"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/12/2016

Jurisprudência (511)


Direitos da personalidade; colisão de direitos;
responsabilidade civil

1. O sumário de STJ 14/7/2016 (3446/14.3TBSXL.L1.S1) é o seguinte;


I - O disparo de projéteis, com arma de caça, na janela do autor e do seu filho menor é um facto voluntário, ilícito e culposo do réu, ao abrigo do art. 483.º, n.º 1 do Código Civil, uma vez que não ficou provada a sua inimputabilidade no domínio da responsabilidade civil.

II - As providências previstas no art. 70.º, n.º 2 do Código Civil visam a proteção dos direitos de personalidade (p. ex. direito à vida, direito à integridade física e pessoal, direito à liberdade e direito à tranquilidade da vida familiar) contra uma ameaça de ofensa (providências preventivas) ou a atenuação, dentro do possível, dos efeitos de ofensa já consumada (providências atenuantes), e podem funcionar mesmo em situações puramente objetivas, independentemente de culpa do agente.

III – É inerente à aplicação destas providências um conflito ou colisão de direitos de personalidade ou um problema de determinação do conteúdo e limites dos direitos de personalidade invocados pelas partes, havendo que proceder a um juízo de ponderação de bens e de concordância prática.

IV – De acordo com uma lógica de concordância prática, a providência proibitiva imposta ao réu de permanecer em local público ou privado a uma distância de 500 m do Autor e do seu filho e dos seus bens, inclusivamente de ficar ou permanecer na casa onde os seus pais habitam, acompanhada de institucionalização do réu, sem ter por pressuposto parecer médico e sem limitação temporal, é demasiado drástica e severa para os direitos do réu à vida familiar e à autodeterminação, enquanto pessoa portadora de doença mental.

V - Sendo o réu portador de uma doença mental de esquizofrenia paranóide, a sua institucionalização só pode ser decretada ao abrigo da lei de saúde mental, num processo de internamento compulsivo, sujeito a determinados pressupostos, de acordo com a especificidade da doença que o afeta e respeitando as suas necessidades de tratamento e de recuperação, pelo que não decretamos a institucionalização do réu e revogamos as providências definidas pelo acórdão recorrido ao abrigo do art. 70.º, n.º 2 do Código Civil.
 

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"O autor invoca a proteção cível dos direitos de personalidade, prevista no art. 70.º do Código Civil.

Dispõe o art. 70.º n.º 1 do CC que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ou ameaça de ofensa à sua personalidade física e moral”, acrescentando o nº 2 da disposição que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.

Esta disposição constitui uma norma geral de tutela da personalidade física e moral de uma pessoa, possibilitando a esta a reação contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua vida, à sua integridade física, moral e pessoal, à liberdade, ao bom nome e à privacidade ou outro direito fundamental.

Esta norma decorre da dignidade da pessoa humana e protege um conjunto indeterminado de bens jurídicos pessoais não tipificados, os vários modos de ser físicos, psíquicos e morais da personalidade, de acordo com uma visão mais ampla e rica da pessoa (cf. H. E. Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português,Teoria Geral do Direito Civil Português, Coimbra, 2000, p. 258, n.º 423), assumindo uma natureza materialmente constitucional, pois remete para o catálogo de direitos, liberdade e garantias consagrados na Constituição (cf. Paulo Ferreira da Cunha, Direito Constitucional Aplicado, Coimbra, 2007, pp. 220-222). O art. 70.º, n.º 1 tem uma formulação geral e indeterminada de forma a abranger, no seu âmbito de proteção, aspetos da personalidade cuja lesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assumam um significado ilícito, p. ex a identidade genética ou o controlo sobre os dados pessoais (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2005, p. 210) ou os direitos «à nacionalidade, à proteção da saúde e do repouso, à segurança social, ao trabalho, à educação e à cultura, à habitação, ao ambiente de vida humana (sadio e ecologicamente equilibrado)» (cf. Maria de Fátima Ribeiro, Anotação ao Artigo 70.º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 172, nota 6)

A tutela fornecida pelo art. 70.º do CC é de tal forma ampla, que pode ser invocada perante a simples possibilidade de dano.

