

Jurisprudência (519)


Acção popular; interesses difusos; legitimidade popular;
créditos bancários; modo de pagamento



1. O sumário de STJ 8/9/2016 (7617/15.7T8PRT.S1) é o seguinte:

I - A ação popular tem como objecto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos), os quais se caraterizam por possuírem uma dimensão individual e supra individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva.

II - Os interesses individuais homogéneos são definíveis como situações jurídicas genericamente consideradas, correspondendo aos interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso ou de um interesse colectivo.

III - A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela acção se almeje a tutela de um interesse colectivo, releva a proteção de situações individuais dos respectivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma.

IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade.

V - A legitimidade popular deve ser aferida em função do poder de representação dos titulares do interesse por parte do autor popular e do seu interesse na demanda, sendo que os representados devem todos ter sido atingidos pela violação do mesmo interesse difuso ou estarem em risco de o serem.

VII - A adequação da representação pressupõe a inexistência de um conflito de interesses entre o autor popular e os titulares do interesse difuso e a garantia de que a sua atuação permite substituir a presença daqueles em juízo.

VIII - Invocando os autores um interesse pretensamente partilhado por todos os clientes da ré – o pagamento de prestações dos créditos bancários para habitação através de qualquer meio idóneo para o efeito, nomeadamente contas bancárias sedeadas noutras instituições – que não está a ser por esta respeitado e as respectivas consequências, é de considerar que estamos perante a defesa de interesses colectivos (que se prendem com a forma de amortização dos ditos financiamentos), não revelando a causa de pedir ou o pedido quaisquer particularidades derivadas da multiplicidade dos factos que caraterizam as relações entre o banco e os seus mutuários.

IX - Sendo possível, face à definição do objeto da causa, proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos mutuários, competirá ao tribunal, uma vez apuradas as suas particularidades, apreciar se as mesmas inviabilizam uma tomada de decisão numa ação popular ou se, pelo contrário, os elementos factuais que são comuns a todas elas se revelam prevalentes, sempre tendo em vista a necessidade de abstração referida em III.

X - O juízo de manifesta improcedência previsto no art. 13.º da Lei n.º 83/95, de 31-08, supõe a inexistência do
fumus boni iuris.
 
2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:
 
"O interesse invocado pelos autores consiste, fundamentalmente e em face do pedido principal formulado por estes, no interesse de “a todos os clientes da Ré, titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, entre os quais os Autores, seja reconhecido o direito a procederem ao pagamento das prestações correspondentes a esses mesmos contratos através de qualquer meio idóneo, nomeadamente, mas não exclusivamente, por débito em conta de depósitos à ordem de que sejam legítimos titulares e com poderes para movimentação junto de qualquer instituição bancária a operar em Portugal ou crédito de dinheiro em conta titulada pela Ré em Portugal com a indicação que permita identificar o contrato para pagamento”.

Os autores alegam que esse interesse foi e está a não ser respeitado pela ré, daí decorrendo determinadas consequências para os autores e demais clientes da mesma e a obrigação desta ré em reconhecer esse interesse – ou os interesses constantes dos pedidos formulados subsidiariamente – ao nível do domicílio do pagamento das prestações, do enceramento de contas de depósito à ordem e de pagamento de comissões de gestão.
 
Ora, em face disto e dos conceitos acima referidos, entendemos que estamos perante interesses coletivos, passiveis de serem invocados numa ação popular.

Na verdade, o que está aqui em causa é o interesse ou interesses dos autores e de cada um dos titulares de contratos de crédito para habitação, interesse ou interesses estes definidos nos termos acima referidos, fundamentalmente ligados ao pagamento das prestações.
 
O que os autores pretendem defender não é só a sua situação individual, mas também a de uma massa de interesses individuais de outros titulares de empréstimos para habitação.

Face ao objecto da presente ação – definido, como se sabe, pelo pedido e pela causa de pedir - não estão aqui em causa quaisquer particularidades, nomeadamente as decorrentes da eventual “multiplicidade dos factos que caraterizam a relação do Banco com todos e cada um dos seus mutuários”, como se escreveu na sentença recorrida, particularidades estas que, eventualmente e em fase ulterior do processo poderão ser apreciadas.

Apenas está em causa se num contrato de crédito para a aquisição de imóvel para habitação aos autores e a demais titulares dos contratos deve ser reconhecido o direito de procederem aos pagamento das prestações correspondentes a esses contratos através de qualquer meio de pagamento idóneo, ou então, se devem ser reconhecidos os outros direitos invocados subsidiariamente pelos autores.

Tal como a ação foi proposta, é perfeitamente possível uma apreciação indiferenciada de cada um dos titulares dos empréstimos, sendo que competirá ao Tribunal, numa fase ulterior do processo, averiguar se as particularidades invocadas pela ré podem ser abstraídas para a tomada de uma decisão numa ação popular, tendo sempre em atenção, como acima ficou referido, que a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é caraterística das situações “standard”.

Há que ter sempre em atenção que os elementos de facto a ter em conta não são só os que eventualmente existam como específicos de cada situação, mas também os elementos de facto comuns a todas elas, devendo o Tribunal exercer o devido controlo sobre a prevalência daqueles primeiros elementos que eventualmente existam sobre os elementos de facto comuns que sustentam os pedidos formulados, sem nunca perder de vista a tendencial abstração daqueles elementos particulares como base quase necessária para a possibilidade da existência da ação popular.

Na verdade, se qualquer elemento particular invocado por um demandante fosse suficiente para descaraterizar imediatamente o interesse como coletivo, praticamente seria impossível a existência de qualquer ação popular, ficando esta, na realidade, na disponibilidade daquele.

Finalmente, há que dizer que não se revela, desde já, qualquer conflito de interesses entre os autores e os outros titulares do interesse comum por eles invocado, antes e pelo contrário, revela-se, tal como a questão é posta pelos autores, essa comunidade.

Na verdade e tendo em conta o núcleo da matéria posta à apreciação do Tribunal – repete-se, fundamentalmente relacionada com o pagamento das prestações de empréstimos para habitação – à partida e sem prejuízo da ulterior apreciação da preponderância de qualquer situação particular que torne impossível a sua abstração para aquele efeito, parece-nos ser evidente que é do interesse de qualquer daqueles titulares que lhe seja reconhecido “o direito a procederem ao pagamento das prestações (…) através de qualquer meio idóneo”, sendo certo que poderão exercer ou não e da forma que tiverem por mais conveniente, a faculdade contida nesse direito, se reconhecido."
 
[MTS]