A garantia cível dos direitos de personalidade não se limita ao dever de indemnizar os lesados depois de preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo risco ou por factos lícitos.

A tutela cível dos direitos de personalidade abrange, nos termos do n.º 2 do art. 70.º do CC, as providências adequadas às circunstâncias do caso, destinadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já verificada.

Esta tutela pode, assim, ser preventiva, em caso de ofensa não consumada destes direitos, e atenuante, nas situações em que já se deu a consumação da ofensa ou o início dessa consumação, destinando-se a atenuar, dentro do possível, os seus efeitos. Estas providências podem ser cumuladas umas com as outras e com o pedido indemnizatório, ou ser requeridas no processo especial regulado nos artigos 878.º e seguintes do CPC.

O termo «ameaça» usado na lei não tem o sentido de ato ou efeito de ameaçar, mas um significado amplo que abrange quer a iminência de ameaça, quer a ofensa em curso, qualquer que seja a intenção do agente (cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª edição, 2007, p. 121).

As providências atenuantes têm, também, por finalidade, eliminar ou minorar os efeitos de ofensa já realizada, podendo, em simultâneo, funcionar como medidas preventivas de futuras lesões, quando se trate de factos continuados.

A aplicação das providências previstas no art. 70.º, n.º 2 do CC não depende de culpa do lesante, já que os pressupostos destas providências não se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (art. 483.º, n.º 1), bastando que o facto seja voluntário e ilícito. Trata-se de uma providência de proteção, que deve funcionar mesmo em situações puramente objetivas, independentemente de culpa do agente (Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 121)

Contudo, inerente a estes litígios está muitas vezes um conflito ou colisão de direitos de personalidade ou de determinação do conteúdo e limites dos direitos de personalidade invocados pelas partes, havendo que proceder a um juízo de ponderação de bens e de concordância prática (Cf. João Paulo Remédio Marques, «Alguns aspectos da tutela da personalidade humana no novo código de processo civil de 2013», texto disponível in

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Reforma_do_processo_civil.pdf).

Da ideia de adequação resulta que, quanto à providência a adotar em concreto, vigora o princípio da atipicidade e que o juiz goza de discricionariedade na sua determinação.

Este juízo de adequação não se pode fazer em abstrato nem através de um quadro apriorístico de solução de conflitos de direitos, mas em concreto, isto é, tomando-se em consideração a particularidade de cada caso.

Para aferir da adequação da medida a aplicar deve ter-se em conta os fins de proteção da personalidade, devendo a medida ser suficiente para cessar a ameaça ou a lesão, de acordo com o «princípio do mínimo dano», isto é, «perante soluções alternativas, deverá procurar-se aquela que, assegurando a tutela dos direitos de personalidade, tenha em conta os interesses do agente, não lhe causando lesões desnecessárias ou desproporcionadas» (cf. Tiago Soares da Fonseca, «Da tutela judicial dos direitos de personalidade», ROA,ano 66, Janeiro 2006, p. 255)

Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, p. 46), «Quanto à natureza e conteúdo das providências, a lei diz apenas que serão “as adequadas às circunstâncias do caso”. Deixa-se assim, uma larguíssima margem de liberdade ao juiz a quem forem requeridas. Mas esta liberdade não pode ser total nem sem critério. Da letra da lei resulta desde logo que as providências devem ser adequadas, o que exclui o excesso. Deve, assim, entender-se que, ao decretar as providências, o juiz não deve exceder o que for suficiente e deve actuar com moderação, de modo a lesar ou perturbar o menos possível terceiros. Há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária. Tudo isto de acordo com o prudente arbítrio do julgador».

O art. 70.º, n.º 2 do CC remete assim para juízos de equidade, estando o tribunal obrigado a decretar, de entre as alternativas possíveis, aquelas medidas que sejam menos severas ou menos drásticas."

[MTS]